Filosofia Clínica como Filosofia da Vida

Em sua obra “Da literatura à filosofia” (2ª ed. corrigida, 1986), Joaquim Batista Martins diz tratar de “ao comentar textos literários, apontar no sentido da filosofia”. Na pág. 60, comentando o texto “Um tema para maio”, o autor afirma: “Sobre a vida mesmo não costumamos pensar. A filosofia da vida prefere discorrer sobre cultura e história. Por detrás da data do nascimento não se avança analiticamente. Um dos pontos em que filosofia e poesia se aproximam (mais do que poesia e ciência) é, como se diz, um aceno à existência. A existência é sempre pessoal, individual. Segundo a filosofia da vida, o indivíduo que se cuide”.
Ao ler essa afirmação, veio-me a ideia de que o autor teria outra opinião, ou melhor, poderia acrescentar à sua afirmação uma outra vertente caso tivesse conhecido a Filosofia Clínica. Pois como apontado no título do presente texto, penso ser a Filosofia Clínica uma filosofia DA vida.
Vejam bem, DA e não DE vida, como se convencionou em todas as instâncias por aí afora: minha filosofia de vida; a filosofia de vida de fulano ou beltrano; a filosofia da instituição ou da empresa e por aí vai.
Se a Filosofia é um saber totalizante, que tem um método próprio para se chegar ao conhecimento ou, ao menos, ao entendimento das coisas, com um olhar crítico e profundo acerca do que se indaga, não dá para dizer que tenho uma “filosofia de vida”, mas sim princípios e valores que me norteiam, sobre os quais, aliás, é possível e até necessário filosofar.
Já filosofia DA vida, em meu entender, além da discorrer sobre cultura e história, como afirma Martins, deve acenar para a existência. E para a existência concreta das pessoas. Saindo das abstrações e generalizações, debruçando-se sobre o dia-a-dia e seus desafios.
E, penso, é exatamente isso o que a Filosofia Clínica se propõe. Sem deixar de reconhecer e valorizar a história, a cultura e tudo o que diz respeito à vida na sua abrangência e generalidade, vai debruçar-se sobre a historicidade dessa pessoa, não para “avançar analiticamente” por trás de sua data de nascimento, mas pensar sobre a vida mesmo, procurando entender sua existência singular a partir da narrativa que ela faz de sua história, atenta à sua linguagem e ao seu modo de expressar-se, pois “a existência é sempre individual”. E também segundo a Filosofia Clínica, “o indivíduo que se cuide”, mas sabendo que tem, na pessoa do terapeuta, alguém que lhe tem cuidado e com quem pode contar para construir o seu caminho.
Parodiando o título da obra citada, Da literatura à filosofia, podemos dizer que a Filosofia Clínica vai da vida à filosofia, mas sempre retornando à vida. Penso ser esse o seu método.
Paulo Roberto Grandisolli

Atalhos em Filosofia Clínica

“Caminhos secundários, derivados de um principal, pelo qual se encurtam distâncias ou se chega mais rapidamente ao lugar de destino; maneira de se conseguir alguma coisa em menor tempo ou com menor esforço do que por meios normais.” (Dic. Houaiss da L. Port. – 2002).
Em Filosofia Clínica, ATALHO é um SUBMODO, i.é, os modos, as maneiras subjacentes, inerentes ao ser/estar da pessoa, as diversas formas que o PARTILHANTE tem de pensar/agir diante das suas questões e das situações diversas que vive.
São também os modos que o Filósofo Clínico vai usar para trabalhar as questões determinantes na ESTRUTURA DA PENSAMENTO da pessoa. “É o caminho criativo, a solução inesperada, uma outra opção para o dilema. (…) Juntar os dados disponíveis para criar soluções diferentes das já existentes.” (AIUB, 2004).
Necessariamente não é um “caminho menor”, mas construção de novas formas de melhor articular o ser/existir. De sintonizar a existência.
Aqui, fazemos uso desse vocábulo no intuito de oferecer pequenos textos como formas de “atalhar”, para introduzir as pessoas nos conceitos, textos e contextos da Filosofia e da Filosofia Clínica.

FILOSOFIA CLÍNICA É MÉTODO

Hans-Georg Gadamer, filósofo alemão (1900-2002), em sua obra “Verdade e Método” nos aponta um marco para a procura da verdade e como o método é determinante nessa busca, aludindo que a hermenêutica* não se reduz a uma ciência, mas é uma condição da existência, i. é, a compreensão e a interpretação do mundo fazem parte da experiência humana. Aí se insere a filosofia: não filosofamos porque temos posse da verdade, mas justamente porque ela nos falta.
Nesse livro, o autor defende a tese de que a consciência é modelada histórica e culturalmente e que o sujeito é parte do processo efetivo da história, inserido numa cultura e num tempo específicos. Tendo a história como “pano de fundo” e como o “grande palco” da ação humana, o sujeito é parte efetiva dela.
A essência da história não consiste na investigação do passado, e sim na mediação do pensamento com a vida atual. A investigação se dá no presente, influenciada pelas circunstâncias da atualidade. Considerando isso é que o sujeito faz a leitura e interpretação de um texto, de uma obra de arte, da vida, na busca pela verdade.
Não dá para fazer uma distinção nítida entre passado e presente. Há uma fusão de horizontes: passado/presente/tradição. Daí se forma a compreensão, que só se torna possível através da linguagem.
Devemos atentar, porém, que toda linguagem é finita, i. é, as palavras não dão conta de abarcar toda a realidade, embora procuremos dar a elas um sentido de infinitude. E isso só é possível num contexto dialógico, onde o conhecimento é adquirido através da conversação como exercício de entendimento mútuo.
Bem, considerando as proposições acima, que são também releitura e interpretação da obra de Gadamer, passemos a pensar em método. Como o título da obra é “Verdade e Método”, podemos dizer que para ele só se chega à verdade através de um método? Assim, é possível afirmar que “verdade é método”?
A palavra método é formada por dois termos de origem grega, “metá” e “odós”, o primeiro significando “para lá, depois” e o segundo “maneira”, “modo”. Método é, então, “um modo de fazer algo”, “uma maneira de chegar lá, ao que vem depois”, “um caminho a ser aberto”. E a verdade também é um caminho que se constrói.
Nesse sentido, a Filosofia Clínica – FC, enquanto clínica filosófico-existencial, é um método; surgiu tendo em mente essa função terapêutica, que é sua principal razão de ser. Na sua reflexão e prática clínicas, vai construindo e elaborando novos métodos de abordagem, sempre de acordo com as realidades e circunstâncias nas quais está inserida.
A FC tem seu modo próprio de conceber e praticar filosofias. Assim como são várias as filosofias, são várias as filosofias clínicas. Porque trabalha com singularidades, para cada uma elabora processos clínicos específicos, trilhando com os partilhantes caminhos possíveis na construção das verdades próprias a cada um, sempre tendo como referência as historicidades que, como diria Gadamer, são os “grandes palcos” que darão referências aos Filósofos Clínicos para entender as singularidades e, aos partilhantes, as condições de reinterpretar e ressignificar suas existências.
Poderia-se dizer que fizemos aqui uma “redução” do pensamento de Gadamer, adaptando-o à FC. Mas se filosofar é não apenas interpretar e reproduzir as filosofias já existentes e consagradas, por que não nos embrenharmos nesse fascinante mundo do pensamento para recriar e criar novos conhecimentos , novas formas de pensar, condizentes com as realidades de cada pessoa, de cada grupo social, de cada sociedade enfim? Afinal, não temos posse das verdades. Por isso filosofamos.
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*Hermes, na mitologia grega, é o mensageiro dos deuses, aquele que decifra as mensagens aos destinatários. Daí deriva o termo hermenêutikos: hermeneo = eu decifro; teckhné = arte; tikos = relacionado a; daí que hermenêutica é a ciência, a arte de interpretação de textos ou de obras artísticas.
Paulo Roberto Grandisolli
 

FILOSOFIA CLÍNICA-FC / EPISTEMOLOGIA

A palavra epistemologia é formada pela junção de dois termos de origem grega, a saber:
Episteme: conhecimento, ciência.
Logia (derivação de logos): elocução, explicação, discurso, pensamento, razão explicativa, faculdade da razão.
E logos também pode ser traduzido por palavra, verbo, investigação ou teoria de um tópico particular.
Desta forma, epistemologia é: “Teoria do conhecimento, o ramo da filosofia que investiga a natureza e a possibilidade do conhecimento. A epistemologia trata também do alcance e dos limites do conhecimento humano, e do modo como este é adquirido e retido. Investiga ainda algumas noções correlatas como, por exemplo, percepção, memória, prova, indício, crença ou certeza” (Dicionário de Filosofia, Direção de Thomas Mautner, Ed. Lexis 70, p. 255).
Epistemologia também é um tópico abordado em Filosofia Clínica-FC. Tópicos, podemos dizer, são “partes” da Estrutura de Pensamento-EP que sinalizam, para o Filósofo Clínico, aquilo que é preponderante para a compreensão de como está organizado o pensamento e como se dão os modos de pensar do partilhante, a pessoa que procura a clínica para partilhar sua história e sua vida com o terapeuta. Ressaltamos que ao usar o termo “partes”, não queremos dizer com isso que o pensamento seja “partido” ou “dividido”. Esse é apenas um recurso metodológico usado para o entendimento do “todo” que é aquela pessoa, na sua singularidade, com seu modo próprio de pensar, de ser e estar no mundo.
Ao abordar este tópico, o Filósofo Clínico irá “pesquisar” como o partilhante busca e constrói, quais os modos, os caminhos que o levam ao aprendizado, ao conhecimento.
Mesmo que esse não seja um tópico determinante para a pessoa, talvez valha investigá-lo, pois o terapeuta poderá fazer uso dele, como já dissemos acima, para entender quais os caminhos e meios que ela usa para conhecer, ou mesmo para ajudá-la na construção ou na tomada de consciência desses meios. Sabendo como aprende e como busca o conhecimento, melhor dizendo, quais os modos que contribuem para um melhor aprendizado e conhecimento, aquela pessoa poderá, com mais tranquilidade, assimilar os conhecimentos necessários para a sua existência em todos os aspectos e circunstâncias: pessoal, familiar, profissional, social etc. Fazendo uso desse recurso, o Filósofo Clínico estará aplicando a epistemologia como sub-modo. Além de serem apontados como tópicos, em FC, os sub-modos são a maneira formal, o método que o terapeuta usa para ajudar a pessoa a trabalhar suas questões; são também a maneira informal que a pessoa usa com este mesmo fim.
Podemos considerar que a FC também é e tem uma epistemologia, pois constrói caminhos próprios que levam ao aprendizado, ao pensar e ao agir filosóficos. A FC usa esse conhecimento para reinterpretar, reelaborar, ressignificar e aplicar na vida cotidiana. Com isso facilita e incentiva os mais diversos modos de pensar, ser e atuar no mundo e, assim, se abre e reconhece as singularidades que o compõem.
Paulo R. Grandisolli/Cláudio Fernandes
 
 

Filosofia e Natureza

Em Filosofia, uma das concepções e interpretações mais antigas é a de Natureza “como princípio de vida e de movimento de todas as coisas existentes. (…) ‘Permitir a ação da Natureza’; ‘Entregar-se à Natureza’; ‘Seguir a Natureza’ e assim por diante são expressões sugeridas pelo conceito de que a Natureza é um princípio de vida que cuida bem dos seres em que se manifesta” (Dicionário de Filosofia, NIcola Abbagnano, Martins Fontes, 2007, p. 814).
Aproveitando o ensejo do “Dia da Árvore”, um dos símbolos da Natureza, e para que não nos esqueçamos, poderíamos reforçar a interpretação de que “a Natureza cuida bem dos seres em que se manifesta”. Vale nos questionarmos se nós, animais da espécie humana, nos consideramos seres em que a Natureza se manifesta ou se nos vemos como apartados dela.
Se nos tornamos e nos consideramos seres apartados, nosso pensamento e comportamento é e continuará sendo de dominação e devastação. Pensamento e comportamento de uma elite político-econômica-financeira que tem se embrutecido descaradamente a cada dia.
Mas ainda é tempo de não nos esquecermos que fazemos e somos parte da Natureza, se assim quisermos, se essa fora nossa vontade e determinação.
E, falando em lembrança, a memória de nossas origens é de fundamental importância para que, assim como “a Natureza cuida bem dos seres em que se manifesta”, nós também tenhamos esse mesmo cuidado para com as árvores, para com o conjunto da Natureza da qual somos e fazemos parte.
Paulo R. Grandisolli

UM ASPECTO DO FILOSOFAR DA FILOSOFIA CLINICA

Em sua obra Filosofia e Circunstâncias*, no Epílogo – O que significa filosofar, o filósofo espanhol Adolfo Sanchez Vázquez (1915 – 2011), ressalta a necessidade e importância de distinguir a produção filosófica e a prática do filósofo, sendo esta última efeito da primeira, supondo que todo filósofo produza filosofia e filosofe desde um lugar referenciado, contextualizado.
Citando o filósofo Immanuel Kant (Alemanha, 1724 – 1804), Vázquez ressalta que a filosofia é a produção de “objetos que são as doutrinas, teorias, categorias ou conceitos filosóficos” e o filosofar o modo como esse conhecimento insere-se “na própria vida do filósofo”.
É pertinente, segundo Vázquez, ainda citando Kant, fazer a distinção “com a qual o acento se coloca, sobretudo, não na filosofia, mas no filosofar. O que, por sua vez implica pôr o acento na aspiração, finalidade ou intenção com que o sujeito – o filósofo – produz certo objeto ou exerce sua atividade”.
Ele ainda faz referência a Karl Marx, outro filósofo alemão (1818 – 1883), cujo distintivo “é por em primeiro plano essa atividade prática, vital, que (…) suporta o imperativo moral de transformar o mundo que, para o filósofo, converte-se no próprio imperativo de pôr seu filosofar em concordância com essa finalidade”.
Sendo a Filosofia Clínica uma terapêutica existencial, podemos dizer que ela também é um exercício prático da filosofia, é um filosofar praticado pelo Filósofo Clínico junto ao partilhante, caminhando com ele, durante o processo clínico, no sentido de auxiliá-lo a buscar as transformações necessárias para o seu modo de ser, de estar e de agir no mundo, sempre de acordo com o que a pessoa almeja. E em se tratando, por exemplo, de alguém que tenha um envolvimento com as causas político-sócio-ambientais etc, e que traga essa questão/inquietação para a clínica, obviamente, o Filósofo Clínico colaborará para que o partilhante atue, como diz Vázquez, para “transformar o mundo humano que, por injusto, não podemos nem devemos fazer nosso, (…) e não se deve aceitar a injustiça. Trata-se de transformar o que é não só porque ainda não é, mas também porque deve ser”.
Vale observar que o Filósofo Clínico, como terapeuta, embora coloque sua ênfase no filosofar, não significa dizer que ele também não produza filosofia enquanto teoria, pois estuda e busca construir um conhecimento teórico que dê sustentação para sua prática filosófica e para seu agir na transformação de si e do mundo.
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*Ed. Civilização Brasileira, 2002, p. 541-549.
Paulo Roberto Grandisolli
 

A FILOSOFIA CLÍNICA E OS JOGOS DE LINGUAGEM

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), em sua obra Investigações Filosóficas, afirma que a linguagem pode gerar superstições e que é papel da Filosofia questionar, esclarecer e neutralizar os efeitos dessas superstições sobre o pensamento. Também aqui ele cunha a expressão “jogos de linguagem” e que é preciso abrir a mente e os olhos para ver como a linguagem funciona, qual a sua função prática, ou seja, é no uso cotidiano das palavras, da linguagem, que podemos apreender o que elas querem dizer, num conjunto de “perplexidades” que devem não ser interpretadas, mas trazidas à luz, numa “luta contra o enfeitiçamento da linguagem”.
Em Filosofia Clínica, essa proposição faz todo o sentido, pois o Filósofo Clínico coloca-se diante do partilhante para ouvir a narrativa de sua historicidade. E, ao contar sua história, a pessoa usará de jogos de linguagem que lhe são próprios, contextualizados e permeados de outros tantos jogos de linguagem que fazem parte de seu mundo.
Acontece, comumente, em nossa experiência de vida, trazermos “n” conceitos, cristalizados em nossa mente* e que podem nos “enfeitiçar”, fazendo com que cheguemos a “conclusões” nem sempre as mais oportunas para as situações que vivenciamos e para as questões que nos incomodam.
Daí que, ouvindo atentamente a narrativa, o Filósofo Clínico, também ele portador de jogos de linguagem dos quais deverá momentaneamente “abrir mão”, terá uma atitude de “entrar”** no(s) jogo(s) de linguagem do partilhante para, numa postura filosófica, ajudá-lo a ver a quais armadilhas conceituais*** essa linguagem pode levá-lo a pensar e a posicionar-se de modo, às vezes, não os mais adequados às situações que vivencia.
Dessa forma, podemos dizer que a Filosofia Clínica contribui para uma permanente ressignificação/desconstrução/construção de jogos de linguagem que sejam mais condizentes com o mundo em que vivemos, proporcionando melhor comunicabilidade e relação entre os seres****.
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*Em FC podem ser associados aos tópicos “pré-juízos” e/ou “termos agendados no intelecto”, que são juízos pré-estabelecidos e noções que se firmam em nossa mente, conduzindo nosso raciocínio.
**Aqui o Filósofo Clínico usará do sub-modo “recíproca de inversão”, que pode traduzir-se por “entrar no jogo de linguagem” do partilhante para melhor apreender sua narrativa.
***Tópico da Estrutura de Pensamento-EP: como diz o texto, conceitos, ideias que podem levar a paralisar e/ou a tomada de decisões menos adequadas às situações vividas.
****Ressaltamos a comunicação entre “os seres” referindo-se não só às pessoas, mas a todas as formas de vida da natureza, da qual somos parte.
Paulo Roberto Grandisolli

FILOSOFIA CLÍNICA – HISTORICIDADE

Permitam-nos “brincar” com a palavra historicidade: HISTORIcidade – hISTOricidade – historiCIDADE – historicIDAde – historicIDADE. Primeiramente vamos ver os conceitos:
HISTÓRIA: substantivo feminino. Conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade e sua evolução, segundo o lugar, a época, o ponto de vista escolhido.
ISTO: pronome denominativo. Indica algo (coisa) que se acha espacialmente mais perto de quem fala, ou, temporalmente, acontecimento recente, ou que está sendo ou será em seguida dito ou referido por quem fala.
CIDADE: substantivo feminino. Aglomeração humana localizada numa área geográfica circunscrita e que tem numerosas casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou a atividades culturais, mercantis, industriais, financeiras e a outras não relacionadas com a exploração direta do solo; urbe.
IDA: substantivo feminino. Ato ou movimento de ir(-se); trajeto que termina onde ou quando tem início o retorno a seu ponto de partida.
IDADE: substantivo feminino. O tempo de vida decorrido desde o nascimento até uma determinada data tomada como referência.
Essa “brincadeira” é tão somente para dizer que a Filosofia Clínica, enquanto terapia existencial, só faz e tem sentido quando escuta atentamente e entende a historicidade da pessoa que procura a clínica. E também para dizer que essa história é o isto que se apresenta para o terapeuta no momento em que o partilhante, permitam o trocadilho, partilha sua vida com o Filósofo Clínico. E esse isto, essa história, aconteceu/acontece numa cidade, i. é, num determinado lugar, com todas suas características e circunstâncias, feitas de idas e vindas, numa determinada idade, ou seja, num determinado tempo.
E a clínica, melhor dizendo, o processo clínico, torna-se também (ou pode tornar-se) essa ida, essa busca do partilhante, por um novo olhar, um novo sentir, um novo pensar, um novo posicionar-se diante da sua história pessoal e coletiva, enquanto um ser de relações, em constante construção de seu modo de ser e estar no mundo.
Obs.: Vale dizer que os conceitos acima apresentados, retirados do Dicionário HOUAIS da Língua Portuguesa, Ed. Objetiva, 2001, são conceitos técnicos, mas que podem adquirir um significado diferente e/ou complementar para cada pessoa, considerando suas ideias, seus pensamentos, seus afetos, seus sentires…
Paulo Roberto Grandisolli

FILOSOFIA CLÍNICA E LITERATURA

Uma das fontes de conhecimento daquilo que se convencionou chamar “condição humana” é a literatura. E a Filosofia, sendo também uma literatura, está, desde seu início, buscando “dizer” a condição humana de seu jeito próprio. Mas não existe “a” Filosofia. Ela, a Filosofia, é vária. Enquanto conceito, podemos dizer que “a” Filosofia é aquela que, buscando uma leitura e tendo um olhar totalizante do mundo, vai fundo, às raízes das questões que se lhe colocam e entende tudo como um processo constante de desconstrução/construção de saberes, de modos de ser e estar no mundo”, utilizando-se, para isso, de método próprio. Mas assim como são várias as filosofias, várias são as literaturas, as leituras, os olhares, os modos de ser e estar no mundo.
E a Filosofia Clínica-FC não foge desses caminhos, pois também ela tem se tornado uma literatura, uma leitura, um olhar, um modo de ser e estar no mundo, na medida em que se constrói, não se dá por acabada. Se assim fosse, não seria Filosofia, não seria Clínica. Tudo é um processo.
Mas, justamente por ser Filosofia, justamente por ser Clínica, é que a FC sabe-se parte de um conjunto onde, nesse caso, a Literatura, ou melhor, as Literaturas, têm muito a dizer da “condição humana” e, por isso, a aproximação é vital, pois pode nos levar a repensar, a entender e levar a entender que o “devir”* acaba por tornar-se a própria “condição humana”, i. é, o humano, individual e coletivamente falando, é uma constante construção, processo. “Navegar é preciso, viver não é preciso”, como já diziam os antigos navegadores nos idos tempos das “invasões e conquistas” de “novos mundos”, frase que celebrizou-se na voz e na literatura de Fernando Pessoa**.
Enquanto concepção e prática filosófica, a FC, sendo uma terapêutica existencial, constrói-se como aquela que ouve a narrativa, “ouve o texto” do partilhante e, fazendo uso da literatura filosófica, bem como de outras literaturas, mas, principalmente com sensibilidade, com cuidado, com conhecimento, com método próprio, irá contribuir para que o indivíduo, o grupo, a organização, “reescrevam seus próprios textos”, i. é, reelaborem seus modos de sentir, de pensar, de posicionar-se, de ser e de estar no mundo.
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*Devir: verbo intransitivo :1vir a ser; tornar-se, transformar-se, devenir; substantivo masculino Rubrica: filosofia. 2 fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e transforma todas as realidades existentes; devenir, vir a ser. – Dicionário eletônico Houais 2009.3
**Escritor e poeta português, 1888-1935.
Paulo Roberto Grandisolli

FILOSOFIA CLÍNICA E SAÚDE

Em sua obra Uma História da Saúde Pública, de 1958, George Rosen (1910-1977), médico e pensador estadunidense, destaca no prefácio da edição norte-americana* que: “A função de proteger e promover a saúde e o bem-estar dos cidadãos é uma das mais importantes do Estado moderno, e representa a consubstanciação de uma série de considerações políticas, econômicas, sociais e éticas. Mas desde quando essa preocupação com a saúde do grupo existe? E como se relaciona com a vida de cada cidadão, de cada indivíduo? A história da comunidade e de seus problemas de saúde nos ajuda a responder a essas perguntas.” E continua: “A História, como memória do grupo humano, ajuda a moldar, para o bem e para o mal, a consciência coletiva, e desperta a atenção do indivíduo para o mundo, mesmo o de ontem e o de amanhã.”
Poderíamos considerar que as questões levantadas são pertinentes e atualíssimas, dado que em nosso contexto latino-americano e brasileiro**, em especial, este ainda é um dos prementes desafios que enfrentamos, tendo em vista que, mesmo sendo esse direito garantido pela Constituição Brasileira***, as legislações vigentes ainda não foram efetivamente assimiladas e regulamentadas, imperando os interesses das grandes corporações médicas e da indústria farmacêutica em particular. Mas essa é uma outra abordagem, embora fazendo parte da mesma história, para a qual faz-se necessária constante reflexão e mobilização da sociedade e seriedade por parte dos políticos e governantes.
Também essas mesmas questões fazem parte do universo da Filosofia e da Filosofia Clínica-FC em particular, ao rol das quais poderíamos acrescentar outras: O que é saúde? O que é doença? O que a historicidade de uma pessoa e/ou de um coletivo tem a nos revelar sobre seu estado de saúde/doença? O que vivenciam uma pessoa, um coletivo, serviços e profissionais de saúde, uma sociedade em situações limítrofes da existência? Como munir-se, interior e exteriormente, de meios que possam contribuir para o enfrentamento dessas questões/inquietações/angústias?
Falando especificamente de FC e Saúde, podemos dizer que, tanto no atendimento clínico individual como num trabalho de consultoria e/ou de análise de clima organizacional, essa modalidade de terapia existencial tem muito a contribuir, especialmente visando construir junto às organizações de saúde ambientes e relações mais saudáveis, tão necessárias neste “universo” que exige de todas as pessoas envolvidas – administradores, profissionais, clientes, parceiros – uma postura de silencio para a escuta, atenção e respeito às histórias e às dores, conhecimento e perspicácia nos diagnósticos, conhecimento e técnica no tratamento, mas, fundamentalmente, uma atitude, que poderíamos chamar de atitude filosófica, de profunda humanidade para os seres humanos que somos e para aqueles que diante de nós se apresentam.
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*Ed. UNESP, 2ª ed., 1994
** Vale ressaltar as conquistas dos movimentos sociais que culminaram na Constituição Brasileira de 1988 e a na lei 8080/1990 que regulamenta o SUS-Serviço Único de Saúde e que no atual governo tem sofrido graves desmontes, seguindo a cartilha do neoliberalismo.
***”A saúde é um direito de todos e dever do Estado.” – Constituição Brasileira – 1988, artigos 196 a 200.
Paulo Roberto Grandisolli