legitimidade de uma terapia

Olhar de um filósofo clínico

Aqui se discutirá a legitimidade de uma clínica que trata das questões existenciais de uma pessoa.

A palavra “legitimidade” se forma a partir da junção de “legi”, que significa “lei”, com “timidade”, relativo a “timo”, que significa alma, espírito, sentido,  trazendo a idéia daquilo que impregna, que dá vida, dá sentido à lei,à norma, ao hábito, ao costume, a uma teoria. Um conjunto de saberes, como os levados a uma clínica,  será  “legítimo” quando for aceitável por uma comunidade, pressupondo, assim,  um certo “con-senso” – um sentido que se torna comum – de  opiniões. 

Esses sentidos comuns das opiniões vinculam-se na “terapia”, na área da “clínica existencial” a uma certa submissão à autoridade dos conhecimentos científicos. Os tratamentos, de modo geral, a partir do final do século 19, sempre pretenderam estar amparados numa teoria, que por sua vez estaria firmemente vinculada a certas idéias, que “lá no fundo”, “lá no fim” tinham uma espécie de impregnação na verdade.  A ética, o respeito pelo ser humano a ser cuidado, estariam resguardados pela certeza, proveniente da solidez dessa teoria,  que seria  em última instância, verdadeira.

Em síntese: a ética clínica estaria garantida por um conhecimento que é certo, sólido e verdadeiro.

Isso, afinal,  não é razoável? Como agir, como pensar com responsabilidade ética sem esse parâmetro, essa evidência, sem essa garantia dada pela idéia da verdade? É possível conseguir a certeza em algum conhecimento  como se tem com ela? 

Não se chegará a isso. Uma clínica existencial, quando se exerce no âmbito da ciência, promete percorrer o solo firme das evidências filosóficas, guiada por regras claras e distintas. Mas não é isso q acontece. Volta e  meia tropeça , dá com enigmas, mistérios: no lugar de  apoio em chão firme  encontra abismos, dúvidas, áreas  desconhecidas.  E muitas vezes a  idéia de uma natureza humana, incognoscível nos seus limites, é invocada para explicar ou justificar isso. Mas, leitor, repare que curioso:  o material da clínica não é exatamente essa natureza humana, surpreendente, pouco conhecida, e tão variada, que cada vez se apresenta de uma maneira? Como é que de saída isso não é levado em conta?

Durante  o século 20 o universo de certeza e verdade que sustentava a confiança no campo das ciências perdeu o seu predomínio, pouco a pouco. A pesquisa científica, conforme se  aprofundava, des-cobria a fragilidade de seus pressupostos e, simultaneamente,  sua relação de dependência constitutiva  com a linguagem – esta sim, apesar da fragilidade que a constitui, uma atividade propriamente humana.

No âmbito da física nuclear, em 1933,  Heisenberg (nota 1), por exemplo, comentava que  ao buscar descrever teoricamente  os fenômenos atômicos seria preciso ”fazer a distinção entre o fenômeno e o observador… mas, do lado do observador, somos forçados a usar a linguagem da física clássica, simplesmente por não termos outra linguagem com que expressar os resultados. Sabemos que os conceitos de linguagem são imprecisos, têm uma aplicação limitada, mas não dispomos de outra linguagem…” para, mais à frente, ser bem explícito : “aprendemos que essa linguagem é um meio de comunicação e orientação inadequado. Apesar disso, ela é o pressuposto de todas as ciências” (nota 2). Sublinhe-se e retenha-se o que escreveu um dos cientistas mais respeitado em todo o mundo: a linguagem com suas limitações é o pressuposto de todas as ciências.

Em outro âmbito, muito distinto, vê-se Lacan, ao tratar da cientificidade da psicanálise, escrever: “…nenhuma linguagem pode dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, uma vez que a verdade se funda pelo fato de que fala, e não dispõe de outro meio para fazê-lo”(nota 3). Não pode haver uma verdade fora da linguagem. Para ele o lugar da  verdade é o inconsciente e,  neste registro,  ele afirmará que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”. O psicanalista francês apenas transmuta as questões, mantendo-as no campo de uma pseudo-verdade ou, melhor ainda de uma “suposta-verdade”, sustentada pela força de repetição dessa genial ficção operatória que é a noção de inconsciente.

No campo da filosofia clínica Gustavo Bertoche destaca que o filósofo francês Gaston Bachelard revela “nossa inevitável insuficiência (do conhecimento, no campo das ciências); e,faz-nos ver que não existe um pensamento maduro em sua gênese”, lembrando que para uma idéia se aperfeiçoar “é preciso colocá-la em questão , expandi-la em uma problemática e, principalmente, abri-la ao debate , torná-la pública, desde o início”. Em outras palavras: trazê-la às linguagens possíveis. Generoso, Bertoche procura mostrar que a “consciência da incompletude essencial de nossas concepções é uma consciência libertadora” (nota 4).   

2. Ciência, Lógica e Linguagem 

Já na virada do século 19 para o 20, especialmente por conta das conquistas técnicas, a fé na ciência imperava. As pesquisas e os conhecimentos mais diversos buscavam se adaptar aos padrões científicos e  era através da lógica –  “a ciência do bem pensar” (nota 5) – que seria possível  reduzir o nível de confusão, de incerteza, de imprecisão  no campo do conhecimento, da pesquisa e da  prática científica. A linguagem e a lógica  tornavam-se  objetos cada vez mais importantes para as teorias científicas. 

Na Alemanha, no último quarto do século 19,  os trabalhos de Frege (nota 6) ligavam a matemática,  à lógica e à linguagem. As questões que desenvolveu germinaram de tal forma que ainda hoje é referência obrigatória no campo dos estudos da linguagem. Em 1872, pergunta: “A apreensão de uma verdade científica passa, normalmente, por vários estágios de certeza (em seguida pergunta) … como podemos assegurar-lhe (a uma proposição) finalmente uma sólida fundamentação?”. E responde, em seguida, “o método de prova mais seguro consiste, obviamente, em seguir estritamente a lógica, que abstraindo as características particulares das coisas, apóia-se exclusivamente nas leis sobre as quais  se baseia todo o conhecimento” (nota 7). O “mais seguro” é abstrair do caráter “particular das coisas”. O caminho: a lógica.

Só a lógica, livre das contingências, das indeterminações, dos contextos, da história, poderá ser o fundamento seguro para o conhecimento científico – ela (a lógica), por sua força de evidência, o legitima. A linguagem para Frege, entretanto,  “não é regida pelas leis lógicas” (nota 8) e “nas partes mais abstratas da ciência, torna-se cada vez mais inequívoca a falta de  um meio que permita, ao mesmo tempo, evitar incompreensões quanto ao pensamento de outrem, e também equívocos sobre o nosso próprio pensamento. Tanto um como o outro têm sua causa na imperfeição da linguagem, já que temos que usar sinais sensíveis para pensar.” (nota 9). A linguagem seria “imperfeita”, por sua ligação com a sensibilidade humana, o que o leva a concluir pela necessidade “…de um sistema de sinais carente de toda ambigüidade ,e cuja forma rigorosamente lógica não deixe escapar o conteúdo” (nota 10) . Escapar da “ambigüidade”, do “imperfeito”, da “ligação com a sensibilidade humana”.

Bertrand  Russell(nota 11) , leva essa questão de Frege para  o ambiente britânico e americano e a toma como objeto principal de seu trabalho. “A reestruturação da lógica levada a cabo por Russell é idêntica, em espírito à efetuada por Frege…tendo os 2 grandes lógicos chegado a resultados praticamente idênticos de modo independente” (nota 12). No desenvolvimento dessa co-laboração, entretanto, houve uma “crise” provocada pela descoberta do que ficou conhecido como o “paradoxo de Russell” (nota 13), que levou Frege a abandonar a crença na possibilidade de reduzir uma ciência (a aritmética) à lógica. Sua confiança no caminho lógico é abalada.

Para Russell, ao menos inicialmente,  o mundo dos sentidos parece se identificar com o mundo real: a “realidade” sendo aquilo que os sentidos captam. Ele notará, entretanto, que o que é dado pelos sentidos “é muito menor do que naturalmente muita gente supõe, e muito do que aparece como dado imediato, é  obtido através da inferência” (nota 14), sendo, portanto, conhecimento derivado. O conhecimento sensível está ligado obrigatoriamente com o conhecimento de um homem específico – o “lugar” dos sentidos. O seu desafio será o de estabelecer a possibilidade do “conhecimento singular”- de cada homem – se tornar partilhável com outros homens em busca de uma maior generalização desse conhecimento. Não é Platão, não é Descartes, não é Kant, não é Hegel e não é Locke, nem Hume. Isto seria possível através do que ele chama de “construções lógicas”. Nesse sentido, a lógica funcionaria, ela mesma,  como uma espécie de linguagem, compartilhável pelos homens singulares, que daria conta de representar ou dizer o real ou o mundo existente.

Ele não nega que as interpretações cotidianas das experiências perceptivas e as palavras de uso corrente, implicam teorias ou modos de ver em contexto. Mas o que ele busca e propõe será  excluir o elemento de interpretação presente na linguagem ordinária do dia a dia, ou mesmo das teorias,  e inventar uma linguagem artificial, com a mínima teoria possível, a mínima contaminação com o sensível, com o contingente. E, por  esse caminho  se poderia  chegar ao dado puro. E que deve haver um dado puro é (a juízo de  Russell) uma conseqüência  lógica irrefutável. Afinal de contas, no limite da pesquisa deve se chegar a um dado  e, um dado – por definição – é o que não é inferido, o que está aí. O dado pode não ser verdadeiro e pode não  dar a certeza que se quer. Ele funcionaria como a  memória, que sabe-se que falha, mas mesmo sabendo disso, ela é a base para muitas coisas em que se acredita e de conhecimentos que se desenvolve” (nota 15).  O “dado” fundamenta o conhecimento científico e nesse próprio ato desfaz a possibilidade de legitimidade – política, social –  dos saberes não “puros”, “não abstratos”, históricos, contextuais (nota 16) .  

Mas volte-se ao tempo de Frege para não deixar de notar que naquele último quarto do século 19, no mesmo mundo acadêmico freqüentado por ele estavam  Dilthey (nota 17), Brentano (nota 18) Freud (nota 19)  e  Husserl (nota 20).

A profundidade, complexidade e a extensão do pensamento  e do trabalho de Husserl talvez possa ser explicada, em parte, por esse ambiente. A influencia que a fenomenologia trouxe à filosofia do século 20 e, ao campo propriamente clínico existencial, foi imensa. Nas “Investigações Lógicas” (nota 21) diz  logo na primeira frase: “A necessidade de fazer começar a Lógica com reflexões sobre a linguagem foi frequentemente reconhecida do ponto de vista da técnica lógica” (nota 22). Lá se lerá que as discussões sobre a linguagem devem ser feitas como uma espécie de preparação filosófica indispensável para a “edificação da lógica pura”, como condição a que se chegue a uma “clareza inequívoca” sobre os objetos próprios a serem investigados. Há, portanto, uma espécie de inversão: no lugar de a lógica “garantir” a clareza da linguagem, como era para Frege e Russell – e todos os seus seguidores – será necessário agora discutir a linguagem para se chegar a construir a “lógica pura”. O que se buscará são as condições para o desenvolvimento da  ”fenomenologia pura”, como um domínio de “investigações neutras”, no qual (as) diferentes ciências possam estabelecer as suas raízes”. A “fenomenologia pura” é o solo, a terra,o húmus para todas as ciências.

Os “objetos” (nota 23)  para os quais a “lógica pura” está voltada são “dados sob vestes gramaticais”, dados que estão “como (que) embutidos nas vivências psíquicas concretas” (nota 24). Esses dados “vestidos de linguagem” junto com as vivências formam o que ele nomeará como “uma unidade fenomenológica” (nota 25).  Será a partir destas unidades fenomenológicas complexas que o lógico trabalhará, sem tomar como “dado” as vivências psíquicas de um caso singular. “Ao lógico puro não interessa primaria e propriamente o juízo psicológico, isto é, o fenômeno psíquico concreto, mas, sim o juízo lógico” (nota 26) , uma espécie de significação aglutinada ou aglutinação de significados. Deixando a “relação real” entre os atos – os juízos empíricos – para o que Husserl chamará de “relação ideal” em que “a consideração subjetiva cede o seu lugar à objetiva” (nota 27) . E esse será o seu caminho, procurando desenvolver uma “fenomenologia pura”, livre, ou pelo menos independente das contingências vividas pelos  homens em suas vidas concretas.

Heidegger, assistente e aluno dileto de Husserl, em seus primeiros trabalhos buscava distinguir a esfera imutável da lógica daquele mundo dos fatos psíquicos, mutantes e dependentes do tempo. Ao psicologismo ficaria  limitado o acesso à validade, uma vez que por definição ela não é dependente do tempo. Para ele, nesse primeiro momento, o que é válido, o que é legítimo, tem o caráter da permanência no tempo: será sempre. Mas,  desde a tese de livre docência sobre Escoto, como nota Vattimo (nota 28), “Heidegger reconhece explicitamente que a filosofia não pode deixar de levantar o problema da validade das categorias, isto é, da lógica, não só de um ponto de vista imanente, como também de um ponto de vista “transeunte” , isto é, de um ponto de vista do seu valor para o objeto…trata-se de ligar explicitamente a historicidade do “espírito vivente” e a validade intemporal  da lógica”(nota 29) . A sua questão central se torna a questão do ser, vinculada à questão da existência, do “espírito vivente, histórico”. E “existência” no caso do ser-humano, “deve entender-se no sentido etimológico de “ex-sistere” – estar fora – ultrapassar a realidade simplesmente presente (como era visto o ser, até então) em direção da sua possibilidade” (nota 30) . E aqui pode-se  apreender outra noção central de Heidegger  – talvez a condição básica da possibilidade de uma clínica – quando ele  define o ser humano, em sua essência como um “poder-ser” (do ponto de vista de quem a procura) e,  “compreensão-de-ser”(do ponto de vista de quem atende a quem procura).

Em Viena, capital cultural do mundo ocidental à época,  Freud (nota 31) , a partir de seu trabalho clínico, desenvolveu a hipótese teórica tremendamente fecunda do “inconsciente” , que trouxe  outros  parâmetros para se pensar o ser humano, suas relações consigo próprio, com o mundo e  com os outros.  Abriu um âmbito terapêutico original  e próprio – o  das psicanálises – de pertinência clinica e cultural ampla, séria, articulada e transformadora. Com ele “…um novo ouvinte é inventado, digamos, outro tipo de intérprete” (nota 32) . Vivendo e respeitando os valores de seu tempo, buscou incansavelmente, estar em consonância com os valores da ciência, onde isso fosse possível, sem violentar os saberes que o enfrentamento dos desafios de seu trabalho trazia: ”Um intéprete… (que) está de acordo com a ciência, mas (que) é também um intérprete que visa um saber diferente daquele da ciência” (nota 33).  

Ferdinand Saussure (nota 34) , entre 1906 e 1911, na Universidade de Genebra, através de seus cursos de lingüística geral, colocou a linguagem como objeto de estudo, mas de um modo muito próprio, não dando importância às questões da filosofia da linguagem, do sentido e da referência, como fizera Frege e seus continuadores.  Para ele havia uma predominância da língua – “princípio de classificação”, sistema abstrato – sobre os elementos. O exercício da língua  se dá pela linguagem, entendida como esse sistema de signos. Ela será, primordialmente, compreender a relação entre as palavras. A linguagem fica autônoma, auto-referida, não mais ligada à vida do homem, numa espécie de campo científico próprio: o da lingüística. E será deste modo de tomar as questões da linguagem como sistema – estrutura – que se impregnará a cultura francesa, pelo menos, pelos seguintes 50 anos. O “estruturalismo” com presunção científica desenvolvido por  Levi-Strauss (nota 35) bebe diretamente dessa fonte.

A tentativa mais acabada e articulada na direção de produzir certeza teórica através da lógica e da linguagem foi desenvolvida também em Viena, na primeira década desse século, por Wittgenstein (nota 36) .  Esse  é o tema central de seu Tractatus Logicus Philosophicus (nota 37). Nessa obra (nota 38) ele procura submeter o dizer humano ao modelo do dizer cientifico, isto é, do dizer controlável, que decide sobre os fatos do mundo. Ele busca “a” linguagem que assegure isso. Uma expressão, ou uma proposição será entendida quando se dominar a regra do seu uso. E o que estabelece essa regra é a lógica: “a maioria das questões e proposições dos filósofos provém de não entendermos a lógica de nossa linguagem” (nota 39). E a lógica, num processo de decantação analítica induzida da linguagem, chegaria a uma  única  forma de expressão, ” perfeitamente decomposta”.  A linguagem, ali, então, passa a ser cálculo, comandada pela lógica. Poderia, portanto, trazer precisão, segurança, certeza, estabelecer verdades, fundamentos sólidos, razões últimas. A linguagem lógica, científica, potencialmente chegando ao “fundo”, à última instância, evidencia a verdade, torna-a legítima. O  significado de uma expressão científica, portanto, será o resultado da aplicação restrita das regras da  lógica à linguagem (nota 40). De uma certa perspectiva, é o ponto mais “alto” – ou mais “fundo” – a que pode chegar a ciência, a técnica ou a metafísica. O conhecimento científico, finalmente, estaria legitimado.

3. O Desfazimento da Verdade como Certeza

Com o passar dos anos, entretanto,  o próprio  Wittgenstein se tornará o maior crítico do seu  Tractatus. Ele considerará que não é a regra do uso (a lógica) mas o próprio  uso da expressão lingüística  que definirá o  significado dessa expressão. Nesse novo modo de ver, o sentido do que se diz é dado no uso que se faz das palavras, dos sons, dos gestos.  Ao “usar” uma palavra, um gesto, a pessoa inventa ou repete um sentido que escolhe para ela, para ele: a palavra e o gesto não têm mais um sentido “último”, “em si”, mas está referido às suas vivências e as que supõe de seu interlocutor. Ela pode abrir sua mão direita, juntar a ponta do indicador à ponta do  polegar e com este gesto indicar ao seu colega norte-americano que “está de acordo” com o que ele disse; o seu colega gaúcho, no entanto, poderá entender que com este gesto está agredindo seu colega. As referências existenciais são diferentes, o que traz sentidos muito distintos ao aparente mesmo repertório vocabular.  Não é mais a lógica, mas sim o contexto, as circunstâncias que passarão a interferir no modo definidor, na produção e, no entendimento do sentido de uma proposição, de uma palavra ou de um gesto.  

Nesta perspectiva, o modo de entender a própria  história – a historicidade – interfere, quase determina, o conteúdo da linguagem de uma pessoa. A linguagem não será mais vista como algo único e uniforme, mas como uma grande variedade de ações possíveis,  como “…comandar…descrever um objeto…relatar um acontecimento… expor uma hipótese…inventar uma história…fazer uma anedota…pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar” (nota 41)  “Essa pluralidade não é nada fixa (como se fosse) um dado para sempre; mas (são) novos tipos de linguagem…o termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte da atividade ou de uma forma de vida” (nota 42) . E para ficar com este alumbrante autor-crítico de si mesmo: “É interessante comparar a multiplicidade das ferramentas da linguagem e seus modos de emprego, a multiplicidade das espécies de palavras e frases com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem (e também o autor do Tractatus Lógico-philosophicus) “ (nota 43).

Essa crítica incisiva à uniformidade e à unidade da linguagem tira as bases nas quais se suportam as noções que a  ciência vai buscar na lógica. Em última instância, do pensamento predominante no ocidente. A ruptura é profunda e ainda se está aprendendo a viver sob sua influência neste início de século 21.  Não há mais “a linguagem”, mas as linguagens, agora  referidas a “formas de vida”. Cada pessoa tem a sua própria “forma de vida”, pode passar a ser vista e tomada, em clínica, em sua peculiaridade, em sua singularidade.

A lógica considerava a fala como um resultado, portanto só observava o conteúdo do que é falado. Uma clínica ocupada nas condições do viver de uma pessoa,  busca  assimilar  a “fala”, a linguagem,  como um processo semântico, buscando ver de  onde ela surge, onde está inserida, vinculando-a à sua historicidade própria. Os contextos de referências de significados e sentidos, de  onde vem, por onde passa e passou  essa “fala”, vale dizer esta pessoa, cada pessoa. Há, com isto, uma atitude muito diferente quanto à busca de sentido.

Nesta mesma direção, ainda que com muita diferenças, pode-se observar que também em Heidegger, de Ser e Tempo (nota 44), o sentido é produzido pelo envolvimento do homem  nas suas  atividades cotidianas, no seu mundo, na sua práxis. A linguagem acontece, se realiza, “fala” no fato. “ A linguagem é o pronunciamento da fala” (nota 45) ou ainda ,  “a linguagem fala” (nota 46). A “fala” é um “deixar ver”, articulação com a situação em gestos ou palavras. O traço principal da linguagem está na sua função referencial. Há uma relação entre o “dito” com  “algo” que se procura tornar ”visível”. Deixar ver é “ver por si mesmo” esse “algo”. E esse “algo”  se mostra (no  modo)  a partir de si mesmo.

Esse “mostrar-se” em si mesmo  de um “algo” é o que Heidegger entende por “fenômeno” (nota 47) . Fenômeno é o”mostrar-se” de “algo”, que “vem ao encontro” a partir desse “algo”. A fenomenologia  para ele, é o âmbito que estuda esse modo do “mostrar-se”, a “via de acesso e o modo de comprovação”. De seu ponto de vista, “fenômeno é somente o que constitui o ser, e ser é sempre ser do ente” (nota 48) . A questão do “ser” é a  mais universal e, ao mesmo tempo, se dá na  singularidade mais restrita,  deste ser humano histórico, em circunstância, em sua facticidade. Mas para ele, filósofo, o ser humano será tomado na  perspectiva  ontológica (nota 49), o ser humano será concebido como o  ser-aí ou, o ser-o-aí, ou o  Dasein (nota 50).  Ele  oporá  ao ponto de vista lógico o ponto de vista existencial.

 A clínica, no entanto, como não cansa de nos alertar o próprio Heidegger (nota 51),  não é ontologia. Uma clínica não tem como  tarefa discutir o que “este ser humano é”, qual o ser-deste ser humano.  O campo é “ôntico”, dos entes, deste ser humano aqui à  frente, não em seu “ser”, mas em seu “estando”, seu “já-sendo-aqui”. Nestas  circunstâncias.  Não se  trata com  o ser humano – homem ou mulher – ab-strato, como se ele fosse tirado de um estrato, de  uma estrutura de conhecimento que não está presente no “mundo”,  meta-físico. Cuida-se deste ser humano aqui em sua relação com os fatos que compõem incessantemente o seu estar-no-mundo. Trata deste “ser humano de fato” que se apresenta, “aqui”,  à frente do/a clínico/a. Parte daqui. Toma este “ser humano concreto”, este “ente” em seu contexto, em sua singularidade. Não há relação com a universalidade.  Por isso o visar da clínica é ôntico. É encarnado. Não é ontológico, não tange a verdade. Não trata com doentes, com pacientes, trata com pessoas que trazem parte de suas vidas, que  partilham modos de sua existência.  Não é tarefa do/a clínico/a des-vendar um pretenso ser-do-partilhante, a sua verdade, já dada ou a se obter. Ele/a já é o que é, a sua  própria verdade é essa que ele/a vive. Em clínica, talvez,  seja mais  estar com ele/a em seus “estares”, em suas questões. Acompanhar suas pré-ocupações, seus modos de constituir-se e refazer-se. Cuidar.

 A fala deste/a partilhante à frente do/a clínico/a é linguagem – e não apenas “sons” – porque ao se manifestar ela já traz uma articulação de significações própria, sempre capaz de modificação, em modos de ser seus  nos “mundos”, singulares. Quando posto em relação com o/a clínico/a, com este mundo que inventa e que  se lhe apresenta – um/a clínico/a, ou este outro ser humano –  lança e remete “algo” de si.

A propósito de “falar”, Heidegger lembrará a importância de se fazer uma distinção radical  entre a pura nominação (nota 52)   e a enunciação (nota 53) . Na nominação deixa-se ser o que é a aquilo que está presente. É certo que a nominação implica aquele/a que nomeia, mas o próprio do nomear é, justamente, que aquele/a que nomeia não intervém a não ser para desaparecer ante o ente: é como se ele/a desaparecesse, sumisse, evaporasse. Ao contrário, na enunciação aquele/a que enuncia intervém intercalando-se. “E se intercala como quem domina o ente para falar sobre ele” (nota 54) . Esta distinção pode ser muito esclarecedora do papel da” fala” na clínica onde o pronunciar do/a partilhante será  predominantemente “enunciativo”, na medida em que estará “falando” de “si mesmo/a”, enquanto o ouvir do/a terapeuta será inicialmente, de preferência e, na medida do possível, “nominativo”, isto é, ele/a inclinará sua atenção ao nome, procurando encontrar o nomeado com a menor inter-ferência possível de sua própria historicidade ou escolhendo pré-dominar este aspecto de sua historicidade.   Esta postura clínica facilita a possibilidade de apreensão, por parte do/a clinico/a, do que é próprio a aquele mundo humano e,  que se apresenta através desta linguagem que fala. Uma linguagem que tem essa característica de estar em tensão entre a sua singularidade própria e a possibilidade de se tornar “com”: sem esse “com”, nunca é demais lembrar, não seria linguagem. Linguagem, então,  também referida a uma, a  esta vida. 

O Heidegger maduro, segundo Loparic (nota 55) conceberia a linguagem de modo muito diferente (nota 56) daquele tomado por Wittgenstein, uma vez que  ele não buscaria  “elucidar o verbalizado, mas, precipuamente, apreender o apenas “acenado” ou “gestado” e, neste sentido, indicado”.  Para isso, notará como “o tema do silêncio ganhou uma importância cada vez maior no seu pensamento….  entre as “figuras” do dizer, o silêncio, e mesmo o silêncio sobre o silêncio”. Loparic lembrará que isto seria uma reafirmação e ao mesmo tempo, um ultrapassamento do parágrafo 7 do Tractatus, que diz “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (nota 57). Uma indicação clínica preciosa.

Como, aliás,  “escuta” o pintor paulistano Sérgio Fingermann: “Com o silêncio aprendemos a ver no escuro. Aprendemos novos tons de escuro. Aprendemos a ver o visto. O silêncio ensina que a noite tem suas claridades. Às vezes, o silêncio se transforma em esfera transparente. Imobiliza-se. Fica “sendo”. È uma espécie de gerúndio. É como cápsula que se contém: fica sendo o não-ver. Fica sendo o não-estar. É o caminho até nossa solidão. Há chamados do silêncio. Há sentimentos que vêm de lá, ou, então, são feitos ali. No silêncio pensamos sem palavras.” (nota 58)

Para Loparic “não existiria mais qualquer possibilidade de tomar o termo “dizer” como sinônimo de “verbalizar”. O termo “dizer” deve ser entendido a partir do sentido do verbo “dicere”, em latim, (que quer dizer) anunciar solenemente e, que por seu turno,  remonta  à raiz indo-européia “deik” ( que teria o sentido de) mostrar, apontar, indicar: in-dicar” (nota 59)  A palavra antes de ser uma “parábola” é uma “dica”. A fala antes de contar uma “fábula” é um gesto que desoculta uma “gesta”, “em última analise até o “calar”, verbal ou corpóreo, passa a valer como um modo de dizer indicial, precisamente daquilo que está além do alcance de qualquer  ato fonético ou comportamental (nota 60). Heidegger ao dizer que “a linguagem fala”  preserva o caráter originário “indicativo” do dizer humano.  In-dica o vivido.

Por caminhos e razões diferentes  Wittgenstein  e Heidegger  desconstruíram a noção de “verdade” como certeza científica de um modo radical. Simultaneamente e, de modo diverso, trazem a possibilidade de discutir a legitimidade da clínica existencial de outro modo, que não havia antes deles. Karl Otto Apel (nota 61), que trabalhou no campo da filosofia e da semiótica filosófica, vislumbra essa aproximação  pela  referência às noções de  “mundo da vida”, na tradição fenomenológica e  “forma de vida”, em Wittgenstein: “(em ambos) há uma absolutização do a priori da contingência do mundo da vida…aludindo à exigência de consistência pragmática do filosofar” (nota 62). Para este autor, Heidegger e Wittgenstein dizem que para a filosofia ser consistente em sua prática,  não será possível não levar em conta o contexto, as circunstâncias da vida vivida.  Se isso é assim para a filosofia, sempre em busca das condições de universalização dos conceitos, então, para a clínica – o reino da singularidade – isto é definitivo. Não há possibilidade de um pensamento clínico,  conseqüente e eticamente responsável,  sem a impregnação constante das contingências. Em clínica o ético é con-tingente – o “ente” “tingido” pelo que é “com”.

Os dois filósofos, para  Apel,  tornaram possível esse “giro crítico da linguagem e do sentido”  e, noutro âmbito,  um “giro pragmático-linguístico  e hermenêutico da filosofia”. Acompanhar esta argumento – sem aderir a ele – facilitará, talvez, o entendimento de como a questão ética foi re-colocada,  mormente para o que  interessa a este trabalho, a legitimidade da clinica existencial. Ou, em outras palavras, como uma clínica consistente e responsável,  pode ser pensada no  lugar do incerto.

4. A Certeza Incerta

A  noção de certeza e sua importância  não nasceu com o homem: foi criada por ele. A certeza para o chamado  “pensamento moderno”, que vai ser a base para a  verdade científica,   vem da evidência vivida por uma pessoa em sua experiência interna.  O certo é aquilo que ela acredita perceber,  e não a existência real, efetiva,  de coisas ou pessoas no mundo externo, por exemplo. Os objetos verdadeiros são os objetos da sua consciência, vale dizer, as suas próprias percepções, as sensações, ou as  representações que faz  do mundo externo. As coisas e as pessoas do mundo externo são, para esse “sujeito”, o resultado das inferências que faz sobre a sua  base de dados, que são, por sua vez,  imanentes – imantados no ente – à sua própria “consciência”. E será essa “in-ferência” – a “ferência” do “in”, do interno – que tornará legítimo o pensamento, que justificará a verdade, trará a certeza. Na clínica existencial, um modo de expressão disso é o/a terapeuta que diz: “eu sei que ele é assim, eu sinto isso,  percebo o seu ser” e passa a agir e a se relacionar com essa pessoa “in-ventada” por ele/a.

Aquilo que uma pessoa  toma como realmente existente no mundo externo, no entanto,   poderia estar somente na sua cabeça. Como é o caso também do sonho ou do delírio. Na história da filosofia o primado do interno, do que está “dentro” de si, tomado como base suficiente para o conhecimento, tem uma tradição importante, que  começa com Descartes no século 17 e vai – pelo menos – até Husserl no século 20. A discussão, aqui, não é sobre aquela certeza subjetiva da experiência interna, como  “sentir dor” (nota 63) , ou viver uma revelação mística. Ou  mesmo que uma pessoa possa ter a impressão de ter apreendido o “ser”  de uma outra pessoa”. O que se questiona  é que se possa privilegiar essa certeza pessoal – que é legítima –  como um conhecimento do mundo externo válido para as outras pessoas,  entre as  pessoas, intersubjetivamente: tomá-la  clinicamente como verdade definitiva –  válida em qualquer circunstância, legítima por si.  Como faz a ciência moderna.

No limite do conhecimento da ciência, lá, no “mais fundo”, está,  como base, essa certeza da experiência interna.  Em outras palavras, o que  se traz aqui como questão é que  um conhecimento, para ter validade, para ser legítimo, não pode estar fundado na experiência interna de certeza vivida por uma única pessoa. E, uma pessoa que não se apresenta, que não pode ser confrontada, que é  desencarnada, ideal, fora do mundo, meta-física, ou transcendental. 

E o trágico é que é esse mesmo “saber” é que vai justificar – tornar justo – modos de interferência clínica socialmente legitimados, sobre uma pessoa, que irão da alteração de seus processos psíquicos através de intromissão de substâncias químicas com muitos danos corporais, do aprisionamento e/ou imobilização física (camisas-de-força, internação compulsória), da imposição de  intenso sofrimento físico (choques elétricos, banhos de contrastes térmicos), até a mutilação definitiva  do seu corpo físico (lobotomia) (nota 64). 

Se a experiência interna, mesmo num ser humano “histórico”,  fosse aceitável como origem do conhecimento comum, universal,  aquele que está conhecendo teria que poder  expressar as certezas dessas experiências internas, mas o faria numa linguagem privada, que ninguém mais poderia entender, pois só designaria idéias privadas, como em Locke (nota 65). Mas uma linguagem privada não é concebível porque suas regras – as sintáticas e as semânticas – não poderiam ser ensinadas nem aprendidas por meio de critérios publicamente acessíveis para se seguir regras. A rigor, nem linguagem seria. Mesmo na tradição kantiana a pessoa poderia chegar a conhecimentos válidos, por si mesma,  sem necessidade de compartilhar significações com os outros – estabelecer linguagem –  uma vez que o critério formal de verdade é o da concordância das idéias com as leis gerais do entendimento e da razão. Buscar a concordância com os outros seria útil para evitar erros, porém, não necessário.

Para visar a questão em outro âmbito, pode-se perguntar como essa experiência interna de um “eu” único, des-historicizado,  pode ser justificada como base para  um conteúdo de significados, de sentidos,  que seja compreensível, que tenha a possibilidade de uma  comum-apreensão. Para que algo seja compreensível por outra pessoa teria que estar pressuposta uma linguagem, um modo de partilhamento  com outros. 

5. Linguagem e Contexto

Com-partilhar com outros um conteúdo vivido significa estabelecer uma linguagem, isto é, obedecer (seguir)  uma regra de comunicação que se torna pública (ao menos para esse público compartilhador). E essa regra  por tornar-se pública, se torna  controlável. Como lembra Wittgenstein  “um só não pode seguir uma regra” (nota 66). Só haverá  compreensão se existir uma linguagem (com)vivida  pelas pessoas envolvidas, um “jogo” comum, com suas regras.   Este é um pressuposto, um tipo de a priori, do “jogo de linguagem” da compreensão.  Este “pré”, esta “regra”, precisa valer para os interlocutores: se não for assim não se estabelece uma “con-versa”, uma linguagem. A regra compartilhada – esse “pré” –  é,  por definição,  intersubjetivamente válido.  Partilhante e clínico aceitam, de antemão, como regra de organização dos sons, que quando emitirem sons aproximados de  “ver-me-lho” estarão se referindo a aquela cor ali (nota 67) . Mas nada os impediria de usar o som “red”,”rouge” ou “taramentouiste”, para indicá-la, mostrá-la, dar sua referência. 

Esta regra, esse “pré” compartilhado,  “entre”,   é que torna possível a compreensão  de “algo” como “algo”. Para Apel, este seria um novo paradigma da filosofia , uma vez  que a primazia da teoria do  conhecimento passa à  experiência no mundo externo. Experiência  que  não é  certa, porque é tomada  por cada pessoa de um modo,  mas que, desse modo, através dessa regra compartilhada – a linguagem –  é passível de ser  compreendida e aceita publicamente. Além disso, a linguagem é controlável e corrigível segundo certos critérios, eles também, pactuados. Muito diferente, portanto, da certeza subjetivo-privada da experiência  interna. 

Novamente: não se está aqui excluindo a legitimidade das vivências “internas” de uma  pessoa. Ao contrário. Clarice Lispector: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada” (nota 68)  A “verdade inventada”, em trânsito, em constituição – com-instituição – nesse grafar em palavras o que era “pré” até então e, que aqui, numa outra pessoa, transforma um pré – seu – em sentido, com o qual lida. Eventualmente lida com esse “sentido”  tomando-o como uma “terrível limitação”. Ou não. A qualquer um/a  é dada a liberdade da “certeza subjetiva”, ainda que, em contato com outra pessoa ela possa compartilhar regras, saberes, conhecimentos. Como Clarice. Ela escreve, outro partilha das suas vivências. Vive-as, inventa-as, agora a seu modo.

  Um “louco” talvez seja alguém que não encontra linguagem para compartilhar seu mundo “interno”. E,  por seu mundo próprio não ser apreendido por outros,   ele é tirado  do convívio social, por uma parte desses outros. Passa a ser tratado como “diferente”, perigoso – já que desconhecido –  deve ser afastado da “comum-unidade”. O “louco” pode ser alguém desesperado em busca de linguagem, em busca de contato, de poder mostrar suas vivências, de ser compreendido – até por si mesmo –  mas que tem dificuldade em  se utilizar de  regras sintáticas e semânticas que pudessem ser compartilhadas por outras pessoas – e consigo. Raramente o “louco” é uma pessoa com comprometimentos corporais, físicos ou químicos na origem das dificuldades de suas vivências e                                                                                                        con-vivências.  Muitas vezes elas são adquiridas: não poucas vezes, através dos tratamentos.

O argumento usado por Descartes nas Meditações (nota 69) “é possivel q eu esteja sonhando”, para Wittgenstein não tem qualquer sentido, uma vez que essa “afirmação” estaria ela mesma  sendo sonhada. Essas mesmas palavras só teriam significado se seguissem uma regra fora de si, independente de si. Não se pode saber se alguém ao pretender seguir uma regra, segue essa  regra de modo certo ou de modo errado sem a possibilidade de recorrer a uma instância independente da sua própria “consciência”. Não haveria diferença entre o significado de seguir a regra e o significado de crer que se segue a regra. E,  justamente nesta supressão da diferença entre fazer e crer que se faz, é onde se baseia a certeza indubitável da experiência interna na filosofia moderna.  Com todas as letras:  a certeza científica, a verdade provinda dela,  é uma questão de fé (nota 70) . O que Wittgenstein  permite é mostrar que diferentes jogos de linguagem – religião, ciência, filosofia, psiquiatria, psicanálise, filosofia clinica – ao serem comparados, facilitam a descrição do uso que as pessoas fazem, em seu cotidiano, da linguagem.

Um jogo de linguagem já pressupõe, para sua existência, outros jogos de linguagem, os quais por sua vez têm que estar entretecidos com a práxis de uma “forma de vida”. Nomear, formar uma linguagem,  é um ato mental notável, quase um batismo de um objeto. Mas esse nome não leva consigo nenhum significado compreensível ao objeto. Ao nomear “isto” como “mesa”, se estará dando um predicado linguístico a “isto”. E é por esta razão que não há possibilidade de se criar uma teoria do significado linguístico “universalmente válida”, por intermédio da coordenação de “nomes próprios lógicos” com dados “puros” dos sentidos  enquanto partes de um  mundo qualquer. O jogo lingüístico da denominação já pressupõe os jogos de linguagem, isto é,  dependem do contexto de vida prático, que por sua vez  constitui o universo possível de referências para as palavras, vale dizer, as possibilidades de seus significados.

Os usos  da linguagem por uma pessoa no cotidiano, estão entretecidos com suas expressões corporais, com as suas atividades, com as suas interpretações do mundo. Ela já está enredada com os outros na interpretação lingüística do mundo,  que em seu cotidiano está sempre já guiado por essa interpretação.  O pensamento cartesiano não se dá conta disso, de que em seu ponto de partida – “penso logo existo” – já está tomando como pressuposto muito mais que o “puro pensamento”. Está pressupondo uma linguagem e, portanto, uma comunidade de comunicação. Há um “pré”, um a priori do pensamento que é a linguagem (nota 71) . Os “outros” já estão lá, pressupostos, mas, a eles o raciocínio de Descartes não dá voz. E quando aquele “ puro  pensamento”  – o cogito – se afirma pretendendo dizer o que é válido e o que não é, o que é certo e o que não é, o que é verdadeiro, ele já está no terreno do discurso argumentativo, sem dar ouvidos ou voz aos outros.  A sua certeza, a sua verdade, o que considera válido ou legítimo,  não passam de  argumentos.

Mesmo  no mais radical distanciamento que a reflexão possa se colocar – seja em Descartes ou mesmo em Husserl – sempre já estará pressuposta a linguagem como meio, como lugar  da validade intersubjetiva do sentido, em conjunto com a intersubjetividade comunicativa. Para Heidegger, lido por Apel,  mesmo Kant, em última instância,  partiria de uma  pressuposição  cartesiana de um “sujeito que existe isoladamente” e também,  do primado da experiência interna desse sujeito (nota 72). A diferença e a relação entre “dentro” e “fora” da consciência de uma pessoa só pode ser compreendida  se já estiver pressuposto que essa pessoa existe,  que ela é um  “ser no mundo”.  No “ser” já  teriam que estar, que conter,  os entes que “estão”, que “existem” fora dessa pessoa. Kant sempre  lastimava  o “escândalo” da Filosofia: a falta de prova da existência do mundo externo. Heidegger dirá que o “escandaloso” é que  “ se espere e se tente sem cessar semelhantes provas” (nota 73) . O mundo já é mundo. O homem “munda”, forma  mundo. Wittgenstein vê a filosofia e seus mal-entendidos como conseqüência da falta de entretecimento de sentido  de seus jogos de linguagem – “que caminham no vazio” – com a práxis da vida.

O “mundo da vida” – “lebenswelt”, em alemão – na leitura que  Apel  faz de Wittgenstein e Heidegger,  permite a ambos  uma base mais profunda que o da tradição moderna.  Ele seria pré-reflexivo , se daria  como um “pré”, “antes” do próprio pensamento. O “mundo da vida”  seria mais “compreensível”, teria mais “sentido”, seria mais significativo, para os homens viventes.

6. Mundo da Vida e Contexto

 O conceito de “mundo da vida” foi  introduzido por Husserl em seu livro “As Crises da Consciência Européia” (nota 74),  para ancorar, para fundamentar os pressupostos do conhecimento científico e filosófico. “Fazem parte de todo o pensar científico e de todo o questionamento filosófico  obviedades previamente disponíveis, que o mundo existe, que existe sempre previamente”(nota 75) .  Esse “mundo pré-dado”, ele dirá, “é pré dado a todos nós…pré dado como “o” mundo, o universal-comum. Ele é o solo permanente de validade, uma fonte constantemente pronta de obviedades a que recorremos sem mais, como homens práticos ou como cientistas”(nota 76). Mesmo a lógica só pode ser legitimada, validada, “confirmada” por algo que vem antes, que se relaciona com a vida dos homens em suas práticas, com o “mundo da vida”:  “o relativo ao sujeito…é em última instância fundamentador da validade de ser teórico-lógica para toda a confirmação objetiva, ou seja, funciona como fonte  de evidência, fonte de confirmação….o que é efetivo no “mundo da vida”,  como ente válido, é, por conseguinte, uma premissa” (nota 77) . Para Husserl, para sua fenomenologia, sublinhe-se, resuma-se: o “mundo da vida” é uma premissa, um a priori.

 “O “mundo da vida” é um domínio de evidências originárias…para o acesso científico ao mundo da vida fazer valer o direito originário destas evidências e sua superior dignidade, frente à das evidências lógico-objetivas, no que se refere à fundamentação do conhecimento. Tem de ser …trazido à evidência última, o fato de que toda evidência das produções lógico-objetivas…tem as suas fontes ocultas de fundamentação na vida …produtiva…O caminho conduz aqui desde a evidência lógico-objetiva… de volta à evidência originária na qual o “mundo da vida” é, em permanência,  pré-dado” (nota 78). Não é pouco o que Husserl afirma na frase anterior: mesmo a evidência “lógico-objetiva”  só se fundamentará na evidência mais “originária” do “mundo da vida”. Ele complementará lembrando  que mesmo “as  teorias são configurações humanas, pertencentes, assim, a essa unidade concreta do “mundo da vida” (nota 79) .   

Gadamer (nota 80)  que acompanhou de perto o trabalho de Husserl e depois o de Heidegger, termina seu trabalho sobre “o mundo da vida” dizendo: “ gostaria de concordar com o impulso ético que reside na idéia husserliana de uma prática nova estabelecida em termos do “mundo da vida”, mas, colocar ao lado desse impulso…o antigo impulso de um autentico “sensus Communis” (nota 81)  seria inadmissivel” (nota 82)

Para Apel, Wittgenstein e Heidegger chegaram, cada um a seu modo ao “mundo da vida” , e foram muito mais radicais do que Husserl no confronto com a tradição filosófica. Husserl teria mostrado como as ciências, ao buscar sentido, baseadas em idéias e abstrações estavam, de fato, tomando como pressupostos os “sentidos” que seriam próprios do  ”mundo da vida”. Como Husserl era um “filósofo da consciência”, os sentidos do “mundo da vida” se constituiriam e se legitimariam, intersubjetivamente, através da intencionalidade de uma consciência pensante. Em outras palavras a constituição dos sentidos estariam submetidos a uma consciência (ainda) transcendental-solipsista. Husserl não teria se dado conta em seu raciocínio que essas constituições, mesmo no “mundo da vida”, já estão, sempre, enquanto publicamente válidas, mediadas linguisticamente e que, nessa medida, já pertencem a certas formas de vida condicionadas sociocultural e historicamente (nota 83).

Neste ponto,  talvez, é onde se encontram os limites de uma concepção clínica baseada numa fenomenologia husserlliana, que nos seus limites estaria condicionada a uma consciência – ainda – solipsista, em que o “outro”, como tal, “sociocultural e historicamente” condiconado, não se constitui. Em Husserl as subordinações intencionais da consciência do ego,  que são  pré-linguisticas,  têm que fundamentar as constituições de sentido do “mundo da vida”: o sentido é “dado”, instituído a partir da consciência e, na consciência.  Para Wittgenstein e Heidegger esse mesmo “mundo da vida” se situa no lugar do que não pode ter base, do que não é “baseável”(nota 84) . Em Heidegger, na figura do “projeto lançado” (o ser-lançado), historicamente condicionado como “ser-no-mundo” (nota 85); em Wittgenstein na figura das “formas de vida” que constituem o pano de fundo dos jogos de linguagem que em cada caso se utiliza. Haveria, portanto, uma pré-compreensão do “mundo da vida” que é lingüística e historicamente condicionada. E por essa razão se torna impossível retroceder a um “ponto zero” do pensamento, onde este se acharia livre de preconceitos (nota 86).  O pensamento sempre se dará a partir de pré-juízos, de pré-conceitos.

Em Husserl há o exercício de uma intencionalidade  de uma consciência pura, auto-reflexiva. Para Apel  a reflexão da consciência, como exercício do pensamento,  é que poderia produzir essa evidência de que a significatividade do “mundo da vida” pressupõe uma constituição de sentido pré-reflexiva. Essa constituição de sentido pré-reflexiva tem como base um “pré” que é corporal – de onde se estabelecem as perspectivas – e, um “pré” prático dos interesses – que motivam o conhecimento – e, ainda,  um “pré” que se expressa pela facticidade (por seu ser de fato) e pela historicidade  como ser-no-mundo. Estes “prés” seriam como  uma pré-estrutura necessária à compreensão do mundo , que precede ao – para ele – a priori da reflexão sobre o que é válido, o que é legítimo.

Mas estes “prés” não são uma volta para a experiência interna, lugar onde tudo se dá, isolado do mundo, como se vinha criticando?

Não, porque esses “prés” já são, eles mesmos, conseqüência da relação com o “mundo”: eles são con-formados pela linguagem. Já são exercício. Cada  “a priori pré reflexivo” já  é um modo de linguagem. Um modo de linguagem ligado, conectado à primazia da vida prática.  Essa “vida prática” constitui sentido. E se refaz nesse exercício. Faz a “ex-peri-ment-ação”:  a ação de sair de si – “ex” – se relacionar como o movimento em torno – “peri” – e voltar-a-si. Essa “relação com o movimento em torno”, ao ser absorvido, nesse próprio ato, descreve a constituição disso, a linguagem. Tomada para si o “resultado” próprio/singular do contato-com-o-mundo, aquilo que fora  extro-vertido-de-si, não é mais “aquilo”: passa a ser um “outro aquilo” que é o que se está nomeando como “pré”.

E será esse “pré”, assim constituído, sempre re-constituindo-se, que conformará, dará forma à nova “ex-peri-ência”: o “estado” – a “ência”- em que a relação “ex” com “peri” se faz. Em outras palavras, na própria língua a palavra-conceito de “experiência” já está pressupondo um “pré” que a constitui: sem esse “pré” não há experiência possível. Sem um modo de linguagem – aqui se entende linguagem assim – não se realiza experiência. Linguagem constitui  mundo.

7. Ética, Legitimidade e Linguagem

A linguagem é esse “pré” que  se dá “entre”.  Entre um e outro, num e noutro, só se dá em relação.  É, por definição um sentido comum pré-acordado, um consenso. Linguagem privada é um contrasenso, ou mais propriamente: a loucura. A legitimidade da clínica existencial se faz através desse modo de consenso pré-estabelecido que é a linguagem. Será só através da experiência ininterrupta  da linguagem que uma comunidade poderá aceitar o sentido de um tratamento, de uma terapêutica.

Este sentido de legitimidade pela linguagem, na “área clínica”, desfaz a submissão das teorias à autoridade dos conhecimentos científicos. As ciências são importantíssimas, mas seus princípios e seus modos não são aplicáveis neste campo de saber. Aqui os conhecimentos partem do singular para chegar ao singular, são caminhos sempre em constituição, exercício entre o pensamento e a prática e, suas referencias são éticas. Não se  amparam em “teorias” vinculadas a certas idéias – filosóficas -, que em seus limites encontrariam certeza ou ao menos uma certa impregnação na ”verdade”.

 A ética, neste campo, se dá através de um consenso, do ir e vir. Ela não está em algum lugar obscuro, a partir do qual emanaria suas “ordens”: a ética se coloca na  claridade das ambigüidades humanas, ali onde a linguagem se faz. A  ética não fala  de “exatidão” pois “pertence à estrutura essencial do fenômeno ético – e clinico – o fato de que aquele que atua – um e outro – deve saber e decidir por si mesmo e não permitir que lhe arrebatem essa autonomia por nada” (nota 87).   A ética não pode ser entendida como um exercício de “filosofia da vida” (nota 88). A vida é um modo de ser próprio, singular, cada qual abrindo-se para as suas circunstâncias, o seu mundo, a sua memória. “A estrutura da existência não pode ser confundida com um existencial derivado… o que é “bom” no viver também é um conceito derivado… o bom originário é a herança que nos provém da tradição e tem o sentido daquilo que favorece ou facilita o nosso ser-no-mundo” (nota 89). História, tradição, memória, herança que  vem através desse “em comum” privilegiado que é a linguagem. Linguagem que cria a possibilidade da com-preensão – a “a-preensão com” – que “valida o valor”, dá sentido à ética. Legitima.

A linguagem ao dar sentido à ética  através da compreensão, por sua característica de exercício constante de apreensão no ir e vir de sentido, permite o re-vigoramento  do sentido ético na prática clínica. Lá, algumas vezes,  não ser compreendido pode ser melhor do que se tornar prisioneiro do que o clínico entende como  “o bem” para si.  O “bem estar”, a “paz de espírito”, a ”tranqüilidade”, a “felicidade” podem não ser o seu “assunto” (nota 90), a sua querença em clínica. Sem o exercício ininterrupto da linguagem não há clínica legitima.

No trabalho de “contenção” de uma pessoa “em surto”, com comportamento agressivo e violento, é imprescindível criar  a possibilidade de  estabelecimento de outros modos simultâneos de linguagem (nota 91) , pelas quais  ela possa entrar em contato com sua própria  humanidade, sua constituição espiritual.  Imobilizá-la certamente evitará que outras pessoas sejam atingidas ou feridas, mas com isso aquela pessoa ainda estará lá, mesmo presa,  com suas vivências, desatendida, inapreendida, em sua solidão muitas vezes desesperada. Para que se acalme lhe invadem o corpo com violência socialmente autorizada, através de produtos químicos, esperando-se o efeito – que não deixa de ser “mágico”, mesmo sendo “controlado” – daquelas substâncias. Sua vida, seus viveres são como que afastados de seu próprio domínio, para lugares longínquos, brumosos, confusos. Nessa lonjura espiritual em que passa a  viver,  maior será sua dificuldade para tornar comum as suas vivências, mais difícil estabelecer uma conversa, transformar seu mundo interno. E não se desqualifique a dificuldade dos contentores, não se valide só com isto a – valorosa e necesária – luta antimanicomial. Aqueles que estão fazendo o seu papel, obedecendo ordens, como aqueles que os contestam por terem vivido outras tantas experiências similares, não seriam capazes, eles mesmos,  de estabelecer uma linguagem mínima, entre si?  Todos têm a sua razão, falam de um lugar defensável, mas, há um que sofre em seu corpo, em seu espírito as terríveis conseqüências desta afonia. Contido, drogado/medicado, ele  é inserido numa lógica de isolamento que, no mais das vezes, trunca sua possibilidade de vida futura autônoma. Também aqui a clínica só se legitimaria através da linguagem. Quem com o olhar, ou com o ouvir de um breve relato diagnostica um transtorno, uma síndrome, autorizando o uso da força social comum, para em seguida golpear-lhe com uma cápsula ou uma injeção, poderia se dedicar ao exercício da linguagem: ouvir este que chega; ouvir e conversar com quem o traz; trocar conhecimentos com quem está a seu serviço, “treinando-lhes os ouvidos”; trazer para perto, dialogando com quem pensa diferente e que vem de outras experiências, colegas ou não, envolvendo-se e envolvendo-os  nas soluções, antes de repetir os próprios procedimentos. Trata-se de  desinternalizar, desmanicomializar a si próprio neste seu papel existencial. Tramar linguagens. Clinicar. Legitimar-se. 

O sentido do que se afirma para os outros ou para si é liberdade em exercício. Re-instituição da sua lei própria, que se projeta e se repõe como linguagem, para si, para o outro,  disposto, a apreender, a compreender.   O sentido de sua lei – a legitimidade – não  perde sua natureza humana, transitória.

Cláudio Fernandes    2013 e 2020

Notas

nota 1 – Werner Karl Heisenberg, 1901 a 1976, físico alemão, formulador da “teoria da incerteza”, ligado à teoria quântica, Nobel em 1932

nota 2 – Heisenberg, A Parte e o Todo, pg 154 e 155

nota 3 – Lacan, Jacques , Escritos,  pg 882  (Jacques-Marie Émile Lacan 1901 a 1981, psiquiatra e psicanalista frances, ficou conhecido por suas contribuições  à psicanálise, tomando por base sua clínica e uma leitura muito pessoal dos textos de Freud, incorporando aspectos do estruturalismo frances, da lingüística, da matemática e da filosofia)

Nota 4 – Bertoche, Gustavo, Realidade e Realização – a dialética do real na epistemologia de Bachelard, pg 233

nota 5 –  talvez ainda como parte da herança da tradição da lógica de Port Royal

nota 6 – Gottlob Frege, 1848 a 1925, matemático, filósofo e lógico alemão, considerado um dos pais da filosofia analítica e da filosofia da linguagem

nota 7 – Frege, Conceitografia  pg 43 in Lógica e Filosofia da Linguagem

nota 8 – idem,  pg 61

nota 9  – Frege,  Sobre a justificação científica de uma conceitografia pg 59

nota 10 – idem,  pg62

nota 11 – Bertrand Russell, 1872 a 1970, matemático, lógico e filósofo britânico, com um amplo espectro de obras em várias áreas do conhecimento humano, foi muito influente nas formulações teóricas sobre lógica e linguagem, nas déadas de 20 e 30 do século 20, Nobel em 1950

nota 12  – Santos, Luís Henrique,  pg XIV , de   de vida e obra de Russell – Os Pensadores

nota 13 –  “tudo aquilo que implica a totalidade de uma coleção não deve ser membro da coleção”, pg XVII

nota 14 – Russell, pg     “nosso conhecimento do mundo exterior” 

nota 15  – idem, pg 154

nota 16 – serão muitos os desenvolvimentos de seu pensamento, seguindo várias direções, com idas e vindas,   mas não está no escopo deste trabalho descrevê-las ou desenvolvê-las. Fique apenas o registro, que a questão da relação da linguagem com a lógica, do controle das indeterminações constitutivas daquela por leis certas e seguras desta, colocada por Frege, se tornou a de Russell e de toda uma tradição da filosofia, como para Carnap, Wittgenstein e, Austin

nota 17 –Wilhelm Dilthey, !833 a 1911, historiador, psicologista e sociólogo alemão, considerado o pai da tradição historicistal

nota 18 – Frans Brentano, 1838 a 1917, filósofo e psicologista alemão, que introduziu o conceito de intencionalidade, é considerado uma gande influência na formação de Freud

nota 19 – Sigmund  Freud, 1856 a 1939, medico neurologista austríaco, criou a psicanálise, e foi, talvez, a  figura intelectual de maior influência no ocidente no século 20

nota 20 – Edmund Gustav Albrecht Husserl, 1859 a 1938, filosofo alemão, foi o criador da fenomenologia transcendental, um dos movimentos filosóficos mais importantes no século 20 

nota 21 – “investigações lógicas”

nota 22  – Husserl,  pg 1, Investigações Lógicas dem , pg 1

nota 23 – Husserl trabalha sob a noção “metafísica” de um “mundo”, newtoniano-galileico, composto de sujeitos e objetos

nota 24 – Husserl,  pg 3, Investigações Lógicas

nota 25  – idem

nota 26 –  idem

nota 27  – idem, pg 36

nota 28 – Gianni Vatimo, 1936, filósofo italiano, discípulo de Hans-Georg Gadamer, com trabalhos importantes sobre Heidegger e Nietzsche

nota 29 –  Vattimo, pg 10 e 11 “introdução a Heidegger”

nota 30  – idem, pg 24

nota 31 –  o marco inaugural da psicanálise – “A Interpretação dos Sonhos” – também é de 1900

nota 32 – Soller,  pg 33 “O inconsciente…”

nota 33  – idem,  pg 34

nota 34 – Ferdinand de Saussure, 1857 a 1913, lingüista suíço, cujas idéias serviram para um grande desenvolvimento dos estudos linguísticos, com grande destaque pela incorporação de suas idéias no movimento estruturalista frances, no século 20

nota 35  –  Claude Lévi-Strauss, 1908 a 2009, antrpólogo e etnólogo frances, considerado o pai da antropologia moderna  e do estruturalismo

nota 36  – Ludwig Josef Johann Wittgenstein, 1889 a 1951, filósofo, matemático e lógico austríaco,  talvez o mais influente autor nos campos da lógica e nos estudos da linguagem

nota 37 – Wittgenstein,  Tractatus

nota 38 – esse trabalho caracteriza o chamado “1º. Wittgensten”, que  será criticado por ele mesmo, o  “2º.Wittgenstein”

nota 39  – Wittgenstein, pg 165, Tractatus – 4003

nota 40 –  a partir deste ponto de vista  a clínica existencial deveria preferencialmente ser exercida por lingüistas, matemáticos, ou engenheiros de informação, cientistas cujo requisito fundamental seria uma sólida formação em lógica

nota 41 – Wittgenstein, pg 23,  “investigações”

nota 42 – idem, pg 22

nota 43  – idem, pg 23

nota 44 –  Ser e Tempo

nota 45 – Heidegger,  pg 224, Ser e Tempo

nota 46 – Heidegger, pg 10, Caminhos da Linguagem

nota 47  – idem,  pg 67, Ser e Tempo

nota 48 – idem,  pg 77, idem

nota 49  – o que é, o ser…etc..

nota 50 – referir algumas  formas de se tomar isso

nota 51 – citando Seminário de Zollikon e Seminário Thor

nota 52 –  “nennen”, em alemão

nota 53  – “aussagen”, em alemão

nota 54 –  Heidegger, pg… Seminário  de Thor

nota 55  – Zeljko Loparic, 1939, filósofo croata naturalizado brasileiro, é um dos maiores especialistas contemporâneos em Kant e Heidegger e se dedica a estudos de psicanálise, na vertente de D. Winicott

nota 56 – Loparic, pg 288, “Verdade e Respeito”

nota 57 – Wittgenstein, pg 281, “Tractatus”– é como termina-o

nota 58  – Fingermann, pg 12

nota 59 – Loparic, pg 289, “Verdade…”

nota 60 –  Lopairic cita Heidegger para quem a linguagem é uma Sage (gesta) e q a Sage é uma Zeige (dica). A etimologia não serve para provar nada mas para ajudar a pensar aquilo que é nomeado, mas q ainda não foi desdobrado”

nota 61 – Karl-Otto Apel, 1922, filosofo alemão, da 2ª geração da escola de Frankfurt com Habermas, desenvolveu uma teoria da linguagem, que ficou conhecida como semiótica filosófica transcendental, tendo em seus trabalhos aproximado o pensamento de Heidegger ao de Wittgenstein

nota 62 – Apel, pg 73, “Semiótica transc..”

nota 63 – Wittgenstein, pg 98 e 99, “Investigações”

nota 64 – e  o modo de expressão desse saber são as “psicopatologias”, em geral um mal arrazoado compêndio de  observações viciadas em seus modos de apreensão, por agentes e “cientistas” com pouquíssima vivência  nas ocupações de cuidados humanos

nota 65 –  Locke, pg…. ,” Sobre o entendimento humano”

nota 66 – Wittgenstein, pg 138-242 e 243-363, “Investigações”

nota 67 – a questão de por que usamos esses sons-signos “vermelho” e não outro, está fora da esfera desta discussão, pois se entraria em questões teóricas da linguagem, que não cabem aqui

nota 68 – Lispector, pg 25, “Aguaviva”

nota 69 – Descartes – Meditações sobre a Filosofia Primeira

nota 70 – nada contra a dimensão religiosa, mas que se dê o nome próprio a cada coisa

nota 71 – a ação pela qual se pretende  tornar algo –isso, aquilo – comum – o que era “um” se tornar “com”

nota 72 –  Apel,  pg 37, “Semiótica”

nota 73 – Heidegger, pg    , Ser e  Tempo

nota 74  –  “As Crises da Cs Européia” como uma reação a Ser e Tempo (que foi a ele dedicado),  de seu discípulo, assistente e amigo Heidegger

[nota 75  – Husserl, pg 89, “Crises…”

nota 76 – idem, pg 99, idem

nota 77 – idem, pg 103, idem

nota 78 – idem,  pg104, idem

nota 79 –  idem, pg 106, idem

nota 80 – Hans-Georg Gadamer, 1900 a 2002, filósofo alemão, discípulo de Heidegger, desenvolveu amplos estudos em hermenêutica filosófica

nota 81 –  o “senso comum” de Descartes

nota 82 – Gadamer, pg …. “Hegel,Husserl, Heidegger” 

nota 83 – Apel,  pg 72, “Semiótica…”  

nota 84 – forçando um pouco a língua portuguesa

nota 85 – ver Loparic  “Ética e Finitude” pg 19 e seguintes

nota 86 –  no sentido que lhe dá Gadamer e que será objeto de observações no capítulo sobre aspectos da filosofia clínica, a seguir, neste trabalho

nota 87 – gadamer, pg 313, “Verdade  e Método”

nota 88 – Heidegger, pgfo 10, “Ser e Tempo”

nota 89 –  Loparic, pg 307, “Verdade e Respeito”

nota 90 – na filosofia clínica o tratamento é orientado a partir do “assunto” que a pessoa traz. É dividido em “assunto imediato”, aquele primeiro, a queixa inicial e “assunto último” que poderia ser traduzido como “a questão da pessoa”,, aquilo que a move

nota 91 –  o esforço das pessoas – enfermeiros, familiares – na tarefa de imobilização, também pode ser uma tentativa de estabelecer linguagem

pensamento clínico

 

O conhecimento da experiência humana, no ocidente, talvez possa ser dividido em   áreas ou campos muito diferentes entre si. Numa primeira aproximação estariam a educação, a religião, a arte, a ciência e a filosofia, cada uma caracterizando um modo de experimentar e conhecer que se subdividiria em modos muito diversos, através dos séculos.

Com o tempo cada divisão acabou se transformando em critério do que seu objeto é, ou seja, se tornou a medida de sua constituição, de sua essência. A medicina que cuida do corpo material do homem.   Nessa inversão a experiência perde seu valor de constituição, sua linguagem fica dependente do que essa área de especialização define como válido, como verdadeiro. Ela se torna uma instancia de decisão do que é possível e do que não é, como uma espécie de filtro, que só permite passar determinados aspectos das experiências, dos fenômenos, das coisas.

Na clínica que trata de questões existenciais isto se tornou dramático e trágico, porque não havendo uma área própria, ela ficou encaixada no âmbito da ciência, sob a divisão da Psicologia ou da Medicina – neste caso subdividida como Psiquiatria.  Muitas foram as razões históricas para este percurso, mas isto não justifica a permanência disto neste início de século 21. O século passado foi palco de uma profunda reviravolta das bases do pensamento ocidental, com alterações definitivas nos padrões e fundamentos das ciências.

A clínica existencial não tem um campo próprio de referências que acolha as suas práticas, as suas teorias, os seus métodos, os seus valores, suas tradições, seus saberes, suas dúvidas. Um campo próprio para ela não pode ser de natureza semiológica, porque as suas questões não nascem do olhar, mas teria de ser um campo semântico, porque tratam dos sentidos, produzidos pela escuta, como se verá à frente.

Num campo semântico próprio cabem todas as clínicas que se baseiam na escuta: as psicanálises – junguianas, kleiniananas, bionianas, freudianas, reichianas, lacanianas, winicottianas, etc – certas psicologias – associacionistas, rogerianas, da personalidade e outras –  as dasein-analises, as filosofias clínicas e outras.  Outras  práticas que oscilam oscilam entre a escuta e   procedimentos provindos de semiologias científicas como algumas psicologias – comportamentais, funcionalistas, gestaltistas, skinneristas – ou as clínicas psiquiátricas. Cabe interlocução, conversas, trocas de experiências num campo de fato apropriado.  

 Não há clinica, nesse campo, sem linguagem. A linguagem não fundamenta, ela legitima.  Nestes modos de clínica há uma linguagem que se estabelece entre o clínico e quem o procura, num processo de expressão, impressão, assimilação e transformação de sinais sonoros e gestuais, de parte a parte. Sinais que procuram se tornar veículos de vivências. O clínico busca apreender o que está indicado nas palavras, nas expressões, nos gestos, e nas combinações do que “vem” de lá, desse outro.

Falar e ouvir são práticas comuns, cotidianas, ordinárias.  No dia a dia é pratica comum transmitir e interpretar mensagens. O habitual é tomar-se o que a outra pessoa diz a partir das próprias referencias sem atentar para as suas referências, como se as palavras, os gestos, as expressões, tivessem um só sentido, um significado óbvio, comum a todos. Como se as referências de uma pessoa fossem as mesmas das do “mundo”.  Isto gera muita confusão, mal entendidos, controvérsias.  O “ouvir clínico”, entretanto, exige cuidados diferentes, especiais. É um campo de significações próprio. Em construção.

As ciências não estão isentas de dificuldades. Talvez, sofram de forma até mais aguda, na medida em que são também atividades dependentes da linguagem e, de outro lado, têm para si um elevado grau de exigência de certeza, de segurança e de precisão. Que nenhuma linguagem humana pode oferecer. O pressuposto básico do qual elas partem é que o significado de uma expressão (sonoro ou gestual) é denotativo, isto é, estritamente informativo, referencial, objetivo. Fala-se  do mundo, “como o mundo é”.  Pressupõem, portanto, uma certa “realidade” em que há  um sujeito que observa e, um objeto observado,  claramente distinguíveis, um do outro. O objeto referido ou denotado pela linguagem, estaria “no mundo”,  poderia ser claramente  definido, distinto  de qualquer outro. O “real” são os sujeitos e os objetos, a linguagem um modo de acesso a eles, de descrevê-los.

Nesta vertente está o trabalho clínico  de um  terapeuta “científico”, “técnico”, que busca “des-pato-logizar” – desfazer a doença ou o sofrimento – para  recuperar os significados verdadeiros, sólidos, certos para qualquer pessoa. Usando a lógica, a linguagem, uma linguagem lógica. E por isso a pessoa se torna “paciente”, o “objeto” no qual se fará uma intervenção. Ela tem um sofrimento, um desequilíbrio, está doente, precisa de cuidados seguros, firmes, sólidos, que se apóiam numa verdade. Trazê-la ao normal, à norma,  à normalidade,   (re)aproximá-la do mundo “real”, das “coisas objetivas”.

A clinica

Na área do atendimento às demandas das questões vivenciais, em toda extensão em que isto possa ser imaginado ou vivido pelas pessoas,  a maior parte das psicologias e as psiquiatrias são   conjuntos de conhecimentos (métodos, teorias) e de tratamentos que se propõem a estar no campo da Ciência. Como atividades desse campo, buscam obedecer aos seus critérios de objetividade, medição e controle. Como conhecimentos, se baseiam em certezas, de natureza filosófica, que estão, portanto, fora de seu âmbito de atuação. E assim, de fora, vem o suporte, o fundamento, o seu contato com a verdade evidente que, além disso, os legitima. A legitimidade de um tratamento científico viria de fora de sua própria experiência, de um outro campo, indefinido, nebuloso. Dito, por dificuldade e facilidade, filosófico.

 Mesmo no campo já mais propriamente da clínica existencial pode –se notar essa dificuldade.  Para Christian Dunker a “definição do que vem a ser psicoterapia ainda hoje é objeto de confusa classificação… seja pela sua orientação teórica, por seus critérios de habilitação, por seus fins ou por sua eficácia diferencial.  Sua afinidade circunstancial com práticas mágico-religiosas, com estratégias científicas ou com visões de mundo particulares combina-se com um amplo dispensário de técnicas (corporais, grupais, farmacológicas, pedagógicas)” (Dunker pg 20).  Já para Renato Mezan “psicoterapia é em 1904 um método de trabalho pertencente à Medicina, e que procura curar as doenças ditas “nervosas” através de meios psíquicos e não através de meios físicos…uma doença seria “nervosa” se não tivesse causas físicas… ou distúrbio orgânico” (Mezan pg 312).  No início, ainda segundo Mezan, a psicoterapia era “idêntica à psicanálise…(e para Mezan) a única psicoterapia” (Mezan pg 314) . Para  Dunker, também,  Freud teve um papel “fundador e inaugural” no campo das psicoterapias, tornando-se quase o protótipo do terapeuta nesta área, com  “uma recorrente combinação entre experiências de observação e experiências de tratamento psíquico…antes de se tornar psicanalista…era um clínico e um psicoterapeuta” (Dunker pg20).

No ambiente acadêmico, no mundo da Medicina e para o público leigo, há muita dificuldade em se estabelecer com clareza o que é uma “terapia”, uma “psicoterapia”, uma “análise”, um “tratamento psiquiátrico” ou um “acompanhamento terapêutico”.

Esse modo de entender a clínica “do espírito” veio da tradição da medicina do corpo. Nela, o médico ou o clinico  seria  “sobretudo, um leitor dos signos que formam o campo de uma semiologia e [que] organizam uma diagnóstica de forma a justificar as escolhas de tratamento… o clínico é também um prático e sua figura descende do cirurgião barbeiro, do médico de família ou do profissional liberal, cujo habitat natural é o consultório e antes disso, a  casa ou a rua, não o hospital ou a universidade…“(Dunker pg 21). Com muita pertinência, assinalará que “o clínico, no sentido da ciência médica moderna, deve submeter sua prática à primazia do método de tal forma a fazer corresponder…as regras da investigação científica às regras da condução do tratamento” (Dunker pg 21].

O campo da Ciência em que se inserem os cuidados ligados aos sofrimentos e aos modos de existir da pessoa está circunscrito à  área da Medicina chamada de Psiquiatria.  Como área médica os sofrimentos são tomados como “sintomas”, sinais indicadores de patologias, de desequilíbrios, de doenças, de “transtornos mentais”. Os tratamentos são baseados em quadros nosológicos ou psicopatológicos. Há uma espécie de bíblia, que serve de referência à toda prática psiquiátrica e mesmo a alguma prática psicológica: o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM. Ainda que note que nenhuma definição especifique adequadamente os limites precisos para o conceito de “transtorno mental”, nessa publicação  ele é “conceituado como uma síndrome (conjunto de sintomas ligados a uma doença)” (DSM IV pg XX)…que deve ser considerada como uma manifestação de uma disfunção comportamental, psicológica ou biológica no indivíduo” (DSM IV pg XXI)

Tome-se como exemplo os “transtornos obsessivo-compulsivo” “essencialmente” definidos como “obsessões ou compulsões recorrentes”. Lá se diz que “obsessões” são“idéias, pensamentos, impulsos ou imagens persistentes que são vivenciados como intrusivos e inadequados e causam acentuada ansiedade ou sofrimento” (DSM IV pg 398). A pessoa vive aquilo como algo “estranho” a si e sobre o qual não tem controle. Já as “compulsões são comportamentos repetitivos ou atos mentais cujo objetivo é prevenir ou reduzir a ansiedade ou sofrimento… a pessoa sente-se compelida a executar a compulsão para reduzir o sofrimento que acompanha uma obsessão ou para evitar… uma situação temida” (DSM IV pg 399). Caracterizada a manifestação dessa “disfunção”, pelo julgamento clínico, isto é, através da interpretação de um relato de comportamentos e sentimentos, o próximo passo será definir o tratamento adequado. O médico faz a função de um leitor de sinais, referidos a esse protocolo de patologias, previamente determinado.

“A farmacopéia e a terapia comportamental (um dos modos de psicoterapia) são consideradas tratamentos de primeira linha para o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)”(Cordioli pg 285). Em quadros de intensidade leve ou moderada a terapia comportamental “pode ser utilizada de forma isolada…[quando] apresentam obsessões, com crenças muito fortes sobre seus temores… com ansiedade ou depressão intensas, a farmacopéia poderá ser a única terapia viável (talvez por muito tempo)”(Cordioli pg285). O tratamento começa com inibidores seletivos da recaptação da serotonina ou clomipramina; não funcionando, aumenta-se a dose; não dando resultado, troca-se de medicamento; não funcionando, busca-se potencializar associando com outras drogas; não tendo resultado adequado parte-se para “combinações não usuais, ECT e clomipramina EV; e se não funcionar, parte-se para a neurocirurgia” (Cordioli pg 285 e seguintes). A avaliação do sucesso no tratamento também será feita a partir de relatos, eventualmente, acompanhado de exames de controles químicos. Sucintamente, em apenas uma página de um dos livros mais utilizados por médicos (não só psiquiatras) no Brasil, podemos observar o modo de proceder e o pensamento científico em seu franco exercício pela Medicina. Praticamente a negação da clínica.  

Em sua característica mais peculiar, “clinicar é dobrar-se, inclinar-se diante do leito do paciente e interpretar os sinais significativos de seu corpo. Em outras palavras, aplicar sobre esse corpo determinado olhar e derivar desse olhar um conjunto de operações”(Dunker pg 399). Olhar, respeitando sua condição e, interpretar, para “captar a lógica do (de um) desvio” (Dunker pg 400]. Interligada à noção de clínica está a de “tratamento”, que originalmente era entendido como “o trabalho da experiência e do oficio de transformação …e que com a modernidade clínica, adquire a conotação de condicionada pelo emprego de um método” (Dunker pg 402).

Daqui, portanto, a noção atual de tratamento como o exercício articulado da clinica em um caso ou em um grupo de casos. Ele estaria constituído pela classificação dos signos, ou seja, por construção de semelhanças que se repetem em uma classe e, pela ordenação, isto é, por regras que organizam os sinais ou signos percebidos.  E nessa própria tarefa de classificar e ordenar se institui uma forma de linguagem, em que se estabelece “uma semiologia”, pela qual os signos, índices, sintomas e traços se organizam. A partir dessa “semiologia” é que o clínico trabalhará buscando estabelecer diferenças, sobre um solo, portanto, de certos padrões estáveis pré-estabelecidos.

A semiologia clínica

“Uma semiologia se torna então o fundamento da clinica médica, estabelecendo uma linguagem particular, circunscrita aos signos que lhe dizem respeito” (Dunker pg 404). Os signos quando estão classificados e ordenados aparecem como sintoma, sendo legitimados por essa descrição e pela consciência do médico. Aquilo que no início era  uma queixa genérica, pelos  “sinais” passam a  ser considerados como “sintoma”, no universo clínico. Como enfatizará Dunker  “essa passagem implica sua captura no discurso e, sua sanção na ordem médica”(Dunker pg 405). A legitimidade e a validade, da fala do paciente desaparece. O médico ouve mas não escuta o paciente. Uma atitude neutra, impessoal, pretensamente  facilitaria sua referência a uma observação isenta na comparação, na indexação com um padrão de patologias. Em outras palavras, o “signo” só existe quando o sujeito é o medico, pois é ele que estabelece, legitima e certifica a doença como tal.

Na clínica médica os signos só se tornam signos a partir do olhar do clínico sobre o corpo da pessoa. O que a pessoa conta e fala não tem importância, “possui valor secundário e suspeito” (Dunker pg 406). As informações que o paciente traz só adquirem peso quando correspondem a algo que o médico observa na analise do corpo do paciente. O “olhar clínico” é aquele incisivo, direto, neutro, sem interferência.  E o notável, sob este aspecto, é que a clínica, em seu exercício está muito longe de encontrar resultados homogêneos, certos, idênticos.  Sua natureza é a de uma atividade exercida por um homem na relação direta com outro homem, mais ligada à sua sensibilidade do que à sua capacidade intelectiva, mais uma arte do que uma técnica. O campo em que trabalha leva-o a tomar decisões e a assumir riscos, num campo em que predominam as incertezas.

Essa prática clínica de olhar e significar, são como um exercício de leitura semiológico. O passo seguinte – o diagnóstico – já é uma atividade propriamente, que já pressupõe uma organização já estabelecida da semiologia, um quadro classificado de doenças, nosológico. No diagnóstico a atividade é intelectual, dependente de um modo   racional de relação entre os signos, num contínuo trabalho de transposição de situações singulares às genéricas. Como trabalha por hipóteses pode ser corrigida, verificada e reformulada. Sua legitimidade vem dos resultados que obtém.

Dunker lembrará que além da semiologia e do diagnóstico a clínica moderna supõe também uma teoria da causalidade ou uma “concepção etiológica” (Dunker pg 411). Um modo baseado nas idéias de “causa” como “culpa”, responsabilidade ou questionamento ou, de outro tomando causa como antecedente e conseqüente, como efeito ou determinação (Dunker pg 414, 415).

 A última operação da clínica clássica é a terapêutica. Ela deve incidir, na medida do possível, sobre as causas e não sobre os efeitos, estabelecendo uma hierarquia das metas: como curar, controlar, mitigar. Além disso, deve estabelecer as estratégias de meios a empregar, definindo tipos de intervenção, ordem de procedimentos e, as táticas pelas quais a ação se dará: as principais técnicas (intervenção cirúrgica, por exemplo)  e as auxiliares (fisioterapia).

Não é o que acontece nas clínicas que trabalham com o “espírito”, com a “alma”, com a “mente”, com a “ psique”, como a psiquiatria, a Psicologia, a Psicanálise, a Filosofia Clínica e outras. Não tendo a referência do corpo para dirigir o olhar, passam a depender quase que exclusivamente do uso da linguagem, da escuta. O delírio, por exemplo, é uma realidade composta de “palavras e não por tecidos ou hematomas”. Como escreve Dunker “a totalidade na qual o delírio se inclui não é a totalidade fechada do corpo, mas, o universo aberto das significações”. Alguma “objetividade” pode vir de um vocabulário que inclui “atenção, memória, imaginação, pensamento, vontade, consciência”, para tentar produzir uma “totalidade artificial”. Algo análogo ao corpo orgânico, uma espécie de corpo psíquico, para onde poderia se transportar as mesmas leis de equilíbrio, funcionalidade e homeostase, postulados para o funcionamento dos tecidos” (Dunker pg 326).  

A clÍnica psiquiátrica

Na Psiquiatria há uma espécie de transcrição do relato ou da fala de uma pessoa para a linguagem dos sintomas, referidos nos quadros psicopatológicos. Diferente das clínicas que cuidam do corpo, ela não pode construir uma semiologia descrevendo todos os funcionamentos normais e os patológicos, as regularidades e as diferenças. Isto seria um despropósito sem tamanho similar a aquele descrito em 1884 por Machado de Assis em sua magistral novela O Alienista.

Lá, pode-se ler as incríveis, mas plausíveis, experiências vividas pelos habitantes da cidade de Itaguaí quando lá se instalou a “Casa Verde”, um local apropriado para o tratamento e isolamento das pessoas diagnosticadas como doentes pelo personagem dr. Simão Bacamarte. Investido pelos legisladores locais, de uma autoridade sem limites, provinda de um pretenso saber científico indiscutível, ele exercita o poder da clínica psiquiátrica ultrapassando as raias do delírio. Vê-se como paulatinamente a população vai sendo recolhida para aquela instituição, por conseqüência direta de uma atividade diagnóstica, baseada numa semiologia – ela sim um perfeito delírio – que vai, cada vez mais, tornando patológicos os comportamentos humanos mais banais. As “razões científicas” vão se sobrepondo de tal modo aos usos e aos costumes locais, que num certo momento grande parte da população está internada. A trama só se resolve pela genialidade do escritor, que mantendo a lógica científica  que comanda o desenrolar dos acontecimentos,  faz com que a  “evolução” da pesquisa do psiquiatra acabe  por levá-lo a “libertar” a todos os internados e a internar a si mesmo. Para o discurso científico a auto-internação foi como um momento sublime, com toda a força legitimadora daquela verdade produzida, a partir da qual a confiança se torna plena. Para o leitor, estarrecido, fica um exemplo acabado da possibilidade de como um delírio investido pela autoridade de um agente da Ciência, nesta área, pode ter o predomínio sobre a vida social, das pessoas. E isto realizado por um escritor brasileiro, mais de meio século antes das pesquisas e trabalhos de Michel Foucault.

A Psiquiatria, como clínica, não conseguiu desenvolver uma terapêutica não medicamentosa.  Já passou e continua passando pelas “técnicas” de sonoterapia, contrastes químicos, choques elétricos, contrastes térmicos, hipnoses e tantas outras, que buscam colocar o corpo em certas situações sob controle do médico, com a intenção de “alterar a linguagem que habita esse corpo” (Dunker pg 431].  Nessa linha que se poderia nomear como diretamente intervencionista estão, por exemplo as técnicas lobotômicas em que se desfaz, por cirurgia, ligações nervosas, levando a pessoa, na maior parte dos casos, a estados catatônicos, a situações muitas vezes catastróficas. Mas poderiam estar, também, as técnicas de intervenção química, pelas quais, se procura controlar o comportamento, disposição ou humor de uma pessoa. Isso é feito através de certos mecanismos de controle de variação de alguns elementos no sangue, um quadro de comportamentos classificados e ordenados: as psicopatologias, os quadros nosológicos.

Com os resultados das pesquisas feita pelos laboratórios farmacêuticos com os neurotransmissores, a clínica psiquiátrica passou a ser pouco mais – nos melhores casos – do que uma técnica de prescrição e controle de efeitos de drogas que atuam diretamente no comportamento, humor e disposição da pessoa. E faz isto com pouca reflexão sobre as razões (etiologia) de um determinado comportamento, humor ou disposição. Os pretensos conhecimentos são organizados em manuais práticos, que apenas em suas introduções indicam suas origens. Estas se ligam predominantemente a institutos de pesquisa direta ou indiretamente ligados à industria farmacêutica ou a departamentos universitários ou agencias governamentais, em que os corpos diretivos não escapam à sua grande influencia. E com isto os conhecimentos se tornam algo que aparece pronto, provenientes de fontes complexas,  distantes da experiência imediata, em que trabalhariam pretensamente  pessoas altamente especializadas, capazes de manipular fórmulas abstratas e saberes inacessíveis, próximos dos mistérios e enigmas vividos desde sempre pelos seres humanos.

Mesmo sem definir com clareza o que seria um comportamento adequado, uma variação de humor aceitável ou um grau de disposição normal, um psiquiatra pode trabalhar com grande desenvoltura através de diagnósticos físicos e poucas observações comportamentais, direta ou indiretamente relatadas. Seu objeto de observação primordial não é o corpo, mas também não é o “espírito”, a psique ou os estados mentais da pessoa. Se já não precisava muito do olhar em seu trabalho, agora se aproxima do requinte de dispensar também a escuta. Trabalha predominantemente com planilhas, modelos, controles numéricos, preocupa-se em controlar quantidades, dosagens. O reino do “deus da mensuração…que entende a doença em termos de desvios com respeito à normalidade…a questão é: como fixar um tal índice?” (Hegenberg pg 28). O homem se torna corpo químico, a ser manipulado e avaliado a partir de variações   quantificáveis. 

Nos tratamentos psiquiátricos, predominantemente, o homem se transforma em campo de experimento químico. As práticas clínicas tendem a validar o diagnóstico a partir do “tratamento” que está à disposição. Isto, neste ambiente, quer dizer: o médico vai usar o corpo da pessoa para testar a sua hipótese de diagnóstico, decidindo entre as drogas disponíveis aquela que lhe parecer mais adequada. O tempo despendido no processo de avaliação dessa decisão, muitas vezes, não passa de alguns minutos. Ele já sabe, já viu quadros semelhantes. Sem ouvir a pessoa, como não ouviu os anteriores. E a validade do tratamento será dada pelos seus “resultados”, isto é, em nova consulta, com talvez menos tempo de avaliação – é um “retorno” – em que os critérios para o relato da pessoa é a  “objetividade”, além da brevidade. E, assim, nesse processo de adequação do diagnóstico à experiência do “tratamento”, se faz a possibilidade da singularização: cria-se a possibilidade de transformar a variedade de psicofármacos disponíveis, em algum modo de adaptação ao corpo, ao organismo desta pessoa, em suas peculiaridades. Isto na melhor hipótese. Em alguns casos é tomado o cuidado de se fazer verificações, “controles” periódicos para aferição das dosagens, para se fazer uma avaliação dos resultados nos comportamentos, humores e disposição da pessoa. Sem ouvi-la. O que se busca nessas consultas de “controle” é verificar se o uso continuado da droga ainda está surtindo o efeito desejado. Aquele corpo, esquecido da sua humanidade, foi relegado a um campo de experimentos químicos, numa tragédia cotidiana, que de tão genérica, não toca mais aos homens e às mulheres que a praticam.

Como exemplifica Dunker “o déficit de atenção com hiperatividade surge como uma síndrome epidêmica na medida em que existe um tratamento que lhe é definido”, como o uso indiscriminado de Ritalina é um exemplo, próximo do criminoso. Ou como nos quadros descritos como de “depressão”, em que os tratamentos são cada vez mais deduzidos dos efeitos do uso dos antidepressivos e combinações com outras drogas. A legitimidade se faz através da incorporação das referências que constam nos manuais – com a primazia unificadora do DSM – e se tornam o “saber” que orienta a prática psiquiátrica e outras (clínica geral, clínica geriátrica, etc). Nestes novos modos de proceder não há porque pesquisar e relacionar motivos de diferenças de comportamento, humor ou disposição, uma vez que o tratamento poderá se dar apenas nessa relação com esse quadro de referencias, com essa precária semiologia.  Dunker pergunta-se se neste mesmo quadro de “estabelecimento de uma verdadeira teoria empírica do sujeito” não poderiam ser colocadas as pesquisas da neurociência e de parte da genética.

A fragilidade da semiologia na clínica psiquiátrica e nas clínicas que acompanham seus quadros nosológicos ou psicopatológicos, tem sua origem na desvalorização e diminuição no processo de escuta. Um quadro de sinais, de sintomas depende essencialmente “do relato do sujeito em primeira pessoa. Sem o relato não há como distinguir…uma face de tristeza de uma depressão, a presença ou não de uma alucinação” (Dunker pg 433).

Semiologia é palavra composta por “semio” que significa sinal ou signo e, logos, cujo sentido imediato é o de princípio de inteligibilidade de algo. O que corresponderia num sentido primeiro como a aquele âmbito em que se estuda os sinais, ligado, portanto ao universo da comunicação entre os homens. A palavra foi utilizada e explicitada por Saussure  em seu Curso de Linguistca Geral, como “uma ciência que estuda  a vida dos signos no seio da vida social…e nos ensina em que consistem os signos, que leis os regem”(Saussure pg 24).  

Levada para o universo da Medicina a semiologia pode ser vista como aquela parte que estuda, codifica e descreve os sinais de uma doença. O sinal, aqui, é visto ou entendido como “sintoma”, palavra que na sua origem se define como “co-incidência, acidente  ou acontecimento” e que pode ser entendido como um aviso ou indício de  mudança, provocada no corpo por uma doença, que poderia ser observado diretamente pelo médico ou ser descrito por quem está sendo atendido. O sintoma quando descrito pela pessoa é tomado pelo médico como uma informação subjetiva, já que tem como base a sua sensibilidade. Nas clínicas que tratam com o espírito, com a mente, com a psique ou com o comportamento do homem não é possível uma confirmação pelo examinador. A anamnese, isto é, o relato das questões e dos sofrimentos feitos pela pessoa, é praticamente com o que o cuidador pode contar.  No caso da clínica psiquiátrica há uma dificuldade suplementar uma vez que o profissional é médico, isto é, ele estaria apto a avaliar, além do espírito, o corpo da pessoa, trazendo um poder quase extra-humano nesta relação humana particular.

Na medicina um sintoma se caracteriza por alguma “alteração objetiva” que é percebida pelo médico. No mundo “psi”, no universo das clínicas que tratam de aspectos da existência espiritual da pessoa, uma “alteração objetiva” é algo muito difícil de se caracterizar. Com  o “ensurdecimento”, com  o processo de redução da capacidade de escuta,  dos homens e mulheres que trabalham nesta área o processo de construção e exercício de uma semiologia fica muito dificultado, se torna precário. E isto quer dizer, menos confiável, trazendo maiores riscos à pessoa que procura ajuda, quando se leva em conta que é a semiologia que dá sentido, que dá as bases para um diagnóstico médico. Como é possível um diagnóstico minimamente responsável a partir de uma semiologia que não enxerga – porque não há objeto concreto – e  não escuta, porque vem de uma tradição de predomínio do olhar? Mesmo o clínico que ouve a pessoa, muitas vezes, não a escuta.

A escuta e o sentido

E porque há essa diferença entre ouvir e escutar é que o sentido do vivido que é dito no falar da pessoa não é captado. Não se capta, não se colhe, não se recolhe, não se acolhe o que ela diz. Essa recepção não é a do som, ou dos sons e tons articulados pela pessoa emissora, que entraria pelos ouvidos da que ouve, já significados. Ela pressupõe, para ganhar significados, outros processos. O escutar não vem do aparelho auditivo. O ouvido físico não provoca, ele mesmo, a escuta. A percepção dos sons e tons não é um processo biológico, do corpo, ainda que se dê, que aconteça num corpo.

A transição da audição para a escuta se dá no momento em que o ouvinte se coloca num lugar em que passa a pertencer ao mundo do dizente. Pertencer ao mundo do dizente é dispor-se ao mundo deste outro que ao constituir o (seu) mundo depõe e propõe parte de si mesmo através da “fala”. Quando a “fala” fala, isto é, quando a pessoa (a que diz) articula sons, tons e ou gestos para colocar à disposição de quem ouve algo de si mesma, de seu mundo, e este que recebe põe sua própria disposição constitutiva de  modo aberto, recolhendo isso (que vem) para si mesmo, cria-se uma espécie de aproximação de uma unidade de disposição, entre a fala e o ouvir, entre o que é falado e o que é ouvido. O que pode ser tomado, a partir do lugar do ouvinte, como propriamente a escuta.

Na escuta, nessa produção do sentido, de significações, de intelecção de mundo, há uma relação com o que Heidegger toma como “logos”: “Logos é o puro deixar dispor-se em conjunto o que, por si mesmo, assim se submete…. o logos é assim o recolhimento originário de uma colheita original a partir de uma postura inaugural”(Heidegger pg 190) .“Logos” é um “puro deixar”, isto é, não é um fazer,  não é um exercício propositivo ou intencional sobre o que está posto ou sendo posto, sobre o que se dá. E “deixar” isso que vem, isso que se dá, isso que se põe,  se dê e se ponha por si mesmo, isto é, sem a inter-ferência do que não lhe diz respeito, do que não lhe é próprio. E, além disso, que aquilo que vem, venha, se dê, se ponha “em conjunto” ,agrupado, junto e ligado, conectado, com. E neste modo “se submeta”, fique colocado, metido, posicionado para o “recolhimento originário de uma colheita original”. Para – as expressões serão muito imprecisas – uma “seleção nunca feita desta maneira”, sobre um “material também nunca exposto assim”.

Tudo o que está contido em uma fala será, do ponto de escuta do ouvinte, novo, original, nunca antes exposto à sua intelecção assim, deste modo. E será por isso que essa apreensão só pode se dar a partir de uma “postura original”, de uma posição própria, cuja origem está nela mesma, autêntica, inédita, ainda não vivida.  

Essa “postura original” na “apreensão” é uma atitude de relação com o que faz parte do humano. Na escuta não é só “apreensão” do que vem pela fala que se dá, mas há um tramar com o que estiver dis-posto da memória do vivido, do já escutado, para uma outra combinação, outra mistura, outro sentido. E nessa produção de sentido, neste  sentido produzido se dá aquela outra conotação da palavra “sentido” que é a de direção como quando se diz que a direção ou  o sentido a seguir é tal ou qual; e ainda a conotação de destino, que responde a um “para onde” ou “para que”.

Em clínica esse produzir sentido, escutar, está relacionado com uma outra variável que é ética. Para escutar o outro – paciente ou partilhante – o clinico deve estar atento para as origens daquilo que colhe, que recolhe, que acolhe. Ele precisa limitar os efeitos do que vem de si, de sua experiência pessoal, para constituir o mundo do outro para si.  Esta relação com o outro deve estar sempre determinada pelo cuidado, pela inclinação atenta sobre o mundo do outro. Como pessoa que também é, o clínico está submetido às mesmas condições no processo de transformação dos sons em sentido, mas, como a sua tarefa é se aproximar do sentido que “está lá”, do que o outro procura lhe transmitir, ele tem a tarefa extra de fazer descansar, de desinvestir, suas próprias – dele clínico –  significações, suas memórias. Numa disposição que se aproximaria de um desfazer-se de si, pela qual abre espaço para a aparição das manifestações e da vigência do outro, para si.

O clinico renuncia temporariamente à qualquer iniciativa sua como pessoa. Passa a uma atitude de atenção flutuante sobre o que ouve. Sua mente se inclina para a fala do outro, porém, procurando não dar peso diferente a nada em especial, numa espécie de atenção dispersa, sem direção, desconfiada de si mesma. Escolher uma idéia, uma vivencia, pode implicar  deixar uma outra oculta. O critério do que “mostrar” deve ser daquele que está em clinica, pois, se a escolha fosse do clínico seria uma imposição de valor de preferência  sobre o que é vivido pelo outro. Se o clinico estiver prisioneiro de suas posições pessoais, de um ponto de vista, de uma perspectiva, sua disposição para o outro estará comprometida, poderá ouvi-lo, mas não o escutará.

Este constituir do outro para si é condição para o trabalho clínico, neste âmbito. Aqui não há corpo, o “objeto” – o outro – para o clínico está em si mesmo. Sempre em constituição, sempre fugidio. O outro, como essa trama de sentidos, de significações, é essa referência que não se completa (para si, clínico). E, lidar com isso, com essa incompletude é estar propriamente na dimensão ética, sabedor de sua condição constitutiva como “um ser em dívida” ou “indigente”. Dimensão que simultaneamente o liberta como ser que é “à disposição”. Disposição clínica que é para o outro. Esse outro que se institui e se constitui em sua incompletude (se fosse completo não haveria o outro), existindo um outro para si e especialmente um outro para o outro. Esse outro que ele é para o outro.

Escutar é produzir os sentidos do outro para si. Numa linguagem, inapropriada: o “objeto” para o clínico é o outro para si. Os modos de cuidá-lo definem um campo próprio e pressupõe um método, um caminho.

O campo da clínica existencial

A clínica que trata do homem em seu existir singular se faz pela escuta e está num campo próprio. Não é o campo da medicina, não está no âmbito da ciência e nem no da filosofia. O campo da clínica existencial é um campo semântico. O seu exercício prático e teórico não se faz pelo “olhar”mas pela escuta. A escuta, diferente do olhar, não é um exercício semiológico pelo qual o clínico estabelece sentido aos sinais relacionando-os a quadros gerais. Não coloca sua atenção nos sinais de ruptura de regularidades ou normalidades, referidas a quadros nosológicos ou patológicos, por definição, pré-determinados. A escuta não refere os sinais recebidos a quadros gerais, mas é ela mesma  produtora de sentido. Semântica.

A escuta ao produzir sentido define um campo que é semântico. Campo semântico porque lugar caracterizado como o da arte de criar sentidos, sugerir significados.   As significações, aqui, não estão consolidadas. É um reino próprio, autônomo, de formação do sentido.

A clínica existencial não tendo um corpo físico para ser cuidado, tem perante si a tarefa de cuidar de algo que é difícil até de nomear adequadamente. Cuida-se do homem nas relações de seu existir espiritual, psíquico, mental. E para isso não há, nunca houve e não haverá um padrão estável, universal. Estará sempre referido aos contextos, às circunstancias, a cada modo próprio de viver. Nessa singularidade os sentidos estarão sempre se fazendo a cada instante. Não se consolidam num saber que tenha a possibilidade de permanecer ou se universalizar. E nem por isso deixa de ser saber. Até pelo contrário: é a condição de saber do singular. Nesse campo não se vai em busca do conhecimento universal. É o campo para o singular. É o campo do sentido, portanto, ligado à capacidade da escuta, da apreensão daquilo que vem do outro.

Na lingüística a semântica trata da relação das palavras com os objetos designados por elas. Na clínica se pretende relacionar o relato, a fala,  a expressão, com aquilo que a pessoa traz, com aquilo que vige nela. A pessoa procura ajuda, tem um assunto, que pode ser uma queixa  uma dor, um sofrimento, expectativas, esperanças, desesperanças, medos, angustia, ansiedade, tédio. Nesse assunto ela manifesta o que vive. Traz seu mundo. Muitas vezes mal sabendo o que vive, mal sabendo dele. O campo semântico da clínica é o da compreensão não o da explicação. Inconcluso, por definição.

Não é semiologia também por isso: não há “logia” possível, não há universalidade que essa tradição pressupõe. Não é ciência como lugar da certeza, não é filosofia como produção ou relação com o absoluto, ou voltado ao universal. É Ciência como agrupamento de saberes e conhecimentos desse campo que vão se dando por aproximação, é filosofia como saber  contextualizado, voltado, inclinado ao singular.

A clínica não é lugar do “fato” nem da “razão”. Neste campo o trabalho é o de lidar com a formação de sentidos. Sentidos que não precisam se consolidar em significações estáveis, como   “egos” ou “eus”. Qualquer estabilidade será provisória, precária. Mais do que admitir, lida-se com a impermanência, com o transitório. Loparic notará que mesmo “Freud deixaria claro q sua suposição de caminhos psíquicos fixos é apenas uma metáfora espacial…uma construção auxiliar, um ponto de vista meramente especulativo…” (Loparic pg 8) 

O campo semântico da clínica toma a linguagem como um dizer que diz e que pode provocar o trabalho da escuta. Um lugar que é de produção de sentido. Sentido humano, que é fugidio. Ainda que vigente, “real”.  Neste campo cria-se a possibilidade de contato com o que está em vigência no mundo do outro. Este mundo que ele produz incessantemente. Ainda que seja inaugurando a cada momento a ilusão da repetição.  A re-petição, a ação de pedir que permaneça o “re”, que “volte” o já vivido.   Os sentidos estão dados e estão para serem dados, de-postos e pro-postos. Estão estabelecidos e em estabelecimento, re-feitos, se re-fazem. Esse é o campo em que se trabalha. Aqui é onde a clínica se dá, onde ela se faz. O sentido daquilo que é vivido por uma pessoa só pode ser assimilado por uma outra pessoa no exercício do escutar, nessa disposição para a escuta do que vem do outro. Clinicar é esta prática de se dispor ao outro. O sentido não está num outro lugar, não se produz num outro lugar, está sempre em trânsito, exige o estar disposto a isto.

Sentido, escuta, disposição: não há um sem outro. O que caracteriza a disposição é voltar a estar disponível.

Um caminho clínico eticamente adequado deve possibilitar a apreensão dos sentidos que vêem do outro, mantendo simultaneamente esse caráter mutante, numa espécie de permanência temporária do que é essencialmente impermanente. Deve possibilitar a fixação, ainda que artificial de sentidos e manter abertos os canais de seus refazimentos. Cada experiencia clínica enfrenta este desafio à sua maneira. A circunscrição de um campo próprio, de um campo de natureza semântica traz a possibilidade de se tomar a clínica na plenitude de seu fundamento e de sua legitimidade. Um campo, que não é ciência nem filosofia. Próprio:  pensamento clínico

Bibliografia

Cordioli, Aristides Volpato – Psicofármacos, 2ª edição, 2000, Artmed, Porto Alegre, RGS, Brasil

e colaboradores

DSM IV – Manual Diagnóstico e Estatísticos de Transtornos Mentais, 4ª edição, 2000, Artmed, Porto Alegre, RGS, Brasil

Dunker, Christin I.L. – Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica, 1ª edição, 2016, Anablume , São Paulo, SP, Brasil

Hegenberg, Leônidas – Doença – Um Estudo Filosófico, 1ª edição, 2002, Ed Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Heidegger, Martin – Logos (Heráclito, fragmento 50), in Ensaios e Conferências, 2ª edição, 2002, Ed Vozes, Petrópolis, RJ, Brasil

Loparic, Zeljko – Thomas Lipps Uma Fonte Eesquecida  do Paradigma Freudiano – internet

Mezan, Renato – Tempo de Muda, in….São Paulo, SP, Brasil

Saussure, Ferdinand de – Curso de Linguística Geral,…..

Quem? O sentido da Autogenia

Autogenia. Uma aproximação da questão: “quem é esta pessoa”

Autogenia  não é uma palavra corrente, na filosofia, na clínica e, pouco usada nas ciências,  daí ser prudente defini-la  para os propósitos deste texto.

A palavra grega “auto” traz o sentido daquilo que é próprio e, “genos”- também do grego – o de origem ou nascimento. De maneira simples, autogenia pode ser entendida como a qualidade daquilo originado por si mesmo, independente de força ou recurso externo a si.

E como essa palavra autogenia participa no mundo  da filosofia clínica?

Autogenia pode ser considerado como um retrato existencial desta pessoa à frente do clínico. Como ela se constituiu, se tornou o que é.  Ela se vincula a uma idéia de totalidade da pessoa, próxima de certa forma da noção de personalidade ou de caráter usado pelas psicologias e por algumas psicanálises. Na filosofia clínica ela deve ser resultado de um minucioso processo de construção, sempre vivo e reconstruído. Autogenia se aproxima de uma questão muito esquecida e fundamental da clínica: quem é essa pessoa que está aí? Questão filosófica vivida na clínica.  

Heidegger ao tomar como tema o quem, escreveu: “é cada vez um eu e não algo distinto” (Ser eTempo pg 333). “Cada vez um eu”, portanto, um “eu”, um alguém que muda a cada vez que é observado e simultaneamente “não algo distinto”, isto é, um algo ou alguém que não é diferente de si, que é o mesmo. Nessa tensão entre mudança (Heráclito) e permanência (Parmênides) estaria o lugar para alguma consideração da questão quem é essa pessoa, esse ser-aí, à frente .

Quem? “Cada vez um eu e não algo distinto”.

Mas o que é“eu”? É uma palavra que se refere a quem fala, designa a pessoa que enuncia. Mas não a descreve, não dá qualquer predicado dela.  Na gramática da língua, “eu” é um pronome, por definição, algo que vai em direção a um nome, mas não nomeia uma coisa. Pronome pessoal “eu” só indica a pessoa que fala, portanto, é (só?) um fenômeno de linguagem. “Eu” se funda, se re-inaugura em cada fala. Em cada uma, na sua, na minha, na dele. “Eu” existe através da fala da pessoa que a profere. E, algo – o “eu”- fala por intermédio da pessoa. Esse “algo-eu” que fala é alguémAlguém fala: um “eu”. Quem?

 No âmbito existencial o “eu”, na vivência de uma pessoa, é sempre presente para si.   E também um observador eterno de si, afinal  sou sempre eu que vejo, penso, percebo, sinto   “a mim”, “a mim mesmo”. Então há algo na base do “eu”. O “eu”, entretanto, não é uma coisa no mundo, um ente. E ao mesmo tempo há um fenômeno “eu” que existe para mim enquanto eu sou consciente de mim. Então “eu” serve para eu me referir a mim. O que é  alguém e não se refere a mim não é “eu”, é “outro”. Eu” é a palavra que  indica aquele q designa a si na fala.

Quando alguém usa “eu” já traz também pressuposto alguém diante de si, um tu ou um você.  E pressupõe também um “eu” desse interlocutor. Eu compreendo quando uma outra pessoa fala “eu”, eu sei  que ela se refere ao “eu” dela, o “eu” do “outro” que é ela, para mim. Isso, essa compreensão, é condição para a clínica. Ela e eu, cada um a partir de si, sabe que há um “eu” meu e um ”eu” dela. Curioso: sabe-se, mas é um saber de natureza frágil, meio por aproximação. Não há um saber certo, firme, fundado, nisto que é tão comum, corriqueiro, vivido por qualquer um. Um saber-sabido-desconhecido.

Quem? Essa pessoa que fala cria um mundo a partir de si. Cada “eu” pode ser definido razoavelmente  como um centro de experiências de mundos vividos por uma pessoa e, um centro de perspectivas de mundos seus a viver. O clínico – este “eu” que escuta – deixa este mundo do outro “eu” se estabelecer próximo a si. Talvez o lugar propriamente em que esse mundo do outro “eu” se estabelece é na interseção  entre estes dois “eus”. A clínica se dá entre.

A pessoa não é um conteúdo do mundo que cria, ela é a referência, a base, o ponto de apoio. Mesmo frágil.  Esse “eu” fala algo, aqui e agora para um outro “eu” aqui e agora, que escuta, cada qual numa posição insubstituível. A pessoa que traz o seu mundo é um limite desse seu mundo, não está dentro nem fora desse mundo. Não está dentro porque está aqui “fora” falando e não está fora porque fala de “dentro” de si, a partir de seu “eu”. Como um “eu – criador” está no limiar, entre o dentro e o fora [como notou  Wittgenstein]. No mundo existencial, não há  sujeito, nem objeto. Não há objetivação possível do sujeito.

Quem?  A pessoa não é somente esse “eu” que fala: ela se compõe de uma corporeidade. Ela também é um corpo. Ela existe também num âmbito material. E cada pessoa tem um corpo diferente da outra.  Se ela e só ela pode se identificar com o corpo que ela habita, então este corpo é seu, só seu: este corpo é o lugar do seu “eu”. Compõe o “eu”. E, alem disso, o meu corpo, desse outro que sou para ela, pode ser entendido por ela como “eu”.  Em outras palavras, do ponto de vista espacial, o corpo como critério de identidade do “eu” parece dar uma resposta mais firme. Ao menos para um universo cultural tomado predominantemente  por critérios materiais A pessoa parece poder ser identificada pelo seu corpo. E assim se faz socialmente. A sua identidade é atestada pelo reconhecimento do desenho de seus dedos. A convicção inquestionável da singularidade dos traços corporais está aqui pressuposta.

O corpo ainda responde a um outro critério importante de identidade da pessoa que é a possibilidade de ser reconhecível pelos outros. Este corpo que contém um “eu” pode ser percebido em dois momentos diferentes  e ser considerado ainda como a mesma pessoa. Há uma permanência, ainda que provisória da fisionomia da pessoa, por exemplo. A pessoa passa a ser reconhecida por aquele rosto ou por aquele corpo que trans-porta esse “eu”. O curioso é q muitas vezes, encontra-se  alguém que se reconhece não por seus traços físicos, mas pelo seu jeitão, por uma expressão, por um sorriso, pela voz, pelo seus modos de se movimentar, um modo de olhar. Pela voz.  Mas de qualquer forma o corpo como critério de identidade parece funcionar razoavelmente, para as necessidades das relações sociais.  Mas…

Quem é essa pessoa? “Cada vez um eu, não algo distinto”.

 O mesmo algo, aquilo que não é diferente, que parece repetir um conhecimento que já se teve. Nesse lugar incomum, difícil de perceber, que é a cada vez de um modo e que permanece com alguma propriedade comum, parecida. Daqui não se pode falar que é o mesmo – já que de cada vez é um “eu” – e que ao mesmo tempo mantém alguma coisa que lhe é própria, e pela qual pode ser reconhecida,  o corpo.

Quando eu me refiro ao “meu” corpo eu tenho uma referência de um mundo em que há outros corpos.  Foi na minha relação com outro corpo q eu pude constituir a idéia de um corpo meu. Este movimento de me constituir como um corpo diferente, me possibilita e me exige ver a mim quase como um terceiro, isto é, de “eu” através da percepção de um “outro”. Mas como sou “eu” que indico a mim mesmo esse “eu”, há um movimento reflexivo, quer dizer, há um desvio da minha direção inicial – indo em direção ao outro – que me faz voltar para trás, me faz recair em mim [esse “mim” é um pronome obliquo reflexivo da 1ª pessoa do singular- refere-se a “eu”, mas não é “eu”]. Há quase um olhar em terceira pessoa para o meu “eu”, mas um olhar que também não se realiza plenamente, ou pelo menos que me dá pouca possibilidade de alteridade (externalidade?) desse “eu”, que me permitisse perceber esse “eu” como a um estranho.   Mas isso não se realiza porque o “eu” permanece em meu corpo e me percebo como uma única pessoa. E sou eu que digo “eu”.

A reflexão do parágrafo anterior está no campo do pensamento clínico, tem sua referência  no âmbito existencial e não epistemológico.

Quem? A noção de pessoa se constitui a partir dos predicados que se atribui a ela.  Na cultura ocidental contemporânea os predicados mais aceitos são os de que uma pessoa é composta de um aspecto físico e outro espiritual ou psíquico. Quando se está frente ao corpo de alguém morto, por exemplo,  há algo da pessoa presente e algo ausente. A pessoa não está mais ali, só seu corpo. O corpo, uma coisa no mundo, mas ainda como memória do ausente.  A pessoa na sua inteireza material-psíquica tem como sua natureza, portanto, o  estar presente, ser presença. Mas isso não a predica, não fala nada dela.

Quando se busca a identidade da pessoa –  ela como idêntica a ela mesma – surge de novo a dificuldade. Cada pessoa é um “eu” distinto num corpo distinto. O que distingue um corpo de outro é sua aparência física, seu volume, suas formas que se conhecem a partir da percepção. Mas como distinguir as características psíquicas de uma pessoa?

Na clínica a pessoa se encontra numa situação em que fala e escuta  e é ouvida por outra pessoa que também fala. Nessa circunstância ela usa a língua e vários recursos de linguagem para expor para alguém, de algum modo presente, as suas experiências. Uma situação de interlocução que tem valor de instituição de acontecimento. Está em cena, através de um discurso, corpo e psique frente a corpo e psique, alma, carne e osso, ainda que mediada por aparelhos (plataforma, internet, celular) trazendo a sua experiência do mundo, sua perspectiva, q não pode ser substituída.

Quando eu digo “eu estou feliz” não é a mesma coisa do que se eu dissesse “a pessoa q está falando está contente”. Há um ponto de referência diferente: quando eu digo “eu” estou dando o ponto de referência, tem um certo peso existencial,  no outro caso eu sou descrito como uma 3ª pessoa, quase não é uma pessoa.  Quem é essa pessoa? Como predicá-la? Como estabelecer suas propriedades, o que lhe é próprio?

Mas isso ainda está muito vago. O que é isso – o “eu” – que eu sei q existe porque vivo em mim e percebo viver no outro?  Eu sei que o que vivo em mim é diferente do que ele vive nele. Então há algo de próprio neste “eu” meu e no “eu” dele, do outro. Há uma diferença entre ele e eu.  Há um próprio a mim e um próprio a ele. Como se produz isso que é próprio a cada um? Como se deram essas Autogenias?

O recurso chamado EP

A Filosofia Clinica busca enfrentar esse desafio através de um artifício próprio, de um elemento simbólico, chamado de “estrutura de pensamento” – “EP”. Ela tem uma natureza operatória. A grosso modo ela pode ser vista como um modelo, um “artifício de montagem”, que facilita formar um quadro para o clínico dos modos constitutivos dessa pessoa, de forma explicitamente aproximada, com alguma estabilidade. O sentido é de um quem  utilitário e não tem nada a ver com um quem ontológico (que estabeleceria o ser dessa pessoa) .

Ao criar uma certa permanência artificial, a EP possibilita ao clínico um certo afastamento da experiencia imediata da escuta vivida na interseção com o partilhante. Dá-lhe a oportunidade de pensar, comparar momentos distintos, observar seus movimentos, fazer relações, formar hipóteses para procedimentos, planejar ações clínicas. Mesmo quando não está na presença física do “outro”, do partilhante, pode ainda pensar e refletir, respeitando seu próprio ritmo de pensamento, numa espécie de “re-escuta”, observando aspectos que talvez lhe escapariam sem isso. Além disso, permite-lhe, também, criar a possibilidade de um certo afastamento dos efeitos das suas próprias idiossincrasias, elaborar os seus preconceitos – específicos  desta relação ou não.  

Nessa estabilidade artificial impregnada na EP está uma série de apropriações de sentido produzidas através da escuta realizada pelo clínico das falas faladas do partilhante. Ela é um modo que possibilita um afastamento da memória  do vivido, numa tentativa de mantê-la  “presente” em seus sentidos. Isso não é pouco quando se trata de se aproximar do que é próprio a essa outra pessoa.

Quem? Talvez não seja conveniente pensar a EP como uma “representação da pessoa”. Representação  tem sentidos bastante vinculados a certas tradições filosóficas, não sendo recomendado, aqui, utilizá-la para evitar más interpretações. Será melhor caracterizar a EP de modo menos preciso, mais aberto e próximo de seu próprio sentido, como sendo “o jeito da pessoa”, ou “o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente” .

O conhecimento de uma EP será sempre “trabalho realizado”, síntese organizada de observações feitas pelo clinico, a partir de sua relação com essa pessoa que vem partilhar as suas vivências. Como assinala Lúcio Packter,  ela só poderá ser determinada “após o exercício existencial da pessoa” [packter; caderno B pg 8] e deve ser tomada “como um preconceito e não como um a priori”. Não é um saber que venha constituído por uma razão transcendental ou metafísica. É um registro, em línguagem própria, do processo autogênico da pessoa. O quem em outra língua.

Um resumo do processo metodológico de formação da EP mostraria que o partilhante narra sua história, atualiza suas vivencias, enquanto o clínico busca, pela escuta, apreende-las, fazendo  uma coleta do que ouve a partir de categorias,  aprimorando essa colheita propondo “divisões” temporais na história narrada e buscando especificar, discriminar o que  lhe permanece obscuro, fazendo processos de “enraizamento”. Com esse material atualiza, “monta”, constrói, “preenche”,”encarna” a EP dessa pessoa. Das múltiplas vivencias narradas, de tudo o que ouve, busca recolher seus sentidos e traduz, canaliza, traz para dutos pertinentes, para colocá-lo em modos que facilitem a absorção  pela EP.

A EP só estará constituída quando já estiver estabelecida como uma totalidade. E, como qualquer totalidade, a EP é composta de elementos – os “tópicos” – que se relacionam e se articulam mutuamente. Cada EP será um arranjo singular de pesos e importâncias desses tópicos inter-relacionados e de suas possibilidades. Mas só será EP quando for uma totalidade constituída, ainda que transitória.

Sempre tomada como totalidade, uma EP tem momentos estruturais que podem ser muito diferentes entre si. São relações ou arranjos tópicos (autogenias) diferentes que, às vezes, podem até dar a impressão de se tratar de outra estrutura. Mas é isso que caracteriza essa própria EP: essas diferenças são apenas a expressão da variedade de seus modos próprios de existir, e que, precisamente,  a definem e a distinguem.

A um tempo a EP poderá ser tomada como uma totalidade unitária, como conjunto e,  de outro como uma série de totalidades momentâneas, circunstanciadas. Em outros termos, a EP pode ser tomada sincronicamente: o tópico Autogenia, procura dar conta disto. E pode ser vista diacronicamente e, então será a vez da Autogenia como submodo. Como tópico há uma espécie de “congelamento do tempo” enquanto como submodo é “posta no tempo”. Portanto, na dependência da perspectiva ou do momento de quem observa, a EP pode ser tomada como uma unidade a ser investigada em suas relações constitutivas  ou também como uma unidade a ser investigada em seus movimentos e suas relações com o mundo, com os outros.

 A EP é este modo muito próprio de exercício que contribui para a possibilidade de responder  temporariamente, quem é esta pessoa. Autogenia, são dois modos de descrever como se produz esse quem.  E através do tópico Matemática Simbólica possibilitar modos de mudanças dessa pessoa. Esse quem se tornar um quem adequado a si. Por seus critérios.

Há todo um modo próprio de  prática clínica  a partir da Autogenia. Aqui é pressuposto sempre não perder o sentido da própria idéia de Autogenia desenvolvida acima, e as reflexões sobre o “eu” e ainda a natureza da EP. Isso não foi feito por acaso. Em outras palavras, manter presente a idéia de que o que se está fazendo é co-laborar com o modo singular desta pessoa se mover, gerar a si própria, tornar-se o que está sendo, o que quer vir-a-ser. Esse movimento envolvendo seu ter-sido, seu vir-a-ser, sua presença.

A matemática simbólica

A EP  não é uma forma que o clínico possa  perceber por seus recursos perceptivos ou sensoriais,  e também não tem uma essência que seja possível  apreender por meio do entendimento. A sua natureza seria mais próxima do campo dos símbolos. Eis porque Matemática Sinbólica. Na descrição disponível,   “o conjunto simbólico que tem por função ir desfazendo a linguagem verbal…e [que] gradativamente associa e substitui o atendimento verbal por outro que utiliza equações e conceitos” [pg 9 do Caderno de Mat Simbólica].

Pelas dificuldades do autor, talvez isto fique melhor expresso dizendo que a Matemática Simbólica é um outro modo de exercer a Filosofia Clínica, tomando por base a Autogenia já realizada de uma EP, reduzindo a ênfase da linguagem verbal, aumentando a importancia de outros recursos simbólicos. Vale dizer, tomar a pessoa como um todo e, a partir desta perspectiva, acompanhar suas relações existenciais com os outros, com as coisas, com as suas circunstancias.  

 Este modo de clinicar permite pensar a EP de alguém como um modo mais qualificado de “eu” – porque ela é passível de predicações existenciais. Não se predica a pessoa, mas esta espécie de símbolo dela, com elementos (predicados) existenciais.  Observar a EP de alguém é acompanhar um modo  que tem uma boa dose de  verossimilhança com as suas – da pessoa –  próprias vivências  existenciais, sem contudo confundi-las – a pessoa e sua EP.   A EP tem seu movimento, é informada e constituída pelo que a pessoa  experimenta, mas não é ela, não se funde com ela. É apenas  um artifício, um símbolo generalizante dela.  Esta abordagem é um modo clínico possível na Filosofia Clínica, que nasce e se realiza precisamente a partir das possibilidades abertas pelas características do tópico Matemática Simbólica. E será avaliada, caso a caso, pelo clínico, a oportunidade de seu uso. Ela  pode ser uma via para trazer bons resultados, frente aos Assuntos trazidos pelo partilhante.

Esse alguém que vem à clínica tem a sua constituição, sua composição existencial própria, que faz ele ser  como  ele é. A composição dos tópicos na sua EP, como eles se interligam entre si, e quais são e quais não são importantes define sua Autogenia [como tópico]: aquilo é próprio a si e a origem dessa sua propriedade.  A EP busca trazer o que é o mais próprio dessa pessoa,  em uma dimensão diferente, virtual, em que se pode compreender as origens dessa composição existencial que é só sua, diferenciando ou aproximando de outros momentos estruturais de sua vida.  A EP dessa pessoa anos atrás pode ter tido uma configuração quase irreconhecível, frente ao que apresenta hoje. ´

Num exercício de imaginação seria possível notar como as circunstâncias vividas nesse período alteraram sua EP, sua Autogenia, compuseram suas muitas configurações autogênicas. Alguns tópicos perderam a importância relativa que tinham e deram espaço para a proeminência  de outros, de novas relações, variações, surgindo arranjos, inter-relações muito diferentes. Mas suas configurações sempre são próprias, sempre são suas, como modos de se relacionar com os assuntos que tratou e cuidou nesse período, o jeito que se relacionou  com o tempo, os lugares existenciais em que habitou, as coisas, as pessoas com que conviveu. E sempre foi ela quem gerou isso que ela foi sendo. Suas diversas autogenias, nestes anos. Com algum grau de independência de sua vontade, de sua consciência, de suas intenções. 

A pessoa deixa de ser propriamente ela mesma quando age de modo diverso daquilo que parece lhe ser próprio? Mas este modo que parece impróprio, inautêntico, não é propriamente aquilo mesmo que lhe é próprio? Há estado de inautenticidade, do ponto de vista estritamente existencial? Este é um aspecto que pede muita discussão. Não é, entretanto, o tema deste texto. Fica a provocação.

Um certo modo de exercício

Um exercício imaginário que se poderia fazer seria observar como a  EP de alguém  se relacionou com os infindáveis contextos em que a pessoa  esteve envolvida. Como foi que se comportou, se movimentou? Talvez tenha havido momentos de intenso constrangimento, em que a sua sobrevivência física ou de algum de seus próximos foi quase que a sua única preocupação. E outras em que numas férias naquela praia, caminhando plena de um vazio aconchegante  reencontra inesperadamente aquela que foi e virá novamente a ser sua grande companheira de trocas existenciais.

Nessas 2 circunstancias tão contrastantes como foi sua relação com sua consciência, com seus impulsos? Deixou sua EP, por si só procurar seu caminho ou havia intenção, vontade nisso? Confiou em seus recursos desconhecidos, não racionais, inconscientes?   E o clínico que a acompanhava, com o que podia contar?

A Autogenia oferece  um modo característico e diferente de  prática clínica. Para não perder  o seu sentido é importante o leitor ter em mente  as reflexões sobre o “eu”e , a natureza da EP, desenvolvidas anteriormente. Isso não foi feito por acaso. Em outras palavras, fique sempre conectado com a idéia que o que se está fazendo é tentar descrever um modo clínico que não deixa de lado a questão: quem é essa pessoa, autogenicamente. Como o clínico pode co-laborar com o modo próprio dessa pessoa se mover, fazer a si, tornar-se.

Este é um campo com poucas referências. Sem certezas. Com o que se pode contar talvez seja esse movimento que envolve seu ter-sido, seu vir-a-ser, sua presença. E será por isso que a atenção para os contextos vividos pela pessoa são tão importantes.  Perceber qual é o momento vivido, quais suas bases categoriais, quais são seus vizinhos, que papel exercem em sua vida. Hstoricidade, bases categoriais.

Esta pessoa talvez tenha se dado bem em algumas circunstancias  “ao se jogar” ao que lhe fazia sentido, mesmo com ampla resistência das pessoas com as quais convivia. Havia só umas poucas que apoiavam seu movimento.  Foi muito expressiva sua experiência de se lançar ao desconhecido, sua vida se modificou, passou a viver uma ampliação de horizontes com que nunca sonhara.

Para o clínico essa pode ser a tarefa. Pesquisar como ela fez em outros momentos de sua vida e quais elementos foi possível perceber no processo de historicidade que trouxe esses elementos. Às vezes  é  possível retomar algum momento, conversar um pouco, rememorar, desdobrar aspectos ainda pouco claros, trazer recursos para fortalecer seus vínculos com novos vizinhos, buscar composições com elementos que estejam no horizonte de possíveis. Reparar como foi para ela as experiências passadas, perceber se ela coloca mais atenção nos ganhos  possíveis ou nas possibilidades de fracasso.  Ao olhar para trás a pessoa vê os bons momentos ou o que não quer mais viver. Reparar o que lhe importa nessa experiência, o que lhe impulsiona, qual o peso de seu desejo, de sua intenção. Talvez aqui ela não esteja mais “solta”. Sua EP já não estará condicionada. Ao  ter uma intenção, já não tem uma espécie de pré-controle do futuro?

Ao imaginar  ir em direção a um ganho autogênico,  não é incomum  a pessoa já sentir falta de  pessoas, coisas, hábitos,  por antecipação.  E aqui, também, quando ela começa a pesar perdas e ganhos, já volta a uma predominância de referências estabilizadas, fazendo uma espécie de contabilidade existencial. Muito razoável, no mundo estabelecido, porém, talvez contraproducente no universo das Autogenias com movimento verticais. Esse é um  movimento característico de autogenia horizontal.

A  pessoa em movimento vertical ao conseguir atingir certos estágios  autogênicos [na Filosofia Clínica esses “estágios” são chamados de “patamares”, para evitar a idéia de sequencia]  e  passar a viver num ambiente bem diferente daquele que vivia,  pode  ser que  sofra pela falta da vizinhança com a qual tinha grande familiaridade. O surgimento de novos vizinhos, novos hábitos, novos lugares com que ainda não tem familiaridade pode ser temporariamente difícil.  Nesses movimentos alguns elementos de sua base original podem se refazer no novo ambiente, mas isso nem sempre é assim.  Pode se formar  uma nova turma, uma nova família, mas, pode ser que isso não aconteça  e a pessoa continue fixada no momento  existencial anterior.

Para poder lidar com isso o clínico ao acompanhar os movimentos da pessoa deverá estar especialmente atento à importância que vinha sendo dada às suas novas vizinhanças. Este é um modo em que é possível estar próximo das novas circunstancias vividas e poder perceber como as coisas estão andando, com quem ela está se relacionando, de que modo e assim por diante. Algumas vezes a pessoa ao mudar de patamar autogênico, mantém relações com seu ambiente anterior, porém, não é raro que a maneira como essa relação passa a se dar, se modifica. Se antes havia uma identificação de papéis existenciais, por exemplo, é possível que isto desapareça, mas que a relação de amizade, por conta de outros atributos da relação – como a memória de emoções vividas – se refaça. 

Certamente haverá muita incompreensão de parte a parte quando buscar argumentar ou decidir algo já a partir de seus novos modos de ver, e se defrontar com aquele ambiente, que continua a operar nos moldes anteriores. Querer permanecer obedecendo aos mesmos critérios e obter aquilo que só está disponível em outro ambiente que tem suas próprias regras é algo com pouca probabilidade de bons resultados. Não dá para mudar permanecendo onde se está, existencialmente.  Os livros de auto-ajuda, algumas linhas de terapia de base comportamental vendem essa ilusão:  seria possível mudar seu comportamento sem todo um movimento existencial complexo, que implica perdas, riscos etc. E é por isso que as mudanças provindas desses recursos são só temporárias. Quando chegam  as exigências dos novos lugares existenciais, não há força, critérios desenvolvidos, convicções amadurecidas, sentidos experimentados e conectados com os processos autogenicos .Não se alterou o modo de produzir a si próprio. 

Na Filosofia Clínica a aproximação feita pelo clínico aos mundos da pessoa é feito via EP, espécie de consolidação simbólica dos principais traços provindos da sua historicidade. E por ela que é possível acompanhar seus principais movimentos existenciais, seja de crescimento, de queda, de estagnação.  Ao trocar os vizinhos pode ser que esteja mudando seu patamar autogênico. Às vezes não é isso, mas é apenas  um movimento  pontual, de mudar certas contingências, certos hábitos, certas relações. Na clínica o caminhar do terapeuta deve ser sereno e atento.

A movimentação autogênica pode ser instável. A pessoa pode estar se sentindo bem, e no momento seguinte está no maior baixo astral, pode estar animadíssima ou entediada, deprimida ou motivada. O critério clínico será sempre a base categorial da pessoa, suas tonalidades afetivas predominantes e não  seus estados emocionais atuais. A avaliação deve ser pela escuta das circunstancias recentes vividas, vinculadas com sua EP, e não seus “estados”.

Nos pocessos clínicos exercidos via Matemática Simbólica, no ambiente autogênico da pessoa, a atenção do clinico deve estar também nos critérios usados pela pessoa. Não é raro a pessoa  chegar  numa determinada consulta, durante o processo,  com referencias, valores e opiniões muito diferentes de seu hábito. Isso pode ser observado comparando o que ela está vivendo com seus novos vizinhos. Estes são valores, referencias desse mundo q ela passou a freqüentar ou é parte de um mundo criado por ela. E o clínico deve reparar também se há uma certa estabilidade nessas novas referências  Quando a pessoa está em mudança pode ocorrer que  seus parâmetros mudem só temporariamente. É observando os vizinhos q é possível verificar se a pessoa está em movimento de criação de “novos mundos” (ascendente, de riscos, vertical) ou de estabilidade (tranquilidade, segurança, horizontal). Se for um momento de criação os vizinhos atuais provavelmente não conversam com os vizinhos anteriores, enquanto q se o movimento for de sossego as referencias dos vizinhos tendem a permanecer as mesmas. Em certos momentos criativos o rompimento com padrões anteriores pode ser muito forte a ponto da pessoa eliminar de sua vida certos elementos que até então eram os mais importantes,  determinantes: um namorado, a família, um emprego. Com fortes vínculos com seus novos vizinhos a pessoa pode não querer  mais voltar ao mundo em que vivia. É claro que há sempre risco. E é claro que deve ser observado o que é específico deste caso, singular a esta pessoa em atendimento. 

Ainda outros aspectos

Com o risco de se tornar monótono, o autor não pode deixar de ressaltar mais uma vez a  importância predominante da atenção para as bases categorias, para o mundo de onde a pessoa vem, para onde se dirige, onde está. Secundariamente, durante os momentos de reflexão e planejamento, o clínico pode fazer, para si,  certas aproximações, levantar  hipóteses, para observar as movimentações nas relações e pesos tópicos, que estejam ocorrendo.  Certas coisas podem estar se modificando ou deixando de ter validade (“não acredito mais que a virgindade é sinal de integridade pessoal”). Nunca é demais lembrar: aquilo q constitui a EP está vivo, em conversação permanente, com as coisas do mundo, as pessoas, consigo etc.

Ao filósofo clínico compete acompanhar esses movimentos existenciais, conversar sobre as novas vizinhanças,  sempre garantindo proximidade com a pessoa. Caminhar com ela onde e como ela estiver. Respeitar seus modos de expressão, de ódio, de amor, de indiferença. Certos modos da pessoa podem estar muito distantes daqueles já vistos pelo clínico, porém, fazem parte de seu ofício procurar compreender  os modos diversos, diferentes de viver e de se expressar que a  pessoa experimenta.  Se o clínico não tem referências em suas experiências pessoais pode explorar um pouco a historicidade da pessoa para ir se aproximando desses mundos de referências.

 Como diferenciar quando se deve interromper uma clínica que está se fazendo por esses movimentos  autogênicos e buscar uma intervenção tópica? Talvez quando o clínico começar a perceber que os movimentos da EP nos seus mundos circundantes, nos contextos de convivências, começam a não fluir como de hábito. São indicações que surgem nos seus relatos, nas suas expressões corporais, faciais, em gestos incomuns, o surgimento de fatores existenciais novos. O modo de lidar com isso pode ser retomar vínculos com momentos da historicidade, procurar indicações de intervenções clínicas já feitas e provocar situações que pelas reações possam dar alguma indicação do que está ocorrendo.

Uma maneira que pode ser útil, em alguns casos, é atentar para os modos como essa pessoa trabalha a si própria. Como é sua autogenia, até aqui?  Quando algo novo surge na sua vida, como ela age? Se for um problema de difícil solução, ela se desespera ou age no modo “Rita Lee” (“tire isso da cabeça, põe o resto no lugar..”). Há casos em q a pessoa permite que sua EP como um todo, dê um jeito de se reorganizar. O modo de clínica via Autogenia, através da Matemática Simbólica, abre espaço para eventual legitimidade de “conhecimentos-desconhecidos”, de base não racionalista, apoiados em saberes intuitivos. E isso não implica irresponsabilidade, antes, reconhece os limites do conhecimento no campo humano.  Este modo de trabalhar, entretanto, é para algumas pessoas, alguns modos de organização estrutural.

Com uma  EP com bom funcionamento nas relações tópicas – sem grandes conflitos e choques  – essa própria configuração inclina a EP para lugares  existenciais adequados. Uma EP assim pode se encontrar, circunstancialmente isolada em um ambiente desconhecido, mas tende a encontrar rapidamente modos de ajustes e formas de comunicação com os vizinhos que vão se apresentando. Não há como a priori saber se um novo elemento vai permanecer e se incorporar à sua vida ou se é um elemento apenas de passagem. 

Num momento de grandes mudanças, sempre se diz que há riscos e oportunidades, ameaças e possibilidade de ganhos e reconhecimento. Uma EP com boa fluidez,  pode assimilar uma série de recursos que não se dão a observar, a perceber, na vida corrente. Estando livre das principais contingências existenciais, pode aproveitar modos de apreensão que podem lhe facilitar decisões de vida, impensáveis em seu modo cotidiano habitual.

Não é raro nestes momentos em que a pessoa tem que tomar alguma decisão importante, que ela crie uma porção de limites imaginários e barreiras psíquicas que se tornam insuperáveis.  Fazendo isso abre mão de possibilidades que, talvez,  a sua força estrutural poderia lhe trazer.  Esse caminho de soltar-se à sua força “estrutural”, deixar que “sua EP” (esse modo de fazer-se a si, do tornar-se- si-próprio, que levou toda a vida construindo) faça o papel que já é dela. Como se observa em certas pessoas que parecem portadora de uma força excepcional nesses momentos, ou ainda aquelas pessoas das quais se diz “puxa, como ela é auto confiante …como é que consegue fazer isso, nessas circunstancias!”. Mas ao clínico resta a questão de como proceder, como saber se a “EP”  desta pessoa não vai encaminhá-la  para um caminho perigoso? Aqui se volta ao começo e ao sentido deste trabalho. Quem é esta pessoa? O que é próprio a ela? Como ela produz e se torna o que é?

 Uma pessoa “solta”, auto-confiante, possivelmente (mas, não obrigatoriamente) tem sua organização estrutural para direcioná-la, algo como o “submodo Zéca Pagodinho”: “deixa a vida me levar, vida, leva eu…” E isso pode não ser  uma “loucura” mas, algo sensato. Afinal,  esses  caminhos já podem estar como que  previamente estabelecidos, pela fluência com que a pessoa se relaciona com suas  vizinhanças conhecidas ou próximas.

Vizinho é um nome que se usa nestes procedimentos de clínica autogênica para os chamados  fatores  de similitude,  que são elementos que podem interferir, reparar, encaminhar para as coisas e lugares, próximos, familiares. Vivências anteriores podem se propagar e conversar, se relacionar com vivências atuais, surgentes, sem que a pessoa se dê conta. O curioso é que isso é quase uma circunstancia comum, ordinária da vida, um recurso do ser humano, que é desprezado, deslegitimado pelo modo de conhecimento predominante. Na clínica quando é possível um direcionamento com esta base, é dos melhores destinos existenciais possíveis à pessoa.

Uma caso inventado de procedimento baseado na autogenia

Dá pra imaginar q Hanna deixou sua EP vagar livremente, a ponto de lhe trazer uma perspectiva absolutamente diferente daquelas que suas vizinhanças habituais lhe trariam.  Se não for assim, como compreender o surgimento dessa nova perspectiva de seu olhar, tão distante dos critérios, das referências culturais, epistemológicas, sociais, axiológicas de seu ambiente intelectual e existencial, predominante naquela Nova York, de então.

Mas como isso foi possível?  Tudo indicava um desdobramento completamente diferente. No seu mundo circundante este modo de enxergar as coisas era algo simplesmente inconcebível, inaceitável.  Mas algo lhe passara na mente e ela teve a sorte da proximidade de Malcolm, seu filósofo clínico. Mesmo este, acostumado ao flutuar dos movimentos da EP de Hanna, ficou muito espantado. Percebeu que se tratava de uma poderosa intuição que lhe visitara. Uma forte transversalidade, na sua linguagem da Matemática Simbólica. Não era um movimento existencial vertical /ascendente, nem horizontal/ estabilizado.

Mas uma coisa é reconhecer o fenômeno, na clínica e outra é como lidar, acompanhar e ajudar sua partilhante a lidar com ele.   Ela sabia que havia alguma coisa naquela situação que fazia um sentido completamente diferente do habitual para ela. Como é que ela pôde passar a ver naquele homem que admitia com a maior naturalidade, sem qualquer culpa ou constrangimento, ter sido o agente das maiores atrocidades frente a um numero enorme de pessoas? Como ver um homem atrás disso? Como prestar atenção e ponderar suas “razões”? Razões?

Neste texto não importa a questão propriamente, mas como foi possível a Hanna lidar com ela e como Malcolm procedeu como clínico.  Isto é só um exemplo, inventado.

 Ali havia um fenômeno que ela vislumbrou e que a sua vizinhança atual não lhe dava permissão nem de considerar. Malcolm lembrou-se do relato que ela lhe havia feito, muito tempo atrás, de sua experiência de sair da casa de seus pais, com menos de 20 anos para seguir uma intuição poderosa, de estudar filosofia, nos confins da Alemanha, com um jovem professor que vinha impressionando o mundo intelectual por suas teses revolucionárias, na fenomenologia, vinculando existência e ontologia.

Aquelas circunstâncias, vividas quase 50 anos antes, mudaram por completo o sentido de sua vida. E de tal forma que direcionou praticamente todos os aspectos de sua existência. Esse modo de confiar e seguir as intuições que lhe visitavam foi seu modo pela vida afora, nos momentos das grandes decisões. Nela, uma exímia intelectual.  É claro que isso aconteceu, com intensidade menor, com menores repercussões, mas, sempre com resultados favoráveis.

Desta vez, entretanto, a dimensão era incomensurável: a sua própria identidade estava ameaçada; tinha o risco de perder o trabalho na universidade – que adorava – seu prestígio na imprensa e na intelectualidade, seu reconhecimento público, social, seus amigos etc. Mas talvez fosse mais uma vez uma oportunidade de ampliar os sentidos de sua vida própria, de si mesma. De des-mesmificar o seu si próprio. Bem no cerne de sua Autogenia, de suas relações tópicas, do peso de cada uma neste re-arranjo.

É claro que essas reflexões foram feitas por Malcolm. Que pouco a pouco foi pesquisando modos de apoiar os passos de Hanna na direção que ela vinha traçando.  E não deu outra: com o apoio aos movimentos com vistas a reforçar seus vínculos com os novos vizinhos que se apresentavam, ajudou-a a criar um bom afastamento das vizinhanças que lhe pareciam perniciosas e dificultantes para o desdobrar dos desafios que a nova configuração exigiria dela. Não é preciso dizer, leitor, como, depois da situação passar, Hanna, consigo mesma, com Mary, e com outros poucos, pôde viver uma ampliação de seu ambiente existencial inimaginável, a princípio, para uma pessoa de sua idade e já tão consolidada.

Ainda algumas considerações

Como compreender que uma EP pode oferecer para a pessoa uma maneira de observação sobre si, tão diferente? É quase certo que por raciocínios e relações habituais a pessoa não chegaria a tantas possibilidades. Os caminhos podem ocorrer por transversalidades, mas também podem ser traçados pela pessoa  por horizontalidades ou  verticalidades. Um modo é construir novas vizinhanças.  Os elementos horizontais são os que estão na mesma base existencial, na mesma “realidade”, no mesmo campo.  Quando a pessoa quer sair dessa “realidade” é uma indicação de movimento com vetor para verticalidade.

O elemento que mais dificulta qualquer movimento autogênico é  a intenção e controle. Se a pessoa quer mudar mas quer garantia, certeza etc, tende a não mudar. Esse é o grande freio para o movimento autogênico, vale dizer, para criar condições para q o próprio se engendre de uma nova maneira para si.

Há muitos aspectos da vida que são incompreensíveis para a base categorial em que se vive. Uma das mais constantes é expressa pela idéia de “coincidência”, como se a “incidência” de algo comum não pudesse ter sido produzida, gerada com alguma relação com alguma outra coisa. Não é preciso entrar no mundo racional de causa-efeito, para poder observar certas relações – de natureza ainda não referenciada e admitida como corrente – que relacionam elementos que incidem juntos.

Em todo o ambiente da Autogenia, da aproximação da origem e modificações daquilo que é próprio a alguém, do modo como se pode ter certos vislumbres de quem é essa pessoa  será sempre imprescindível a historicidade da pessoa, os exames das categorias e a formulação da  EP. Sem isso não há Filosofia Clínica. O âmbito aberto pela Autogenia traz possibilidades e recursos importantes para o desenvolvimento da clínica. Mas há que se ir com prudência e serenidade, porque sendo campo de pesquisa e envolvendo muito de perto destinos humanos, a possibilidade de interpretações esquisitas é muito grande. Não é raro observar colegas – aderindo ou rechaçando –  que entendem o trafegar neste campo delicado de conhecimento-desconhecido, em que se dá boa parte de nossa experiência humana, como justificação de  compreensões esotéricas, religiosas ou delirantes. Nada mais longe do que se propõe como Autogenia.  Leitor, faça o seu percurso. A caminhada, só ela, já vale a pena.

Afinal, permanece a questão:  quem é esta pessoa?  

A colcha de retalhos na filosofia clínica e a teoria portátil na psicanálise

Cláudio Fernandes
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/USP] terapeuta, filósofo clínico, psicanalista

A filosofia clínica traz para o campo semântico da clínica existencial algumas tradições importantes da filosofia ocidental. Traz consigo as suas linguagens.

Ela não é e não faz propriamente filosofia, assim como não faz metafísica, ontologia, fenomenologia ou hermenêutica. Não é uma clínica provinda de protocolos estatísticos, “indistinta”. Institui-se como filosofia clínica, como um modo próprio em que a separação de seus termos – filosofia e clínica – desfaz a possibilidade de sua compreensão. Mas não será por isso que se absterá de lidar com fenômenos, teorias, ou linguagens diferentes. E nessa lida, por diferenças, se dá a perceber, faz afirmações. Certamente, tem modos pressupostos de ver o mundo, mas não se institui como modo de ver o mundo. Ela não é ciência, não é filosofia. Não é e não se pretende uma teoria do conhecimento. O que lhe é próprio surge, vive, se transforma e se destina em campo semântico próprio, campo dessa relação humana peculiar – a clínica.

Lúcio Packter, que inicialmente a concebeu, usa a bonita imagem da colcha de retalhos para descrever a diversidade de influências epistemológicas da filosofia clínica: “…é extremamente eclética, é uma grande colcha de retalhos na qual as escolas estão em conversação…e o critério para dizer qual irá se destacar e qual irá deixar a desejar é simplesmente o que nós encontramos lá na história da pessoa”. A colocação é precisa: há na filosofia clínica uma conversa entre diversas tradições da filosofia. “Conversar” é trazer as falas das pessoas, as suas versões de observação do mundo, para um lugar em comum. E, além disso, tem também o curioso sentido de “conviver, morar, residir”. Diferentes tradições e pensamentos podem conviver em um método, oferecendo ao clínico a opção de iluminar o caminho, com a luz mais adequada a cada passo.

Karl Jaspers, o pai da psicopatologia, ao elaborar as suas teorias sobre as doenças psíquicas e suas possibilidades de tratamento, defendia que no plano “científico” há de haver a “liberdade para todas as possibilidades da investigação empírica,[para a] defesa contra o desvio de querer por a humanidade sob um só denominador. No lugar de discutir um esboço do todo, deve-se preferir aqueles horizontes em que a nossa realidade psíquica se apresenta” . Ainda que não se acompanhe as suas escolhas, esse pedido de princípio à diversidade de “horizontes” é importante, significativo.

No campo clínico, a influência da diversidade de horizontes permite apreender a experiência por diferentes ângulos, estabelecendo o foco ou a ênfase, hora num aspecto, hora noutro. Cada tradição filosófica tem uma maneira de olhar, de captar as experiências, dando oportunidade de organizar modos distintos de escuta. A conexão entre as partes dessas tradições é feita a partir da utilidade prática nos modos de apreensão do relato da pessoa. Não há razão para se buscar uma unidade ou uma coerência entre os elementos do método fora das exigências da clínica, apenas para atender aos deuses do âmbito metafísico ou do mundo universitário. Um método é um “caminho para” – “odos” e “meta”- e sua organização se dá no enfrentamento das exigências do próprio caminhar: se tiver bons instrumentos, companheiros de viagem experientes e boas indicações no percurso, melhor será para o caminhante.

Por que não trazer, como faz a filosofia clínica, aspectos do pensamento de Protágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Kant, Hume, Schopenhauer, Marx, Dilthey, Husserl, Whitehead, Peirce, Wittgenstein, Heidegger, Foucault, Merleau-Ponty, Ricoeur, Agamben e…? Para fazê-los presentes, através dos modos de leitura do clínico e de suas formas de ver o mundo, o ser humano, esta pessoa em sua contingência?

A psicanálise, uma clínica consequente e experimentada, fez e faz o seu percurso de modo diferente, desde que foi “criada” por Freud. Nos últimos 100 anos, a partir da prática clínica, da reflexão sobre ela e, da incorporação de outras tradições, muitos psicanalistas criaram “escolas”, “linhas”, “tendências”, numa diversidade enorme de modos de compreensão do que é a psicanálise. A Adler, Abraham, Anna Freud, E Jones, Ferenczi, Hartmann, Jung, W. Reich, O Fenichel, Kohut, Karen Horney, Melanie Klein, Bion, Kris, Lowenstein, Lacan, Winicott, para ficar nos principais. E todos esses modos de compreensão não desfiguram aquilo que lhes é essencial: “A psicanálise é o que se passa em análise. Num divã, alguém fala, em princípio, sem qualquer retenção. Numa poltrona, alguém escuta, em princípio sem qualquer idéia preconcebida. Daí é que se precisa partir, é aí que é preciso permanecer”, como tão claramente define o psicanalista frances Jean-Bertrand Pontalis. Há muita diversidade de referências mas o pensamento inaugural continua lá: Freud.

O filósofo clínico Will Goya observa com perspicácia que “o psicanalista é alguém que verdadeiramente sabe ouvir… mas com os ouvidos da psicanálise”. E isto é muito importante de se notar, uma vez que o psicanalista em sua prática clínica não pode prescindir daquilo que o teórico da psicanálise, Renato Mezan, nomeia como uma “teoria portátil”. Cada uma das “escolas” psicanalíticas é resultado da explicitação de diferenças teóricas surgidas em confrontações que em algum momento surgiram a seus protagonistas como inconciliáveis. “Mas ainda assim o analista continua analista, embora fazendo semblante de saberes muito diferentes dos que Freud fazia”, como nos lembra o psicanalista paulista Marcio Peter. Ele continua a exercer seu ofício ainda que tratando com linguagens, teorias e uma infinidade de questões trazidas pelo exercício clínico. O psicanalista ouve com os ouvidos dessas psicanálises que se fazem e se refazem a partir de sua própria prática, mas sempre com algum grau de reverência à “teoria portátil”.

Mesmo adotando uma “atenção flutuante”, o psicanalista faz a sua experiência clínica com a sua “teoria portátil”. Ela é um amálgama de vivências próprias com as teorias e as interpretações de outras experiências, em busca de uma universalidade que não se realiza. A prática as devora, tira-lhe o sentido, exige e não consegue oferecer uma resposta unívoca. “Cada caso exige uma terapia diferente… a psicoterapia é tão diversa como os indivíduos…não é possível estabelecer regras gerais…cada doente exige o emprego de uma linguagem diversa”, como tão bem escreveu Gustav Jung, um psicanalista de primeira hora e de tantos talentos.

Na filosofia clínica o terapeuta não se utiliza de uma “teoria portátil” no exercício da escuta. Ele simplesmente escuta, numa “despreocupação atenta”, como ensina o filósofo clínico Hélio Strassburger, no desafio constante de silenciar seus sabidos e inevitáveis preconceitos.

Estes modos de proceder dos filósofos clínicos e dos psicanalistas, têm uma natureza próximos dos da arte e muito distantes dos da técnica. São mais convivências com sentidos pré-estabelecidos, caminhos partilhados, do que “técnicas de ajuda”. Os saberes das experiências humanas estão entranhadas e são produzidas em plena con-vivência, não sendo algo estranho a elas, vindos de fora – como a técnica – que os organiza, como um a priori. Os princípios são éticos e não de resultados ou de objetivos genéricos, como “curar”, apaziguar angústias, prover bem estar e outros. Sensibilidade e tolerância à incerteza no lugar de “perícia” e “pressuposições”.

A filosofia clínica em sua prática de cuidado se aproxima mais dos movimentos do fazer artístico. Próxima daquilo que o artista plástico paulista Sérgio Fingermann traz em um momento de sua reflexão sobre um quadro familiar: “..será a luz (da tarde) o acontecimento daquela pintura? Será que o acontecimento ali é o silencio que habita aquela cena ensombreada? Aquela luz da tarde precede a noite que chegará com suas sombras e encobrirá tudo. Falta alguma coisa ali, alguma coisa antecede a imagem se fazer como compreensão. Aquela pintura não comunica o conteúdo de um pensamento, ela nos faz prisioneiros de uma “voz” que é portadora de uma tonalidade afetiva. É poesia subentendida. O tema da pintura é passagem, caminho lugar destinado ao transito de um para outro ponto. É um convite para irmos aonde? Aquela pintura é passagem…”. Ela não é em sua natureza uma técnica, é um modo de escuta.

A filosofia clinica é plástica, de saída. Conjunto de hipóteses articuladas entre si com a finalidade de oferecer perspectivas diferentes para facilitar a apreensão dos sentidos emitidos pela pessoa, por mais contraditórios que se apresentem ao olhar de quem observa. Com isto se forma um campo semântico próprio, peculiar e abrangente. Cada clínico aprende à sua maneira: por leituras, estudos em comum, aulas, trocas com outros profissionais, práticas supervisionadas, assimilando noções, hipóteses, de modo mais ou menos sistemático, meditado, refletido.As inumeráveis possibilidades de combinação oferecidas ao clínico, a partir dessas tradições da filosofia são um traço importante da filosofia clínica. Privilegiar, a priori uma tradição, talvez seja útil para evitar a dispersão especulativa nos trabalhos, predominantemente abstratos, filosóficos ou das teorias científicas, mas, de modo algum a um caminho clínico, que em sua constituição e natureza lida com as pessoas em seus infinitos modos singulares.

A colcha de retalhos das tradições filosóficas mobilizadas pela filosofia clínica dá condições para surgir o inédito: uma clínica da experiência singular. Que já parte do singular. Tateado e firme, incerto e rigoroso. Quem está na lida clínica sabe como isto é precioso.

O que é que fundamenta uma terapia?

Cláudio Fernandes
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/USP] terapeuta, filósofo clínico, psicanalista

Qual o verdadeiro fundamento de uma terapia? Como se poderia estabelecer os fundamentos para uma clínica que atua nos cuidados de questões relacionadas à existência de uma pessoa?
Aqui se argumentará que o fundamento mais consistente é a própria experiência clínica.

Sobre fundamento

Em geral se diz que um conhecimento é verdadeiro se estiver bem fundamentado, ou apoiado sobre uma base sólida. O fundamento seria uma garantia de que se caminha em solo firme, dando a confiança necessária para um saber. Com a palavra “fundamento” se procura significar aquilo que está na origem, na base; ou aquilo sobre o que algo se assenta, se alicerça; ou, de um modo mais abstrato as razões ou os argumentos, por exemplo, em que uma teoria está apoiada, os seus princípios; ou ainda, a causa de alguma coisa.
De qualquer modo, a noção de fundamento traz consigo a idéia de ser uma base, algo que dá sustentação, que suporta, que mantém firme. Uma boa base é o que dá a confiança necessária de que algo não vai cair, se desequilibrar, ou mesmo se desfazer. A base desta mesa, daquela escultura, daquele prédio, assim como a daquela filosofia, o alicerce daquela ciência, a estrutura daquele trabalho. E disto, por exemplo, provêm expressões como “argumentos bem embasados”, “conceitos fundamentados”, “idéia original”, “professor com conhecimento profundo” e, assim por diante.
Na idéia de base há pressuposta uma analogia espacial, onde o fundamento estará no ponto mais baixo ou no mais alto do espaço. No âmbito religioso, para muitos, acima de tudo está representado um deus; nas estruturas de poder no topo sempre está quem reina, quem sabe, quem decide, o chefe. Ou, a idéia correlata, daquilo que está no fundo, no mais profundo: a teoria enraizada em bases sólidas, o homem de uma sabedoria profunda. A idéia que se tem é que lá no fundo, num lugar de difícil acesso, mas existente, há algo com essa firmeza, essa solidez necessária e definitiva.
Não é incomum ouvir que um conhecimento está “ancorado na verdade”, tomando-se a âncora como símbolo do fundamento. Note-se, entretanto, que o fundamento não é a âncora, mas sim, onde a âncora está fixada, aquele lugar que ancora a âncora. O fundamento, neste caso, seria “como a terra vegetal adubada, o solo grávido, frutífero…a região que está mais funda, que dá suporte”, como diz Heidegger em “Proposição do Fundamento”. Essa região seria o lugar originário, a origem, onde tudo começa, onde o ser nasceria, onde as coisas seriam instituídas. E onde também se daria o início do tempo. Não é difícil perceber a presença desse modo de pensar na cultura ocidental.
Um conhecimento, um saber, uma ciência dificilmente serão admitidos se não tiverem uma base sólida, um fundamento consistente, uma relação firme com a origem. Isto é pressuposto – “pré”, antes, de antemão; “su”, de baixo para cima; “posto”, colocado. Aquilo que não tem um fundamento estaria flutuando, disperso, difuso, ao sabor dos ventos, das contingências, vagando, incerto, sem limites. Tudo, todas as coisas, todas as idéias teriam uma origem, que seria a sua fonte asseguradora. Um algo que está antes no tempo e acima – ou abaixo – no espaço, sustentando tudo.
Curiosamente, a ideia de fundamento, mesmo sendo aceita de maneira universal, raramente é tematizada ou pensada criticamente.

A proposição do fundamento

A certeza de que há um fundamento foi expressa de maneira pretensamente inequívoca, por Leibniz, na chamada proposição do fundamento, que diz: “nada é sem fundamento” – “nihil est sine ratione” . Essa dupla negação – “nada…sem” – é que estabelece esse caráter de “necessidade inelutável” que marca uma parte importante do nosso pensamento. Ela tem tal força e amplitude, que mesmo ao ser enunciada, cobra que se efetive: a própria proposição do fundamento, sendo “algo”, deve, ela mesma, estar submetida ao que afirma, isto é, deve ter, ela mesma – proposição do fundamento – um fundamento.
O fundamento da proposição do fundamento seria então, entre todos os fundamentos, o fundamento por excelência, algo assim como o fundamento do fundamento. Mas não se teria que ir em direção ao fundamento do fundamento do fundamento? E assim por diante numa regressão ao infinito? Se o pensar sobre o fundamento seguisse esse caminho iria cair incessantemente no carente de fundamento.
Se – como diz a proposição do fundamento – tudo tem um fundamento e, se ao procurá-lo se cai numa regressão ao infinito, se poderia fundar uma perspectiva de leitura do fundamento de que, no final, nada tem fundamento.
Heidegger chama a atenção que não será por outro motivo que Leibniz teria caracterizado a proposição do fundamento como “principium rationis”, entendendo-se “princípium” como aquilo que contém em si a “ratio” – a razão – para outra coisa. “Principum rationis” se torna o mesmo que “ratio rationis”: a razão da razão, ou, o fundamento do fundamento. O princípio do fundamento teria, para Leibniz, na leitura de Heidegger, a natureza de um axioma: uma proposição considerada por todos como patente, certa, um “conceito-limite” (Leibniz dirá: “..axiomas e postulados… princípios primitivos, que não poderiam ser provados e, não têm necessidade disso” ). E seria esse caráter axiomático do axioma que traria a segurança de que as contradições ficariam afastadas, que não interfeririam no processo de construção do conhecimento. A forma axiomática não se referiria a um objeto específico, mas serviria a qualquer objeto. O fundamento se tornaria aquilo que procura estabelecer uma unidade, uma totalidade, com a função de eliminar as contradições que a diversidade dos fatos, dos fenômenos ou das teorias naturalmente traria.
Um objeto ao ser tomado como uma unidade, como um todo, concentra em si a promessa de uma plena determinação – cria essa ilusão. E faz isso como se estivesse restrito à sua essência, a uma objetividade do objeto, eliminando o que estaria fora disso. No mundo científico, em que é soberano o conceito de objetividade, a verdade só poderia ser estabelecida a partir da entrega de um fundamento – ainda que este fundamento tenha em sua base a fragilidade de um axioma. Um argumento de autoridade: “é porque é”, porque alguém diz que é.
No mundo acadêmico as verdades tendem a ser produzidas circunscrevendo-se um ambiente, um universo: dentro dessas condições, destes limites previamente estabelecidos, com o número de variáveis controladas, será possível se aproximar de afirmações que poderão ser testadas, verificadas e confirmadas. Isto pode ser aceitável para a ampliação do entendimento e talvez até de conhecimento de um número grande de práticas das chamadas ciências operacionais, que lidam com os aspectos materiais da vida (como a medicina, a biologia etc). Mas para a produção de conhecimentos nas áreas que tratam com os aspectos espirituais da vida humana, esses procedimentos não servem: há um tremendo equívoco. Pode ter sido louvável, em algum momento da história das universidades, buscar acolher sobre o manto quase sagrado da ciência os saberes ditos espirituais, mas, o crescente caráter métodológico de seus procedimentos, hoje mais confundem e dificultam o processo de conhecimento nessas áreas .
Na vida cotidiana, mesmo quando há uma busca do fundamento, ela costuma terminar com uma primeira resposta, muitas vezes superficial. E isso é tão comum que as pessoas mal sabem, mal se dão conta que ao perguntar “por que?”, buscam um fundamento. É muito raro que se prossiga, indo mais adiante, em buscas mais aprofundadas. Qualquer pessoa pergunta “por que?”, mas são raras aquelas que não se satisfazem com uma primeira resposta, com um primeiro “porque”.

A razão como fundamento

No dia-a-dia há um outro modo muito presente da proposição do fundamento que diz “nada é sem causa”. Ou que “não há efeito sem causa”, ou ainda que “a todo efeito lhe corresponde uma causa”. Neste caso fica clara uma relação entre algo que se toma normalmente como fenômeno presente – o efeito – e um outro algo – a causa – que o produz. Há, aqui, um tempo, um suceder que está pressuposto nesta relação: a causa, que ocorre antes, determina o efeito, que lhe sucede. Nessa relação de tempo passa a vigorar uma regra que diz que ao se tomar algo no momento presente – o efeito – sempre se estará pressupondo que há algo que vem antes – a causa – e, que neste momento anterior está pressuposto algo que sempre lhe sucederá.
Essas ligações causa-efeito são determinações mentais – têm a sua realidade na mente das pessoas – que passam a ter um caráter de necessidade, isto é, obrigatoriamente ocorrerão. Como escreve Kant, na “Crítica da Razão Pura”, “…em nossas representações [que são mentais] se estabelece uma ordem na qual aquilo que é presente acena a um estado precedente qualquer como um correlato, ainda indeterminado, deste evento que é dado. Tal correlato refere-se a este evento determinando-o como sua conseqüência e, conecta-a necessariamente consigo mesmo na série temporal” . E conclui: “o que sucede ou acontece [o efeito] tem que seguir, segundo uma regra universal, ao que estava contido no estado precedente [a causa]”.
Como “causa” nomeia algo que é um fundamento, bastaria agora determinar a essência dessa razão inicial, qual a sua natureza, como ela se constitui. Por este raciocínio o fundamento ou a causa seriam constituídos por uma verdade que seria natural, uma razão última, uma espécie de verdade, auto-referida, evidente por si. Se não fosse assim essa causa ou esse fundamento deixariam de ser verdadeiros, já que verdade se define, precisamente, como algo de que não se duvida, de que se tem certeza, que é, portanto, evidente. Válida por si. Um “princípium rationes”, um axioma, no lugar da “verdade natural”, ou da “razão última”.
Em outra perspectiva, ao propor que “nihil est sine ratione” (nada é sem razão), afirma-se que tudo tem uma razão ou um fundamento ou uma causa, soando como uma constatação. Fundamento seria aquilo do qual vem o fenômeno, o que se apresenta a alguém. Toma-se como um dado, como um fato ou como uma verdade, que tudo que existe está provido de um fundamento, tem uma causa ou uma razão. Não há, mesmo no senso comum, qualquer dificuldade para se entender a afirmação da proposição do fundamento, de que tudo tem uma razão e, nem de se estar de acordo com ela.
O curioso é que se entende a afirmação de que tudo tem uma razão depois que ela foi pronunciada, sem ter tido antes a experiência de receber ou de se saber de uma razão, de uma causa ou de um fundamento: sabe-se que há uma razão, uma causa, mesmo antes que uma razão se apresente. E será este modo de ter uma confiança antecipada numa razão, numa causa que se desconhece, que engendrará o raciocínio da validade: algo será válido, terá validade, apoiado em algo que se desconhece. A segurança no valor de algo será dada pela razão que essa afirmação promete e, no limite, talvez nem tenha possibilidade de oferecer.
Razão, que se diz em latim “ratio”, é, para Kant, aquilo que é capaz de princípios, de estabelecer proposições fundamentais, de dar os fundamentos. Ao escrever a Crítica da Razão Pura ele não toma a razão para analisá-la, mas, para levar a razão a seus limites, às suas possibilidades, isto é, para estabelecer as condições sob as quais a razão pode se dar. A razão seria uma faculdade, aquilo a partir do que ela se inicia, de onde ela – razão – brota para ser como é: o fundamento da razão. Criticar não é, para ele, rechaçar, mas, colocar em relevo, ressaltar aquilo que mais importa. Estabelecer o que ele chamará de “as condições de possibilidade a priori”, isto é, os critérios pelos quais algo pode ser conhecido, antes e independente da experiência.
A razão estabeleceria desse modo – pela crítica, por colocar em relevo – as condições em que um conhecimento se torna possível, isto é, ela – razão – se põe como aquilo que determina as condições de possibilidade do conhecimento das coisas no mundo. Mas a razão não fundamenta. Kant dirá de modo inequívoco: “…que tudo o que acontece tem uma causa, não é de modo algum um princípio conhecido e prescrito pela razão.” A razão, mesmo se referindo a objetos “não possui nenhuma relação imediata com eles e com sua intuição, mas só com o entendimento e seus juízos… a unidade da razão não é unidade de uma experiência possível…a razão sem relação com a experiência possível, não teria podido, a partir de simples conceitos impor uma unidade sintética de tal espécie…na realidade, a multiplicidade das regras e a unidade dos principios é uma exigência da razão para levar o entendimento a um acordo universal consigo mesmo, assim como o entendimento submete a conceitos o múltiplo da intuição, levando-a a uma conexão”.
A razão passa a ser capaz de dar os critérios para que se possa representar algo como algo, passa a ser aquilo que estabelece sentido, em última instância, aquilo que cria a possibilidade de se representar o mundo, o real. Mas quem será essa pessoa capaz desse representar?
Obrigatoriamente alguém tomado como um ser ou um “eu” racional, lugar da razão, entendido como universal, e com um caráter puro – fora da experiência. Alguém que possa colocar ante si algo que já venha como uma unidade, como uma totalidade, vale dizer, alguém que possa representar um objeto. Um objeto, esse algo completo, pleno de determinações. Este “eu” que representa este objeto, torna-se nesse ato, um sujeito.
Todo outro fundamento da essência ou do ser de um ente fora desta dimensão da razão pura – fora da experiência – fica excluído. O fundamento suficiente para uma coisa no mundo é a razão subjetivada, isto é, que essa coisa se torne um objeto num sujeito universal, ele também obrigatoriamente a priori, puro. A objetividade de um objeto se funda nessa subjetividade da razão. Mas essa subjetividade é pouco subjetiva, não está limitada a um homem isolado, em sua singularidade e com suas escolhas. Essa subjetividade é uma subjetividade pura, universal, dada a priori, que se estabelece como uma lei que está na essência da possibilidade de fundamentar, de constituir um objeto: não há objeto sem esse sujeito puro, fora da experiência.
Esse sujeito universal quando enuncia a proposição do fundamento, dizendo que tudo tem uma razão, tira o valor do homem singular, com suas contingências, para dar valor ao que é uno -“uma razão”- e uniforme -“tudo”. O homem encarnado, singular, esse que procura a terapia, que se encontra na clínica, em suas percepções, não enxerga nem escuta de um modo só e nem da mesma maneira: o mundo, muitas vezes, lhe parece diverso e, lhe aparece a cada vez de um modo – multiforme. Ele enfrenta o que lhe vem no modo que lhe é possível, a cada vez, se relacionando com as coisas do mundo, disso que lhe aparece como mundo. Ele percebe aquilo que emana, que vem, que se manifesta, que se mostra. Em uma palavra, percebe as coisas como fenômenos, como o que lhe vem ao encontro. Ainda que se pensasse numa unidade dos fenômenos, esta unidade, para este homem singular, já estaria no mundo dos fatos, portanto, contingente, histórico, condicionado, experimentado. Não se estaria mais no mundo puro, a priori, universal. Este homem aqui não é um sujeito universalizável e, por isso, só poderá ser atendido em suas demandas mais singulares, por uma clínica que se exponha ao risco da experiência, sem as defensas de teorias e outros aparatos.

A experiência como fundamento

Quando se coloca a pergunta “por que?” pede-se uma resposta, que a coisa – “res” – seja “posta”, colocada, que algo lhe seja entregue. A pergunta “por que?”, inicialmente, indicaria apenas a direção em busca da resposta, daquilo a ser entregue. Ao perguntar por que, o “por que?” – ele mesmo – não fundamenta, nem sequer sonda o fundamento, ele só indica a direção ao fundamento. O “por que?” é sem porque, não tem resposta quando se torna objeto de sua própria pergunta: o “por que?”, por si, não tem fundamento. O “por que?” indica isso que dá suporte, que dá base, que pré-está, que está lá, que no fundo causa. Isso que está lá, que se dá, que acontece, isso que é, e que é em seu próprio fundamento. Isso que promete estar lá, que com a aproximação escapa, mas que tem uma certa duração, que enquanto permanece e se demora, neste estar, é. Isso que “é” – o ser – é fugidio, é presença efêmera, é enquanto é. Isso que é o que está no fundo do fundamento, que funda, está e é só a partir de si.
O “por que?” enquanto se dirige ao fundamento faz perdurar o fundamento. O “por que?” faz uma indicação de que ao mesmo tempo que algo é, esse algo enquanto é, fundamenta. O ser enquanto perdura fundamenta: funda a si como fundamento. Numa linguagem direta, enquanto é, é: o ser fundamenta enquanto acontecimento. Ser e fundamento, estão supostos no “por que?”: “ambos se co-pertencem”, como diz Heidegger, ainda em Proposição do Fundamento.
O ser ter o caráter de fundamento não quer dizer que o ser tem um fundamento. Ter o caráter de fundamento quer dizer: o ser é a essência de si enquanto funda: é fundante de si. Ser “é” em essência, fundamento. E é por isso que o ser nunca pode, para começar, ter um fundamento que o fundamente fora de si. Como o ser, enquanto ser, é em si fundante, ele mesmo fica sem fundamento. O “ser” não cai sob o domínio da proposição do fundamento, só as coisas do mundo, os entes, os fenômenos.
Ao dizer que algo é e, que é deste ou daquele modo, o que se está fazendo é representando esse algo num discurso como uma coisa do mundo. Só as coisas do mundo – os entes, os fenômenos – são: o ser mesmo, não é. O ser escapa, se esconde, se oculta.
Mesmo oculto o ser perdura. Algo que está oculto está escondido, mas continua presente. É neste registro que se pode pensar na ideia de inconsciente em Freud, como aquilo que mesmo presente está oculto. O oculto é o que está na cena mas na parte escura, ou na ribalta, fora do foco luminoso do palco. É ao sair da ocultação, ao desocultar-se, no vir à luz que o ser guarda o que lhe é próprio, que fica momentaneamente sendo. E ao ocultar-se, perdura, enquanto ser, afinal oculto ainda é o ser que está lá como ser. E será por isso que dá para dizer que o ser, mesmo oculto ou fugidio, funda, é fundante.
E será para lidar com este caráter fugidio da essência ou da natureza do ser que as teorias científicas ao buscarem o seu fundamento se apoiam numa razão suficiente e na citada concepção de um sujeito racional. Colocando-se num lugar “antes” ou fora da experiência ela não precisa dar conta dos acontecimentos e seus modos de apropriação. E isto nas chamadas ciências humanas e especialmente no pensamento sobre a clínica que trata das questões dos modos de existir das pessoas, acaba por trazer uma concepção de homem muito afastada do que é vivido – do lugar próprio deste saber.
O que precisamente a tradição moderna –e a universidade – elimina é a existência, a singularidade constitutiva de cada pessoa. O homem, este homem existe enquanto está aí, ele é propriamente em existência: não estando, não é homem. Essa é a sua natureza, poder-se-ia dizer, a sua essência. Este homem se define por estar no mundo, um ser que está aí. Quando ele diz “eu” ele diz um modo próprio de estar no mundo, um modo só seu de criar um mundo.
Mas isso já é outro assunto. Por hora vale a tentativa de manter sempre viva a pergunta-título “o que é que funda uma terapia?”. Afinal, não é no trato do dia a dia do atendimento clínico a este homem singular, que o sentido dessa questão se refaz?

Como a Filosofia Clínica (também) é estruturalista

A filosofia clínica (FC) tem um modo próprio de ser estruturalista.

Esta afirmação se justifica pela possibilidade de focalizar e apurar os modos de ver o uso da noção de estrutura na chamada “estrutura de pensamento” (EP), central na FC.

A EP é definida como “o jeito da pessoa” , como “o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente”, uma representação do que é o “eu” da pessoa. A EP só existe através do que a pessoa é [nota 1] . Como filósofo clínico tenho diante de mim esta pessoa e, é através dela, da linguagem que vamos construindo juntos que posso ter acesso à sua EP. Construí-la.

O conhecimento de uma EP é sempre um “trabalho realizado”, síntese organizada de observações feitas por um clinico, a partir de sua relação com a pessoa que vem partilhar as suas vivências – o “partilhante”. A EP só está constituída quando estiver estabelecida como uma totalidade. E, como qualquer totalidade, a EP é composta de elementos – os “tópicos”- que se relacionam e se articulam mutuamente. Cada EP é um arranjo único desses tópicos inter-relacionados e de suas possibilidades. Mas só é EP quando está constituída como uma totalidade.

Ainda que sempre tomada como totalidade, uma EP tem momentos estruturais que podem ser muito diferentes entre si. São relações ou arranjos tópicos diferentes que na comparação podem até dar a impressão de se tratar de outra estrutura. Estas diferenças, entretanto, fazem parte das características desta EP: são apenas variações de seus modos próprios, e que, assim a definem e a distinguem.

A um tempo a EP pode ser tomada como uma totalidade unitária, como um conjunto e, de outro como uma série de totalidades momentâneas, circunstanciadas. Em outros termos, sincronicamente (numa espécie de congelamento do tempo) ou diacronicamente (“posta” no tempo, em série). Não teria sentido utilizar a noção de estrutura se ela fosse só estável, imóvel, indiferenciada. Não teria sentido, num caminho terapêutico, sem a possibilidade de se comparar, isto é, produzir e captar diferenças. Portanto, na perspectiva ou no momento de quem observa, a EP pode ser tomada como uma unidade, numa espécie de consolidação, ou como uma série de totalidades formadas por combinações tópicas diferentes.

Em qualquer de suas acepções a palavra “estrutura” indica uma totalidade composta de elementos constitutivos inter-relacionados e interdependentes: “uma estrutura é um conjunto de elementos entre os quais existem relações, de forma que toda modificação de um elemento ou de uma relação acarreta a modificação dos outros elementos e relações” [nota 2] .

Provinda da palavra latina “strutura”, “antes de mais nada, define como o edifício está construído, depois, por extensão o modo como as partes de um corpo qualquer – substancia mineral, corpo vivo, discurso, pouco importa – são dispostas entre si. A estrutura é, portanto, aquilo que nos revela a analise interna de uma totalidade: elementos, relações entre os elementos, o arranjo, o sistema dessas relações” [nota 3]

A noção de “estrutura” pressupõe a idéia de totalidade e da possibilidade de analise das partes de uma totalidade, o que, nas palavras de Pouillon “permite definir o que constitui a singularidade de um conjunto e, ao mesmo tempo, fornece o meio de não nos circunscrevermos a ele” [nota 4] .

Em outras palavras, “estrutura” “é um termo que define ao mesmo tempo um conjunto, as partes desse conjunto e as relações dessas partes entre si” [nota 5]

Apenas com estas definições já se pode entrever a utilidade da noção de estrutura num método clínico, uma vez que permite observar a pessoa como uma totalidade – ou unidade distinta de outras – e, como um conjunto de elementos em sua composição intrínseca [nota 6] .

A EP na FC traz, portanto, essa dupla possibilidade de permitir a observação dos seus movimentos como uma unidade e, a das variações, arranjos e inter-relações dos elementos-tópicos que a constituem. E, mais importante do ponto de vista clínico, traz a possibilidade de relacionar estes dois pontos de observação, num terceiro, mais amplo e certamente mais complexo.

Tomar a EP como unidade traz a possibilidade de observar os seus movimentos, por onde se movimenta, como se movimenta, quais os efeitos de seus movimentos [nota 7] . Por outro lado, a visada a partir das inter-relações tópicas, permite ver seus modos próprios de viver, seus condicionamentos, suas facilidades e dificuldades.

Observar a partir dessas duas perspectivas, permite observar como os efeitos dos movimentos realizados se dão na outra, simultaneamente. Ao se partir da EP como unidade pode-se observar que um determinado movimento estabelece um outro arranjo nas relações tópicas, alterando seus pesos relativos, fazendo e desfazendo “choques”. Na outra perspectiva, como uma mudança nas inter-relações tópicas, altera o seu conjunto, de modo a se poder perceber como a EP passa a se movimentar de modo diferente como unidade constituída.

Os tópicos mais complexos da EP são precisamente os que procuram dar conta das inter-relações tópicas – a “Autogenia” [nota 8] – e dos seus movimentos como unidade – a “Matemática Simbólica”.

Na língua francesa o adjetivo “estrutural” tem duas palavras para o descrever : “structurel” que estaria mais próximo das análises da estrutura como unidade [nota 9] e “structural” que tomaria a estrutura mais como uma sintaxe, como a analise da disposição e relação de seus tópicos [nota 10] .

Os estruturalismos

Roland Barthes, inicia um texto que se tornou clássico [nota 11] perguntando “que é o estruturalismo?” para responder que “não é uma escola nem mesmo um movimento…já que os seus autores não se sentem ligados entre si por qualquer solidariedade de doutrina ou de combate …nem chega a ser um léxico: “estrutura” é um termo muito antigo e hoje em dia [nota 12] muito usado …e o uso da palavra não distingue ninguém” [nota 13] . Desde aquela época – a “de ouro” do estruturalismo.

E François Dosse em seu extraordinário “História do Estruturalismo” [nota 14] anota que “o estruturalismo nasce [justamente] nos psicólogos para opor-se à psicologia funcional do começo do século [XX] mas, o verdadeiro ponto de partida do método em sua acepção moderna…provem da evolução da lingüística. Se Saussure emprega apenas em 3 vezes o termo “estrutura” – ele usava “sistema” – no Curso de Lingüística Geral é sobretudo a Escola de Praga que vai difundir o uso dos termos estrutura e estruturalismo” [nota 15] .

Levi-Strauss trouxe para os estudos das “humanidades” o caráter e a respeitabilidade científica que a lingüística passara a ter. E fez isto através da noção de estrutura. Para dar conta em seu trabalho como antropólogo da multiplicidade das praticas matrimoniais, realiza uma operação de redução lógica, definindo um numero limitado de possibilidades, que ele definirá como “as estruturas elementares do parentesco”. O modelo, ele mesmo precisa, veio da lingüística estrutural: “tal como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação sob a condição de se integrarem em sistemas” [nota 16]. Se toma de Saussure as noções de significante e significado coloca o significante – que era som para aquele – como o lugar da estrutura, e o significado – que era conceito – como o lugar do sentido.

Dosse diz que a lingüística se torna para o estruturalismo a “ciência-piloto” , enquanto a antropologia e a psicanálise serão as 2 “ciências-faróis” [nota 17] . A partir do momento em que se consiga integrar todos os fatos sociais atomizados numa totalidade, a antropologia poderá ser vista como um sistema global de interpretação que “explica simultaneamente os aspectos físico, fisiológico, psíquico e sociológico de todas as condutas e, no centro dessa totalidade o corpo humano…no cerne corporal o inconsciente” [nota 18] .O acesso ao inconsciente só pode se dar pela mediação da linguagem. Antropologia, lingüística e psicanálise imbricadas na produção do estruturalismo como um “movimento” importante na historia do pensamento ocidental, francês, no meado do século 20.

Desse momento inicial o estruturalismo se expandiu a muitos domínios. Em algum momento ou foram “estruturalistas”, ou, no mínimo, estiveram presentes e foram influentes nesse debate : Merleau-Ponty, Piaget, Foucault, Althusser, Barthes, Derrida, Greimas, Jakobson, Deleuze, Lacan, Bourdieu, Vernant, Kristeva, Todorov, Dumezil.

Não são poucos, por consequência, os textos sobre o “estruturalismo”. E em cada um se descobre que muitas concepções diferentes – quando não divergentes – são assim nomeadas. Não é por outro motivo a sugestão de Lepargneur, que seria melhor nomeá-lo como “estruturalismos”.

Mas, como é preciso prosseguir e para isso, fazer escolhas, tome-se um texto que, nesta altura, logo pelo seu título quase que se justifica por si mesmo: “Em que se pode reconhecer o estruturalismo?” [nota 19] de Giles Deleuze, escrito no calor da hora com a sua conhecida perspicácia.

Um estruturalismo

Escrito em 1967 mas só publicado em 1972 Deleuze se propõe a “somente extrair certos critérios formais de reconhecimento [do que se caracterize como “estruturalismo”], os mais simples” [nota 20].

O primeiro critério que estabelece para que algo possa ser reconhecido como estruturalismo é que a estrutura, em sua natureza é simbólica, isto é, não é real nem imaginária. Como simbólica não é uma forma sensível, nem uma figura da imaginação, nem uma essência inteligível. Não pode ser confundida com elas. Está numa espécie de “ordem” ou “reino” em que não pode ser reduzida a aquelas duas e é, a seu ver, mais profunda que elas: o real e o imaginário e suas respectivas relações seriam sempre engendradas depois, pelo próprio funcionamento da estrutura. A estrutura teria essa característica comum com a linguagem, de estar no reino simbólico. Como ela, institui um “real”, configura um “imaginário”.

A idéia dessa “ordem simbólica” que institui a realidade das relações humanas vem da leitura de Saussure feita por Levi-Strauss, pela qual o significante lingüístico tomado isoladamente não possui qualquer ligação interna com o significado. O significante só ganha significação por estar integrado num sistema significante , que se caracteriza por “oposições diferenciais”. A “ordem simbólica” permite tomar o significante independentemente do significado. E é por isso que tentar definir o simbólico se torna um problema: seria tentar buscar atribuir um significado a aquilo que por definição é significante não significado.

A natureza simbólica da estrutura é o que cria a possibilidade de toma-la como método. Como a linguagem, poderá ser concebida como um conjunto significante, uma hipótese, uma ficção.

O segundo critério explicita que a estrutura tem um sentido de posição. Os elementos que constituem uma estrutura não têm uma designação extrínseca (não tem relações de referencia com objetos estranhos a ela) nem uma significação intrínseca (um significado por si mesmo, uma semântica própria) [nota 21].

Um tópico da EP não é nomeado por algo – diga-se – “existente” que

estaria lá, na realidade, no mundo concreto ou mesmo na imaginação. Eles são “lugares” de um espaço propriamente estrutural, isto é, “inextenso, pré-extensivo, puro statium constituído por aproximações como ordem de vizinhança” [nota 22]. Um tópico estrutural, ele mesmo, só se relaciona com outros tópicos, não tem sentido fora do universo estrutural, de seu “reino”.

Como elemento da estrutura, um tópico, como por exemplo “Termos Agendados no Intelecto” (Tópico 6 da EP), só “existe” como parte da EP, como uma posição de observação, sem conteúdo e sem referente, mas fazendo parte dela, constituindo-a, em sua relação com os outros tópicos. Na EP enquanto estrutura potencial, isto é, quando ainda não atualizada, não efetivada, não há relação do tópico “termos agendados no intelecto” com qualquer “termo”, qualquer “agendamento” ou qualquer “intelecto”, estando apenas como uma posição na estrutura, como um lugar de observação, local do qual se observa.

O importante é que os lugares no espaço estrutural são anteriores em relação às coisas e seres reais que os ocupam , assim como aos papéis e aos acontecimentos, sempre um pouco imaginários que aparecem necessariamente quando são ocupados.

O terceiro critério é o diferencial [différentiel] e o singular. Onde há estrutura há multiplicidade e há singularidades: “Os elementos simbólicos [os tópicos] e suas relações determinam a natureza dos seres e objetos que vêem efetua-los” [nota 23] . No caso da EP a combinação entre os tópicos de uma pessoa poderá, diferenciando-a, caracteriza-la.

E, inversamente, “as singularidades formam uma ordem dos lugares, isto é, cada pessoa, em seus comportamentos e atitudes, como que determina a “ordem dos lugares” nas relações tópicas, seus pesos, sua importância.

Em outras palavras “a determinação recíproca dos elementos simbólicos [dos tópicos estruturais] prolonga-se, deste modo na determinação completa dos pontos singulares que constituem um espaço correspondente a esses elementos” [nota 24] . Deleuze diria que os tópicos “encarnam-se” nesta pessoa assim como esta pessoa “atualiza” estes lugares, esta combinação tópica na estrutura.
Deleuze dirá que as “singularidades correspondem com os elementos simbólicos e suas relações mas não se assemelham a eles. Diríamos, antes, que elas “simbolizam” com eles” [nota 25], a pessoa é como que “simbolizada” por essa relação tópica.

O 4º critério é o diferenciador[différenciant]e a “diferençação” que aponta a distinção entre o virtual e o atual. As estruturas não são atuais em si mesmas, mas o são naquilo em que elas se encarnam. A EP só será EP quando for EP de tal pessoa.

Já como “virtuais” as estruturas, não são por isso “irreais, uma vez que o virtual mesmo não sendo atual é real e é ideal, ainda que não por isso seja abstrato…O virtual tem uma realidade que lhe é própria, mas que não se confunde com nenhuma realidade atual, com nenhuma realidade presente ou passada; ela tem uma idealidade que lhe é própria mas que não se confunde com nenhuma imagem possível, com nenhuma idéia abstrata. Da estrutura diremos: real sem ser atual, ideal sem ser abstrata” [nota 26]

A EP como virtualidade é como a estrutura de uma “pessoa em geral” [se isto não fosse impossível – a “pessoa em geral”] que possibilita determinar uma virtualidade de coexistência de elementos simbólicos – os tópicos – que preexiste às pessoas em que se atualizarão, se encarnarão. “Da estrutura como virtualidade, devemos dizer que ela é ainda indiferenciada, embora seja inteira e completamente diferenciada. Das estruturas que se encarnam nesta ou naquela forma atual (presente ou passada) deveremos dizer que elas são diferenciadas, e que atualizar-se, para elas, é precisamente diferenciar-se…..Convém observarmos que o processo de atualização sempre implica uma temporalidade interna, variável segundo aquilo que se atualiza… o tempo é sempre um tempo de atualização, segundo o qual se efetuam, em ritmos diversos os elementos de coexistência virtual ….o tempo vai do virtual ao atual, isto é, da estrutura às suas atualizações, e não de uma forma atual para outra forma” [nota 27].

Parafraseando Deleuze, a EP é, em si mesma, esse sistema de tópicos e de relações diferenciais, mas ela também permite a diferenciação da pessoa na qual ela se atualiza. “Ela é diferencial em si mesma e diferenciadora em seu efeito” [nota 28]

.

O quinto critério é o que diz que toda estrutura é uma série, que “só se põe a mexer, só se anima”, só “funciona” em série. Cada organização tópica, cada momento estrutural se refere a um outro momento estrutural que se definirá por uma outra combinação entre os tópicos.

Quando, por exemplo, um partilhante relata que bateu o carro porque estava “fora de si” (Tópico “Comportamento e Função”), tomado por uma emoção incontrolável (Tópico “Emoções”), após os comentários depreciativos feitos por sua mulher (Tópicos “Interação de EP” e “O que acha de si”) por não ter conseguido a promoção profissional que esperava (Tópico “Busca”), atualizando um arranjo estrutural tantas vezes (um “padrão”) vivido-relatado em sua história de vida. Por um lado a EP deste partilhante poderia ser caracterizada pelo peso do tópico “Interação de EP”, mas, ao fazer isto – dar este peso – se estará pressupondo a existência da série, uma vez que haverá situações vividas em que o arranjo tópico não estará influenciado por uma interação com uma pessoa (ou, em outra linguagem, uma “EP”) como a do exemplo, ou poderá estar influenciado de modo positivo.

Neste caso há uma outra “escolha de elementos simbólicos de base e das relações diferenciais em que eles entram…mas ainda pela constituição de uma segunda série, ao menos, que mantém relações complexas com a primeira…e se a estrutura revela um campo de problemas, é no sentido em que a natureza do problema revela sua objetividade própria nesta constituição serial” [nota 29] Uma estrutura só se põe a mexer, só se anima, só passa a “funcionar”, a criar diferenças, quando se dá a observar, quando se constitui em uma série. A condição para a observação sincrônica da EP é a existência da perspectiva diacrônica.

O sexto critério é o da “casa vazia”. Para Deleuze a estrutura envolve um elemento ou um objeto paradoxal, que não cessa de circular pela série e que constitui o ponto de convergência dos “momentos estruturais” divergentes. Esse “elemento” está sempre deslocado com respeito a si mesmo, sendo a sua propriedade não estar onde se vai busca-lo e encontra-lo onde não está, por isso ele “falta a seu lugar”. Ele dirá que não há estruturalismo sem este “grau zero” que, estando em toda parte, produz o sentido em cada série e não deixa de desfaze-la. Esse “objeto” não é assinalável, isto é, não é fixável em um lugar identificável em um gênero ou espécie.

Eis porque Deleuze comenta que a questão de “em que se reconhece o estruturalismo” conduz à posição de algo que não é reconhecível nem identificável. É portanto um paradoxo, pois, como seria possível reconhecer um elemento sem identidade?

É certo que o estruturalismo não poderá responder à pergunta sobre a sua própria natureza em termos de identidade. Para Deleuze é isso que revelaria a dimensão inconsciente dos problemas colocados , o horizonte transcendental aberto e problemático.

Enviar para a “dimensão inconsciente” seria fundamentar precisamente em algo que por definição é incaracterizável, indeterminado. Como sarcasticamente pergunta Umberto Eco, seria enviar para “…um manancial indeterminado que permite todas as configurações possíveis, até mesmo as que se contradizem entre si?” [nota 30] e que ele mesmo responde com ironia, ao dizer “quando para o pesquisador surge uma definição estrutural em cujos termos um fenômeno novo não pode ser incluído, se não conseguir ele renunciar à idéia de que a estrutura que individuara era a definitiva, só lhe resta renegar o fenômeno aberrante” [nota ] [nota pg 300]. Uma concepção do “estruturalismo que se erija em visão filosófica” levaria à “explosão da própria idéia de estrutura” [nota 31].

Aqui, a leitura de Deleuze sobre o estruturalismo parece fazer água, não sobreviver. E se a observação for mais atenta, é precisamente onde o estruturalismo vai buscar seu viés ontológico, o “grau zero”. Perde sua força por querer ser mais do que é. Por mais admirável que seja seu esforço retórico, a “casa vazia” só será o que é: o lugar do vazio, questão ontológica, não constituinte de uma idéia de estrutura que se sustente.

O sétimo critério diz do “sujeito estrutural”. O estruturalismo não é um pensamento que suprime o sujeito, como tantas vezes foi dito, mas é um pensamento que o reduz e o redistribui, que questiona a sua identidade, que o dissipa e o faz passar de lugar em lugar, sempre nômade, feito de individuações impessoais, ou de singularidades pré-individuais.

O estruturalismo é inseparável das obras que cria e mais que isso, é uma prática que está em relação com o que interpreta. Daqui, para Deleuze, o potencial criativo, inovador e polemico do estruturalismo.

Na questão sobre a gênese Deleuze cunha o termo “gênesis estática” para nomear o processo de geração sem dinamismo , que não vai de um termo atual a outro termo atual no tempo, mas, do virtual à sua atualização, isto é “da estrutura à sua encarnação”. A estrutura é virtual [ideal, potencial, simbólica] em si mesma mas se atualiza [se efetua, se encarna, se concretiza] em relações empíricas , espaço-temporais. Nesta passagem de sua pura virtualidade [em que é diferenciada – différentiée] para seu “ser” atual [processo em que a estrutura se diferencia – différenciée] é o momento propriamente produtivo, gerador, criador da estrutura [EP]. E assim se dissolve a contradição aparente entre a estrutura e seu aspecto genético, desde que se entenda por gênese a atualização do virtual, a encarnação das relações ideais, a efetuação empírica do incorporal.

O virtual não é o “possível”. O virtual não é irreal, não se opondo ao real mas se opõe ao atual. A estrutura é a realidade do virtual. O processo que corresponde ao virtual é o da atualização e não o da realização: o possível se realiza mas o virtual se atualiza. Atualizar-se é sinônimo de diferenciar [différencier] integrar, resolver. Ao atualizar-se se faz por diferenciação, por divergência.

A atualização é sempre uma criação de linhas divergentes que correspondem, sem semelhança, à multiplicidade virtual. Em relação ao fenômeno, a estrutura comporta acontecimentos ideais que se cruzam com os acontecimentos reais e que de certa forma [esses acontecimentos ideais] determinam o fenômeno [através da linguagem].

Na história do pensamento houve um momento [de 1945 a 1970, aproximadamente, na França] em que tudo parecia convergir para uma estrutura. O mundo era olhado como uma estrutura. Estrutura e estruturalismo. Estruturalismo ou estruturalismos. Não havia um programa único. O que havia em comum era a presença da idéia de estrutura.

Como nas reações pendulares, de critério que serviria para qualquer coisa, passou-se a desprezar-se qualquer modo de uso da noção de estrutura.

Um outro modo de estruturalismo

Humberto Eco na Introdução de seu “Estrutura Ausente” [nota 32] afirma que se fosse indagado se seu livro é “estruturalista” ou “antiestruturalista” aceitaria “de bom grado ambos os rótulos”. E é esta afirmação aparentemente contraditória que permite observar de que modo a FC pode ser – e não ser – estruturalista.

Ele seria ”antiestruturalista” para toda tentativa de se tomar “estrutura” como filosofia ou como ontologia, como um momento “intermediário” de uma cadeia que teria no fim uma estrutura mais elementar, oniexplicativa, garantidora, una. As que tomem estrutura como instrumento para se chegar a universais, seja ao “ser-do-ente”, aos “mecanismos universais da mente”, ao “espírito humano”, ao “inconsciente”, a uma “realidade última”. A um “pensamento único”, ao qual se reportaria o “pensamento diferente”, ou ainda a um ideal positivista de uma explicação total, de uma lógica objetiva de um pensamento universal.

E ele seria estruturalista quando a estrutura for vista como um método [nota 33], como instrumento hipotético que permite “experimentar os fenômenos para conduzí-los a correlações mais vastas” [nota 34] . Sempre ciente de que se trata de uma “operação de laboratório”, uma construção da inteligência investigativa. Sabedor de tratar-se de uma “ficção útil”, uma imobilização temporária de aspectos da experiência, “modo de falar homogêneo de fenômenos diferentes” [nota 35].

A clínica é o lugar do singular. Este é o principio ético basilar. Aqui trata-se, por observação apurada, dos modos de viver da pessoa. Modos que são só seus, numa espécie de organização pessoal absolutamente distinta de qualquer outra. Esse seu modo foi sendo traçado através de suas inter-relações com o(s) mundo(s), consigo, com o(s) outro(s) desde o nascimento até a atualidade.

O desafio do clínico é o de se aproximar dessa singularidade [nota 36]. A aproximação se faz através das linguagens [nota 37] , num complexo processo de constituição do outro para si [nota 38] . Ainda que o constituído seja fugidio e impermanente.

São enormes as dificuldades para isso. E não é por outra razão que a medicina e a psicologia [nota 39] partem de um rol de patologias, tipologias ou critérios nosológicos, em busca de formas de aproximação ou caracterização desta pessoa, deste “paciente”. A partir da detecção, também através das linguagens, de comportamentos vinculados a esses padrões classificatórios (os sintomas) caracterizam o “caso”. A pessoa passa a ser vista como uma combinação que precisa ser encaixada em algum padrão ou combinação de padrões. O modo de conhecimento se dará por analogia a outros casos, assemelhados, agrupados em protocolos, reduzidos no limite a prototipos.

Essa dificuldade, entretanto, pode ser minorada e, a aproximação com a singularidade desta pessoa pode ser facilitada justamente pela utilização de uma estrutura, de um método estruturalista. E que tenha a natureza de um instrumento operatório, de um recurso provisório, hipotético.

O que se obtém é uma espécie de retrato dinâmico dos muitos modos em que a pessoa se constitui. Trata-se de um saber por homologia em que se reúne uma multiplicidade de fenômenos com características comuns. Uma espécie bem precisa de operação, que, ao simplificar, não empobrece obrigatoriamente as realidades, os fenômenos narrados e captados. Processo fadado à incompletude, continuamente carente de atualizações.

A EP é um modelo, um “artifício de montagem” [nota 40] que permite ao clinico nomear de modo homogêneo coisas diferentes. O partilhante narra sua história, atualiza suas vivencias, através de suas linguagens próprias. O filósofo clínico separa-as a partir das categorias [nota 41] (a “coleta categorial”), aprimora essa observação (a “divisão”) e busca especificar o que não lhe parece claro (o “enraizamento”). Com esse material atualiza, “monta”, constrói, “preenche”,”encarna” a EP dessa pessoa. Das múltiplas vivências narradas, de tudo o que ouviu, transporta, transfere para formas que são aparentadas, que são formadas a partir de um pensamento aproximado, parecido, semelhante, homólogo. Esse transporte é de experiências que já vêm articuladas, já são captadas em relações pré-estabelecidas que se conformam em relações tópicas, com pesos ou importâncias específicas.

A idéia de estrutura que informa a EP é a de “um modelo como sistema de diferenças..[que se caracteriza pela] transponibilidade de fenômeno para fenômeno e de ordens de fenômenos para ordens de fenômenos diferentes” [nota 42] .O uso da estrutura é um recurso de simplificação para a multiplicidade dos fenômenos de modo a preservar as suas diferenças, os seus traços fundamentais. Um modo de lidar com o “continuum” da vida, da seqüência infinita de vivencias, fluxo interminável – muitas vezes quase sobrepostas – captáveis parcialmente através dos inumeráveis modos das linguagens possíveis.

Por sua natureza de virtualidade – como diz Deleuze – a estrutura comporta a multiplicidade que não se deixa levar a nenhuma identidade, seja quanto ao sujeito-objeto da EP – o partilhante, seja ao sujeito construtor da EP – o terapeuta. O outro do terapeuta, quando visto através da estrutura, de certa forma pré existe aos termos que atualizam essa estrutura. Como virtual a estrutura será atualizada, efetuada por um sujeito real, variável. Deleuze também chama a atenção para o “outro-a-priori”, mas aí já se estará próximo a ontologizar a estrutura algo q está fora da intenção deste artigo e certamente fora da possibilidade de se realizar.

O estruturalismo da filosofia clínica não é ontológico, é metodológico, caminho em direção a. E, para existir e ser legítimo, não precisa da ontologia. Ontologia e clínica são campos com poucas proximidades. Não tem sentido, para a clínica, a discussão de uma “estrutura em geral” ou de uma estrutura a priori. Em clínica a idéia de estrutura não se sustenta como “princípio hipostatizado” [nota 43] ,mas só como “instrumento”, como diz Umberto Eco [nota 44].

Na clínica o uso da EP produz um saber que não busca por si solução, mas sim aprendizados. Ela é só uma instancia que permite problematizar de modo organizado, sem propor ou representar algo que tenha a característica de um reconhecimento definitivo. Não parte de um saber já sabido, mas de indagações que possibilitem novos modos de ver as vivências e experiências humanas, novos modos de aprendizagens. Modos de ver a vida no vivido. O uso da EP permite a observação a partir da produção de diferenças e não de oposições. Ela propõe sentidos temporários aos fenômenos. Que, afinal, também o são.

Os sentidos não serão principio nem origem, serão resultado que não têm intenção de permanência. Não se descobre, não se restaura, não se refaz sentidos. Os sentidos são sempre novos. O desafio será produzi-los mediante outras formas. Sem ir às alturas (metafísicas) ou às profundezas (ontológicas). Nas fronteiras. Sem referencia a qualquer totalidade original.

A filosofia clínica não é e não faz propriamente filosofia. Ela é um método ou um caminho clínico, baseado na tradição da filosofia ( e não da medicina e, por filiação histórica das áreas “psi”). Não faz metafísica, ontologia, fenomenologia ou hermenêutica. Não é uma clínica provinda de protocolos estatísticos, “indistinta”. Não sendo isoladamente clínica a-crítica ou filosofia, institui-se como filosofia clínica, como um modo próprio em que a separação de seus termos (filosofia e clínica) desfaz a possibilidade de seu entendimento. Mas não será por isso que se absterá de lidar com teorias, com linguagens diferentes. E nessa lida, por diferenças, se dá a perceber, faz afirmações.

E, certamente, tem modos pressupostos de ver o mundo, mas não se institui como modo de ver o mundo. E é no estrito respeito ético para com a singularidade das demandas de seu partilhante que ela, como método clínico, se exerce. E em seu exercício é este modo muito próprio de incorporar os saberes provindos dos estruturalismos na EP que lhe dá possibilidade.

A estrutura, como método [caminho para], é parte constitutiva da filosofia clínica – sem ela não há FC. E é este o seu modo próprio de ser “estruturalista”.

NOTAS

nota 1 – Packter, Caderno A, pg 16

nota 2 – Lepargneur, pg 4]

nota 3 – Pouillon

nota 4 – Pouillon, pg 7

nota 5 – Eco, pg 252

nota 6 – Entre outras vantagens evita-se o escorregadio caminho das discussões sobre identidade, tão presentes e insatisfatórias nas discussões das teorias psicológicas

nota 7 – este é o ponto de observação nomeado como “Matemática Simbólica”

nota 8 – o gene do que é auto

nota 9 – como no tópico “Matemática Simbólica”

nota 10 – como no tópico “Autogenia”

nota 11 – “A Atividade Estruturalista”

nota 12 – escreve em 1962

nota 13 – Barthes, pg 19

nota 14 – Dosse

nota 15 – citação Dosse pg

nota 16 – citação Dosse pg

nota 17 – Dosse pg

nota 18 – Dosse pg

nota 19 – Deleuze, pg

nota 20 – Deleuze, pg 222

nota 21 – o momento de “preenchimento”, em q se realiza a “homologização” não é ainda estrutura, só se constituindo como tal, quando já estabelecida

nota 22 – Deleuze, pg 225

nota 23 – Deleuze, pg 229

nota 24 – Deleuze, pg228

nota 25 – Deleuze, pg 229

nota 26 – Deleuze,pg 231

nota 27 – Deleuze,pg232

nota 28 – Deleuze, pg 233

nota 29 – Deleuze, pg236

nota 30 – Deleuze, pg 300

nota 31 – Deleuze, pg 301

nota 32 – Eco, pg XXI

nota 33 – “…esta palavra “método” é formada do grego ‘meta” – que significa “além”, “para lá” – e de “odos” – “o caminho”. Método é o caminho que leva a algo, o caminho pelo qual estudamos um assunto”, conf Heidegger, pg 128

nota 34 – Eco, pg 362

nota 35 – Eco, pg 294

nota 36 – ele também uma singularidade

nota 37 – tomar-se-á aqui, “linguagem” como qualquer forma de comunicação, de modos de ação, postos “em comum” entre um outro

nota 38 – aqui se tomará só a constituição do partilhante para o

terapeuta, ou “no” terapeuta

nota 39 – tomadas aqui de modo genérico, cometendo a injustiça de estar colocando num mesmo balaio coisas muito diferentes

nota 40 – Badiou, pg

nota 41 – as categorias, na Filosofia Clínica, são: assunto, relação, circunstancia, tempo e lugar

nota 42 – Eco, pg 258

nota 43 “abstração falsamente considerada como real”

nota 44 – Eco, pg 300

BIBLIOGRAFIA

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Alguns lances sobre a linguagem na prática da filosofia clínica

Abro a porta, ele me estende a mão, me olha, diz “tudo bem?”, entra, dirige-se à mesma das 3 poltronas e senta. Me pergunta de novo: “tudo bem?” e começa a falar. E a fala flui. São sons que saem daquela boca, sob a forma de palavras, de frases. E há tons diferentes e há volumes e ritmos diferentes.
Seus olhos parecem me ver, parecem também expressar algo. Ele tem uma postura física ereta, com o corpo quase imóvel. Faz pequenos gestos com as mãos e altera o tom da voz, como a dar ênfase, aqui e ali, ao que diz. Predominam as palavras, as frases. Ouço.
Como eu posso compreender os sentidos que ele procura me comunicar? Ao falar ele parece querer tornar comum – a mim e a ele – o que só era vivido por ele.
Usa palavras, forma frases com elas. Me observa, talvez procurando saber pelas minhas menores reações, se as palavras que escolheu indicam em mim aquilo que queria expressar.
Aquilo? O vivido, o sentido. O sentido do vivido.
As palavras transportam o sentido? Mas como? Como uma determinada palavra se impregna de um sentido? Mas como uma coisa material – um ruído, um som, um gesto, um desenho – pode carregar o afeto de algo vivido? E ser apropriado por outro (por mim)?
As palavras e as frases que ele usa parecem fazer parte de um repertório comum a ele e a mim.
As palavras – cada uma delas – estão numa espécie de estoque pessoal de palavras (um modo de memória) , que está como que vinculado aos estoques de muitas outras pessoas, formando uma comunidade interligada de estoques, uma comunidade lingüística. Ele, eu e os outros, ao longo de nossas histórias pessoais nos apropriamos (há quem chame a isto de aprendizado…) paulatinamente delas (palavras), num processo intrigante.
Os momentos iniciais (em geral na infância, entre o 1º. e o 2º. ano de vida) dessa apropriação de uma forma determinada (de um som na fala, de sinais corpóreos e outros) são vividos em relação com alguém que “indica” um sentido. Esse “alguém” vincula uma forma (sonora, gestos, expressões, etc) a algo que é percebido pelos sentidos do “outro”. E repete e pede que repita.
A repetição de uma forma similar, como a palavra, por exemplo, em momento posterior, permite a re-apresentação de algo percebido pelos sentidos, naqueles momentos originários. A palavra, agora, tem sentido, se vincula a algo, a algum afeto vivido. E o sentido, como na origem, busca se fazer comum, comunicar.
As palavras que este partilhante utiliza, em sua maioria, são sons que re-conheço, isto é, que fazem parte de meu estoque de palavras (como parte da comunidade lingüística, da qual ele também faz parte).
Na nossa con-vivência, aos sentidos que as palavras tinham em mim foram sendo agregados outros sentidos que se produziram – e se produzem – no nosso contato pessoal. Em mim e nele. Nele ao seu modo em mim ao meu. O sentido é algo vivo, plástico.
A mim, como filósofo clínico, cabe apreender os sentidos veiculados através dessa linguagem que vai sendo realizada nesta relação. No início, não há in-timidade, não há o contato com o que vem da timidez (do latim “timidu”, do que está ligado às aflições no enfrentamento da vida, aos temores existenciais).
Forma-se uma linguagem própria, nossa. Quando usa a palavra “amor”, por exemplo, fala do modo como ele vive ou viveu as suas relações, físicas, sensoriais, sexuais. E só. Para as relações que envolvem afeto usa outras palavras. Ele e eu, com ele.
Quando ele fala em “dia chuvoso”, sei a emoção que ele procura embutir nessa expressão exatamente. Tive a oportunidade de ouvi-lo expressar amplamente, por diversas vezes, importantes emoções similares vividas em “dias de chuva”.
Ou ainda, com outro partilhante, como o súbito enrijecimento físico, com o corpo ereto, tem o sentido de “fim da consulta”. Mas “corpo ereto, fim da consulta?”. Para nós é óbvio, o sentido é claro, límpido, afinal quantas vezes isso aconteceu entre nós? Inúmeras. E corpo ereto subitamente, só aconteceu para dizer isso: “tá na hora”.
As palavras podem ser vistas como fenômenos do mundo para indicar a presença sensível dos objetos que designam. Elas teriam um sentido isolado, sem necessitar de outras palavras para as explicar. Seriam palavras-objeto, cada uma podendo ser vista como uma afirmação. Mas esse sentido da palavra não foi dado, por assim dizer, por um poder independente de nós. E por isso de nada adiantaria uma espécie investigação científica sobre o significada da palavra. Uma palavra tem o sentido que lhe foi dado por alguém.
Esta pessoa à minha frente, tem seu modo singular de produzir sentido às palavras que usa. Esse modo foi e é composto por suas relações sociais, por suas formas de compreensão dos mundos que a cercam e pelos usos lingüísticos a que foi exposta e que, de diversas maneiras, incorporou como seus. Como eu, pelas minhas.
Ela escolhe, por assim dizer, palavras (e gestos, expressões, tons de voz) que podem veicular os sentidos que pretende expressar.
Ao fazer essa escolha ela coloca na palavra – que em si é inerte – sentido, significado, algo vivo. É, portanto, pelo uso que a palavra adquire vida, comunica, possibilita que algo se torne comum a quem fala e a quem ouve. As palavras, restritas à sua materialidade, são apenas sons, desenhos gráficos – rigorosamente, nem palavras seriam.
As palavras, as frases, se entrelaçam no discurso, na comunicação, no falar um com o outro, formando o sentido. O sentido das palavras se faz pelo seu uso. Para cada um. Cada qual com seu estoque particular em que uma palavra pode guardar muitos sentidos.
O partilhante na clínica através de suas expressões faz (ou pode fazer) referências que me possibilitam, como observador, vislumbrar o que está em seu espírito. Eu posso, como clínico, estar num lugar em que o que importa na linguagem não é mais a sua capacidade de nomear coisas, mas, a de me possibilitar por palavras, frases, gestos, tons de voz, entrar em contato com aquilo que ele me traz de si.
A partir de seu uso eu posso descobrir o significado, por exemplo, de uma vassoura. O significado de vassoura não está vinculado vivencialmente com o sentido do dicionário, lexicográfico. A vassoura significa na medida em que tem algo a ver com minha vida, com meus interesses, como a uso (objeto ou pensamento).
Um partilhante, pintor, artista plástico, relata a importância da vassoura, em certo período, no seu processo de pintura. Durante os anos em que viveu em Berlim, pode trabalhar num enorme atelier, que lhe possibilitou produzir obras de grandes dimensões. Seu instrumento primordial para pintar eram as vassouras. Relata com vívida emoção as múltiplas e surpreendentes possibilidades plásticas que elas lhe proporcionaram. Com o uso constante as vassouras passaram a ter, o mesmo sentido, a mesma familiaridade que outros pintores têm com os pincéis, quando trabalham em menores dimensões. As vassouras passaram a ter um sentido muito distinto do que até então tinham tido para ele, e nem por isso deixaram de ser chamadas de vassouras. Quando durante as consultas pensava ou dizia “vassoura” era a este seu familiar instrumento de expressão plástica que a palavra se ligava.
Outro, desenhista e ilustrador, tem como um de seus personagens principais uma bruxa. Foram muitas as consultas em que o tema principal foi a sua vassoura voadora. Ela passou a ser o veículo pelo qual ele se permitia imaginariamente sair de sua angustiante situação atual para uma outra, a princípio mágica, em que ele encontrava grande satisfação. Nesse período, algumas vezes logo no início da consulta, me pedia permissão para “pegar a vassoura” e se transportar para aquele mundo. Nesse processo, a seu modo, podia, trazendo muitos elementos vividos nesse “outro mundo”, refazer os sentidos de suas difíceis vivências presentes no mundo cotidiano. Desde então, para ele – e para mim, com ele – “pegar a vassoura” passou a ter um sentido bastante preciso.
Ainda outra, recém casada, me conta:” finalmente! Tirei a vassoura de trás da porta!”, referindo-se, com isso, aos relatos nas consultas anteriores, das situações aflitivas que a hospedagem de sua sogra, lá do interior de Mato Grosso, vinha lhe trazendo. E que a vassoura, lá, “com toda certeza, ajudou a espantar”. Naqueles dias, quando ela pegava a vassoura para colocar atrás da porta, não era o instrumento de varrer sujeira que ela tinha em mãos: mas o de varrer sogra pra fora…
É essa relação com o seu uso que provê, em última instância, o significado para as coisas. A possibilidade de dar sentido às coisas pelas palavras, estabelecer significados lingüísticos, depende de uma capacidade, do sujeito que fala, de transitar pela língua, uma capacidade de usar/produzir signos que sejam compreensíveis ao(s) outro(s).
No uso da nossa língua do dia a dia seguimos as regras da gramática, que mesmo não determinando o nosso comportamento, nos dá os critérios para o seu uso. É pelo hábito, por processos de ação e reação no interior de uma comunidade lingüística que a aprendizagem de uma regra se realiza. Esse aprendizado das regras se dá no interior de quadros e situações muito diferentes.
O que é azul para uma pessoa? O que ela vê realmente quando diz ver uma coisa azul? Eu posso ver num mural uma cartolina colorida em que está escrito “a cor desta cartolina é azul” e ao olhar para uma mancha fazer a correspondência de que ela tem a mesma cor, portanto, posso dizer que esta mancha pode ser chamada de azul. Mas azul não é deduzida da impressão colorida que recebo de minha percepção. Ela obedece, portanto, uma regra, que em grande parte das vezes nem sabemos qual é.
As regras são, ao mesmo tempo, necessárias e convencionais. E, por natureza, públicas. É impossível crer e seguir uma regra a título privado, porque para ser estabelecida e ter um valor, tem que poder ser avaliada e ser adotada pelos outros. Uma linguagem privada, isto é, uma linguagem que necessariamente não é falada e compreendida a não ser por uma pessoa, é um non-sense – porque linguagem para ser linguagem pressupõe critérios de aplicação comuns.
Todas estas observações, importantíssimas na prática da filosofia clínica (tomadas de Ludwig Wittgenstein), dão um potente argumento contra o solipsismo – em que, a única realidade do mundo é a de um “eu” subjetivo.
Com esta concepção todo um modo de conhecer se estabelece. Não é mais através de uma interioridade escondida ou de um mundo íntimo de idéias e de sensações. Desfaz-se a certeza cartesiana, onde o sujeito está perfeitamente consciente de suas sensações e de seus pensamentos (penso logo existo). No lugar do “eu” abstrato, metafísico, surge uma pessoa de carne e osso, que já faz parte de uma comunidade, que em sua natureza é linguística.
Em clínica utilizamos – ele e eu – as regras gramaticais da língua que praticamos no nosso dia a dia e, ao mesmo tempo, estabelecemos outras, que são só nossas. Nascidas nesta nossa relação. Uma língua nossa, uma linguagem. Para um “público” restrito – ele e eu – mas não “privada”, de um “eu”, solipsista. Uma linguagem que é familiar, talvez, às vezes, só a ele e a mim.
Na situação clínica, este partilhante à minha frente vive dimensões de vida que são anteriores a qualquer compreensão que ele ou eu possamos ter, ali, na consulta. Wittgenstein para ilustrar esse fenômeno usa um desenho que dependendo de onde você olha (da “visada” do observador), ora pode ser um pato, ora uma lebre. Se, de um mesmo objeto – o desenho – pode-se ver 2 coisas diferentes, então a experiência de ver o desenho/objrto não se constrói só na nossa percepção, como quer boa parte de nossa tradição.
Não há um ver, simplesmente. Esta experiência coloca o “ver” entre a “visão” e o pensamento. Um ver “como”, que, portanto, já de antemão é conceitual. Neste sentido, uma questão filosófica. O que se vê não é “qualquer coisa”. É uma “coisa” (o pato) ou outra “coisa“ (a lebre). “Ver”, portanto, muda de sentido, é um outro tipo de experiência, que advertindo um aspecto, leva o observador a modificar a “visão” de um objeto, que, ele mesmo – objeto, não se modifica, é o mesmo.
Assim, ali de onde uma frase surge já há um mundo em movimento, que de algum modo já compreende usos possíveis da linguagem.O partilhante tem uma espécie de estoque de formas de linguagem, memórias de usos convividos (de uma palavra, p.ex), impregnadas de sentido(s). Esta pré-compreensão, anterior à construção da frase, nasce do que se pode nomear como o “próprio a si”, ou o “próprio de si”, singular, peculiar a ele. É desse lugar – enigmático à sabedoria humana, ainda hoje -que brota o sentido, se estabelece o significado que poderá ser com-partilhado.
Ao significar, escolher um signo para transportar o sentido, talvez já se produza algum nível de ruptura do pleno sentido original. Plenitude (desse “sentido original”) que deixa vagando no mar de uma subjetividade desconhecida, pedaços de si, como um náufrago, e que coloca os outros pedaços no barco da linguagem, seja como um passageiro, seja como um clandestino. Algo talvez escape: o sentido não cabe no significado. O sentido é individual; o significado é compartilhado. Mas os resíduos, eles mesmos, não constituem uma “subjetividade” de outra natureza. Não há porque supor que eles não se apresentaram, não se deixaram surgir, por efeito de uma força de caráter inibidor (como pressupõe boa parte das psicanálises). O caráter do que vem anunciado é fragmentado, parcial. Ele indica a aquele que ouve. Os signos, muitas vezes, trazem mais do que aparentam trazer.
Há que saber ouvir, deixar que os signos de seu estoque pessoal se impregnem desses sentidos, disso que vem pelas palavras, como passageiros ou como clandestinos. E neste ato, na escuta, seja de algum modo qualificada (a palavra) como vindo de um “estoque particular”, produzido e disponível nesta e para esta relação.
E talvez este seja o aspecto ético mais importante na clínica existencial no modo proposto pela filosofia clínica. Procurar ouvir o que vem de lá em seu(s) modo(s) próprio(s).
Para Wittgenstein a ética é aquilo que não podemos falar. Está no domínio do indizível, do insensato, inteiramente distinto do domínio da lógica e ciência – onde as proposições, através das palavras, já têm o seu sentido. A ética se refere aos valores originários, da existência e, mais amplamente, aos problemas da vida. O clínico, às vezes, se vê lançado contra as fronteiras da linguagem convivida, e nesse salto a ética é o que lhe resta. Apreender o que vem do outro a partir de si.
A arte, às vezes pretende ser uma tentativa de dizer o indizível. Em determinadas experiências estéticas a vivência pessoal de um espectador pode encontrar um ponto de acordo com o mundo que ele apreende em uma obra, como uma totalidade, tal como se apreende a expressão de um rosto ou a de um gesto. Estas são coisas que não se explicam, mas que se vive, se percebe. E que muitas vezes são ao mesmo tempo “comuns” ou públicas.
Linguagem e clínica. Agora, sim, já está um pouco mais qualificado o que é para mim, um filosofo clínico essa tal “disposição para a escuta”, essa condição para caminhar junto com esta pessoa à minha frente. Caminho que em grego é “odos” e para onde ele leva é “meta”. A filosofia clínica possibilita criar um método singular, para esta pessoa. Isso: singular, só dela. A partir de sua história, suas circunstâncias, seus modos de se relacionar, de viver, com sua estrutura própria de pensamento, seus modos de agir.
Esse pode ser o lugar da clínica. Aqui estamos ela e eu. Esse modo é irredutível a um modelo, a um tipo, ou mesmo a uma linguagem última. Dar conta dele, ou aproximar-se dele, é o meu desafio, a tarefa clínica.

A partir e em direção ao singular

Convido o leitor a sentar na poltrona do clínico.

Frente a si estará sentada uma pessoa que vem partilhar uma parte de sua existência. Como apreender o que lhe é próprio, para que a clínica se faça para ela?  Como partir de sua singularidade? Isto é possível? A minha hipótese é que a Filosofia Clínica é um método que permite partir do singular e ir em direção ao singular.
 
Nos Seminários de Zolikon (nota 1) Heidegger nota que a  palavra método é composta pelas palavras gregas “meta” que significa “além, para lá” e, a palavra  “odos” que tem o sentido de “caminho”. Em suas palavras: “método é o caminho que leva a algo…não se pode estabelecer de antemão, de que maneira o assunto determina a espécie de caminho que a ele conduz… que permite alcançá-lo”[nota 2].
 
O “assunto” traz um aspecto ético importantíssimo. Na FC a pessoa que vem à clínica é que  deve dizer  o que pretende. O assunto  imediato, trazido muitas vezes como uma queixa inicial,  funcionará temporariamente  como uma bússola,  orientando os primeiros movimentos do percurso. Aos poucos poderá – ou não – ser substituído por outros assuntos, mais constantes, assuntos que pode se tornar – ou não – único, e que se nomeará como “último”. Pode se caracterizar como um telos, presente como uma meta, ou uma ideia orientadora, explícita, implícita, clara ou obscura, próxima ou à distância. E assim poderá influenciar os acontecimentos, a cada vez,  num modo com  intensidade variada ,  que pode aproximar do que se dá aqui e agora,  o que é projetado na distancia do espaço ou do tempo. A cura seria o pretendido em sua variância (pretender: pré/antes; tender/inclinar) pelo partilhante.  A clínica está a serviço das aptidões dessa pessoa,  inclinando-se aos seus “para-que”. “O caráter do ser-apto é o de ter possibilidades e fornecer possibilidades”(nota 3).
 
Cada pessoa tem o seu mundo, produz o seu mundo. Assumo aqui a hipótese de Heidegger:  “o homem é formador de mundo” [nota 4]. O que lhe é próprio, a sua singularidade é seu modo de engendrar e formar o seu mundo.  Mundo seu, que é composto por um si: si-mesmo ou si-próprio.  Mas si-mesmo não é si-proprio: “mesmo” se emprega “no contexto de uma comparação e tem como contrários: outro, distinto, diverso…” [nota: 5] E  “próprio” é o seu mundo, as suas propriedades,  o que lhe é singular.
 
Um clínico que trata das questões existenciais, também compartilha a mesma natureza humana de quem se dispõe a cuidar. Também é formador de mundo, também tem a sua singularidade (si-próprio), também constitui a si e aos outros. No seu trabalho assimila os horizontes do outro aos seus horizontes, porém, sem fusão. A clínica é um modo muito característico de viver-com, de inclinar-se a esse outro, mantendo contato, mas, sem se confundir com ele. “Acredito que o contato…e tudo aquilo que pertence ao vínculo [interseção] participa de um saber inerente à espécie humana….é aquilo que une o próprio (o singular) do analista ao próprio do analisando” [nota  6]. Une sem tornar uno: aproxima. Como clínico eu preciso constituir uma alteridade e manter contato sem me con-fundir.
 
Como me aproximar desse mundo, desse outro, de seus caracteres, seu mix, seu tempero, seu temperamento? Como chegar ao que lhe é próprio, ao que lhe é singular?
 
Singular é algo que é aquilo que é de um determinado modo: a essência deste algo é o que lhe é próprio,aquilo que o define. “Jamais podemos tomar em consideração diretamente o fenômeno do mundo” [nota 7]. O mundo, o outro,  não se dão imediatamente como fenômeno.
 
A  FC  traz essa possibilidade de aproximação ao outro, ao mundo do outro, em seu método,  através da Estrutura de Pensamento, a EP [nota 8]. Ela oferece ao clínico esse recurso precioso para apreender o mundo desse outro, para se aproximar do que lhe é específico sem  misturar-se a ele. A EP é uma estrutura plástica, próxima ao que seria um modelo formal, que é pré – um prejuízo – mas sempre em (re) constituição, em re-aproximação. Cria-se com ela a possibilidade de uma certa permanência à natureza  fugidia do que é próprio a esse outro, a essa pessoa partilhante.
 
Isto é muito importante porque o homem não é apreensível  como um objeto completo. A plenitude de determinações é própria da ciência, porém, inadequada para a filosofia e com maior razão, para a clínica. O mundo humano não é lugar de completudes, de certezas. E não é por outra razão que, a despeito de suas pretensões de verdades definitivas,  são tão precários os resultados dos métodos clínicos científicos no trato com as questões existenciais.
 
Do ponto de vista do clinico, a EP é esse trabalho realizado de assimilação dos modos singulares da pessoa, em constante reelaboração,  sempre provisória,  por sua natureza humana transitória.  A EP é uma representação do outro para o clínico, tornando possível criar e manter uma alteridade, que permite constituir e observar o que  é singular nessa pessoa e ensaiar modos de intervenção, através da linguagem. E assim, exercer uma clínica a partir do singular. O “com” que se dá na clínica, é um elemento facilitador de exposição e de abertura de si, sem ser um gerador de fusão e de indistinção. Em seu modo de intervenção o clínico exerce uma ação com intenção em direção a alterações nos modos de viver da pessoa. Ele dá uma “dica”,  oriunda de um cuidadoso planejamento. E não é mais do que isso, porque sabe as limitações de seu saber, que a assimilação do que é singular é resultado de um fazer permanente e inacabado, partindo do frágil encontro com o outro.
 
Do ponto de vista do partilhante, na clínica,  cria-se um espaço existencial de exercício diferente para seu pensamento, para suas vivências íntimas. Lá, como formador de seu mundo, pode encontrar  para si modos de viver melhor. A clínica é para a pessoa um lugar inusual de acolhimento de seus próprios horizontes,  seus sofrimentos,  suas expectativas,  suas alegrias, suas vergonhas, seu tédio, sua angustia,  seus abismos, suas esperanças, suas frustrações, seus medos, suas fobias, seus sonhos, suas memórias, de seus assuntos, de seu mundo. E este caminho, só seu,  só se perfaz no que se poderia chamar de um pensamento clínico singular para si, singular a seu caso.
 
O pensamento clínico se refaz nesta relação singular que permanentemente se reposiciona, se reinventa;  não se totaliza num plural, desfazendo qualquer  unidade teórica ou conceitual. É preciso pensá-lo a partir da energia radical de sua singularidade, afastando o pensar técnico,  suspender mesmo as  teorizações universalizantes.  Aquilo que é criado  a partir desta relação singular dá  sentido  ao que é uma construção compartilhada. Deste compartilhamento parte uma dica/uma indicação que serve só a esta existência, em seu incessante formar mundo. Jung, um terapeuta experimentadíssimo não disse à toa que “cada relação clínica tem a sua própria teoria” [nota 9]. O que é realizado a partir de sua experiência, nesta relação clínica é criação de mundo para si, partilhante e, experiência para o clínico. Experiência que ele faz a partir de um movimento para fora – “ex” – em que contorna o mundo que se lhe apresenta – “peri” – e se volta ao que lhe é próprio – “encia”.
 
Ao clínico o que lhe incumbe é não falar para si e para o outro em nome da realidade ou do “em geral”. Não há uma realidade que se poderia colocar à disposição do partilhante, como uma espécie de referente ao qual as coisas poderiam estar ligadas, ou  a ele submetidas.Criar mundo, observar mundo está longe da noção de realidade. O real é uma ficção muito precária, porque quem a usa muitas vezes nem percebe que ela – realidade – é ficção. Os mandatários da realidade, entretanto, são poderosos: usam com inteligência e intransigência um modo de alteridade rígido, pelo qual esses outros criados a partir de si, devem obedecer aos seus mandatos em nome do geral, do comum, do que não admite os modos singulares de viver diferentes. No dia a dia do atendimento, o clinico precisa ser rígido na sua disposição metodológica de não recorrer ao “real”, ou ao geral, ou a qualquer  totalizador que se oponha ou dificulte as invenções de mundo, de singularidades.  Se o homem é formador de mundo, o singular é vigência e está sempre por ser feito, por ser retraçado. Pode surgir desta postura clínica  atenta ao singular,uma profunda transformação, vinda  desse convívio confiado. O singular, entretanto,  é descontínuo, precisa ser reinventado a cada vez,  vez por vez.
 
Formar mundo é labor próprio, criação e vivência em terreno singular. Clinicar é se curvar a esses mundos sempre em formação,  à sua  alteridade, ao que lhe é totalmente outro. E por isto não pode haver intencionalidade na escuta clínica. E por isso a importância aos modos dessa colheita pela escuta, em que a  atenção para o que é dito precisa estar flutuante, não dirigida. Admitir o q se oculta, as vigências que não se compreendem de imediato: o que é importante volta por meio dos infinitos recursos das linguagens. Um bom começo para o clínico é ir até o fim sem  admitir os “em-si”, em si mesmo,  podendo sustentar uma escuta ao incondicionado.
 
A clinica filosófica, respeitado o método,  é invenção, é um gesto. Não obedece a nada fora de sua própria circunscrição. Se dá neste viver-com, nesta vigência,  re-inventa  a cada passo.  Um gesto passivo: acolhimento ao outro em sua singularidade.  Ético em sua eticidade.
 
por Cláudio Fernandes


 
Notas
[1] – Heidegger, Martim; Seminários de Zolikon, ed Medard Boss; Ed Vozes, 2001, Petropolis, RJ, Brasil. Os seminários realizados por Heidegger, na cidade suíça de Zolikon, na casa do psiquiatra e psicanalista Medard Boss de 1959 até 1970, para um público, entre 50 a 70 participantes,  predominantemente de psiquiatras.
[2] – Heidegger, M; Sem Zolikon, pg 128
[3] –  Heidegger, M; Os Conceitos Fundamentais da Metafísica ; Editora Forense Universitária, 2006, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; pg 269
[4] – Heidegger, M; Conceitos Fundamentais, pg 12
[5] – Ricoeur, Paul; Si Mismo Como Outro;  Siglo XXI Editores, 2011, Cidad Del Mexico, Mexico; pg XIII; Ricoeur faz uma interessate distinção entre “idem”, como igual, idêntico, o mesmo, e “ipse”, que não implica nenhuma afirmação sobre um pretendido núcleo não cambiante da personalidade, como modalidades próprias de identidade
[6] – Zigoutis, Radmila; Vínculo Inédito; Ed Escuta,   , São Paulo, SP, Brasil; pg 37 e 38
[7] – Heidegger, M; Conceitos Fundamentais , pg 341
[8] – deixo de especificar o que é a EP, por me dirigir, predominantemente a um público de filósofos clínicos, que tem o domínio dessa noção central do método da FC
[9] – Junj, Carl Gustav; Memórias, Sonhos, Reflexões; Ed……Brasil; pg

O que é isso que se expressa?

Essa  pergunta  surgiu a partir do tema “expressividade” do 5º. Colóquio Nacional de Filosofia Clínica, realizado em Porto Alegre, maio de 2016. Apesar de  um pouco deslocado  do que certamente seria mais apropriado a  ser discutido – os modos de expressividade – pensei que  poderia ser proveitoso conversar um pouco  sobre “isso” que se expressa.

A noção de expressividade no ambiente da FC, é um tópico da EP- Estrutura de Pensamento –  e também um tópico do Quadro de Submodos, vale dizer, algo que faz parte da constituição e do modo de agir de uma pessoa.
Expressividade de um lado tem um aspecto mental, de outro se liga a  um âmbito material, corpóreo.
Na palavra expressividade o prefixo  “ex” indica um movimento para fora – neste caso do corpo material –  e, “pressividade”, que seria a atividade de pressionar, de fazer pressão. Pressionar, portanto, para fora. E pressionar é por definição “transmitir estímulos”. Talvez mais propriamente, empurrar estímulos; pressão é a força que faz com que os estímulos sejam movidos, transportados, transferidos de um lugar a outro. Os estímulos têm sua origem no próprio corpo material, no organismo ou fora dele. No mundo material são os impulsos nervosos, fenômenos ao mesmo tempo químicos e elétricos. Em outros jogos de linguagem – na medicina chinesa, por exemplo – os impulsos nervosos são nomeados como energia.
E será esse campo entre o mental e o corpóreo que me possibilitará trazer algumas ideias que venho desenvolvendo e que talvez tenham algum interesse para quem lida com o pensamento ou com a prática clínica.
 
Começo pela pergunta: O que é “isso”, a palavra “isso”?
Um pronome. “Pro” – o que vai em direção a; “nome”, linguagem.
 
“Isso” é uma palavra que indica – que dá a dica – sem dizer o que é.  Um pronome demonstrativo, que neste caso, diz, sem mostrar . Quando eu falo “isso”,  já estou na linguagem. Digo mas não mostro,  não estou mostrando um objeto sem nome , mas dando um lugar a ele no que eu falo. Para dar uma dica sobre “isso” eu  preciso antes falar a palavra  “isso” para, então,  poder começar a mostrar o que é que eu quero dizer com “isso”. É como se eu desse um grande privilégio à linguagem: ela passa a ser o lugar a partir do qual algo se mostra e passa a existir.
 
Com o uso do pronome “isso”, eu me refiro ao acontecimento da linguagem, sem entrar no mundo  dos significados.  Quem me lê ou me ouve não sabe o que é isso a que eu estou me referindo – a linguagem, de certo modo,  ainda não aconteceu, não se deu como acontecimento, significando. Será só no interior desse acontecimento que algo será significado e, ao mesmo tempo se dirá o que “isso” é.  Se entrará, então,  na dimensão do “ser”.  Nesse gesto, nesse ato de fala,  o signo passa a significar (passa a ser propriamente signo), aquilo que está indicado diz, passa a dizer. No interior desse acontecimento da linguagem, ao falar eu digo o que “isso” é.
 
Algo foi incorporado, apropriado, num acontecimento de linguagem como uma verdade íntima por mim, a partir de um contato com o mundo, mundo ao qual saindo de mim , acorri, percorri  e que deixei voltando a mim. Experiência realizada: “ex”, para fora; “peri”, o contornar o mundo; “encia”, a volta a si.
 
Verdade íntima apropriada,  que não se refere agora mais aos sentidos  nem ao intelecto, mas que se dá numa instância própria. Um saber próprio, que sabe sabendo, que toma a linguagem naquilo de onde a linguagem surge. A “surgência” da linguagem [nota 1]. A fonte da expressão. Isso.
Mas se “isso” quer dizer essa verdade íntima, o que é “isso” que  contém essa verdade íntima. O íntimo, no seu limite, só se pode dizer a si, numa espécie de flexão de si a si. “Eu” seria o lugar dessa verdade intima?  Mas, o que é  “eu”?
 
De novo um pronome. Desta vez um pronome pessoal.
 
“Eu” designa a pessoa que enuncia. Quando eu digo “eu” é ao mesmo tempo eu que digo “eu”. Eu sou sempre no mesmo tempo de “eu”. “Eu” é um fenômeno de linguagem, de vivência , de percepção instantânea. “Eu” é sempre presente para si. E para si,  um observador eterno; sou sempre eu que vejo, penso, percebo, sinto etc.  Um “centro de experiências”[nota 2], sempre em atividade. Mas “ eu”  não pode ser apreendido nem visto. “Eu” , assim, não pertenceria ao mundo, seria  “um limite do mundo”como observou Wittgenstein.
 
O “eu” não é uma coisa no mundo, não é uma substancia:  não se pode mostrar. Não é um ente zoo-psico-biológico. E ao mesmo tempo eu sempre existo. Não há “eu” sem eu.  “Eu” se funda, se re-inaugura na fala, em cada fala. Existe através da fala que a profere.  Algo fala. Algo que fala é alguém. Alguém fala, um eu.
 
Quem é esse alguém – eu – que fala?  Se eu existo, eu sou um ser vivo. Vivo  num corpo. Eu, como alguém num corpo, talvez seja a minha primeira característica. Como diz Ricoeur um corpo é um “critério de localização num único esquema espaço-temporal” [nota 3]. A partir de um corpo contingencia-se num lugar e num momento qualquer  alguém, um “eu”. Um “eu-corpo”.
 
Esse “eu-corpo”  trafega entre outros “eus-corpos”, trama percepções e sensações para si,  e  através dos impulsos, busca respostas fisiológicas tendo seu próprio organismo como universo. Esses fenômenos elétrico-quimicos preenchem e percorrem os nervos num fluxo energético contínuo. A cessação desse fluxo é o fim desse alguém, desse “eu-corpo”, desse organismo.  Cessa o organismo, cessa a possibilidade de ex-pressão do “eu”. O tempo de existência do “eu” corresponde ao do corpo.
 
Essa imbricação constitutiva nessa noção de  “eu-corpo” possibilita que o “eu”  se represente no reino das coisas, vale dizer, no mundo: é no corpo, no organismo  que o “eu” existe.  E é no transacionar através do organismo  com o mundo que, aquilo que representa o “eu”, se modifica, mais ainda, se constitui. Como “eu”, q não é um ente, não é uma coisa, e que é mental, se modifica no transacionar com o mundo, como organismo?
 
Difícil responder a essa questão mantendo o rigor de pensamento que é próprio da filosofia. Nunca é demais lembrar, que, neste âmbito, o critério é sempre a verdade, isto é , aquilo que é evidente por si.
 
A ciência encontrou alguns modos, talvez menos rigorosos, porém mais práticos. Seu critério principal é o da verificação. Com isso criou uma série de modos de medição, que quando não são possíveis, são substituídos por outros modos de aproximação, como os cálculos probabilísticos. Com isso foi possível criar uma série de protocolos que foram e são úteis, inclusive nos cuidados dos corpos humanos. Mas a relação e a caracterização entre o corpo e a mente ou dito de outro modo, entre o organismo e o espírito, continua sendo um mistério.
 
Se é possível observar como a energia vital – os fenômenos eletro-químicos – circula pelo organismo, nada se sabe em como ela se transforma em ideia, em pensamento, em sentimento, em representação. Como uma energia se transforma numa representação de si, nesse alguém, esse “eu-corpo”.
 
Para  quem  lida no mundo da clínica existencial, que se  inclina para cuidar de pessoas com dificuldades e sofrimentos no viver, essa questão é fundamental. Não se trabalha com uma matéria, não há propriamente um objeto para lidar, ainda que a pessoa venha também como um corpo.  Esse corpo que traz em sua constituição essa parte eu, e que vive uma série de influências corpóreas  a partir dessa parte eu – as somatizações, ou reações psicossomáticas .    É em sua inteireza de ”corpo-eu” que a pessoa  transaciona com aspectos do mundo, através da linguagem.  Esta pessoa que vem à clínica tem como sua natureza essa de ser um organismo capaz de linguagem.  O clínico – também um corpo capaz de linguagem – testemunha diariamente  esse mistério.
 
O  “eu-corpo” existe.  Há algo nele que se ex-pressa. Põe para fora um “isso” que está nele. Nesse “eu-corpo”, há isso que o caracteriza. Isso, esse caráter íntimo do “eu-corpo”,  isso que lhe é próprio – singular, só dele. Esse próprio construído a partir de sua relação consigo, com os outros,  num movimento de natureza reflexiva, em que sai de si para regressar a si. Resultado momentâneo de infinitas ex-peri-ências, que sai de si, é tocado, matizado pelo mundo, para voltar a si transformado. Como essas experiências são compostas de suas relações com o mundo, compreende-se a natureza singular, desse “isso”, próprio a si .
 
Outro pronome. Agora reflexivo.
 
Esse si, próprio, não se dá ao pensamento, não é representável. Si próprio não é si mesmo. Ao buscar pensar em si já se cai numa cisão, numa divisão: esse que olha precisa de um afastamento, criar uma alteridade de si, que modifica sua condição inicial de si. Para ser mesmo – si mesmo –  tem q ser os 2 ao mesmo tempo, um e outro que se identificam, dando a condição de mesmidade. Não há mesmidade onde se supõe unidade. O “si” , ainda que uno, não é algo simples. Contém a relação q une e a relação q separa. Não tende a formar identidade. Forma propriedade.
 
O si, o fato de si, o si em sua facticidade não é original. É produzido, é artifício. O si produz a si na experiência de si. O outro de si é si em que o seu outro é este si e, talvez por esse movimento incessante de mútua constituição, sempre inconclusa e precária, sempre em construção, contingenciado e contingenciador, criador de si e do mundo. O seu aí está sempre em ser, sendo. Não é uma situação de fato, imóvel, como em Husserl e Sartre [nota 4].
 
Agamben traz o conceito heideggeriano de  facticidade para argumentar que o fato de si é produzido, é forjado pela  e-moção. Tome-se  o sentido que a palavra emoção  traz : “e”, para fora, como “ex”; e “moção”, deslocamento. E se compreenderá, como  se desenvolve “isso”, o si.  O si, o fato de si, é o que foi produzido pela e-moção, pelo seu deslocamento para fora. Não há um si original. O si é esse “isso”, em constante produção do início ao fim da vida pelas suas próprias e-moções. Daí porque o si, sendo artifício, é sempre si-próprio.
 
A expressividade acontece quando a linguagem traz ao que é próprio. Ou leva o próprio ao que é dito. É como quando se fala, se gesticula, se dança com uma verdade própria. Isso que se sabe que existe, está presente e que é difícil de nomear. A expressividade é essa ação de linguagem q faz a experiência  do “isso”, que faz com que esteja impregnado  à palavra, ao gesto, à pincelada, à ginga, à voz. Mas ele mesmo, “isso”, não vai, “permanece intransmitido”, como diz Agamben, “sem nome”, pronome.
 
O homem, o animal falante, é o infundado, q se funda indo ao fundo em seu sem fundo e, como in-fundado, repete sem cessar sua ausência de fundamento, abandona-se a si.  E é só assim, desse modo negativo, fundado em si . O “si” é o mistério das origens q a humanidade transmite como fundamento próprio. E que é veiculado na expressividade.
por Cláudio Fernandes


[nota1 : “surgência”, essa bela palavra criada pelo colega Arthur Tufolo]
[nota 2: como sintetizado recentemente por Paula Perroni, colega psicanalista]
[nota 3 Paul Ricoeur “Si Mismo Como Otro” pg 9]
[nota 4:Giorgio Agamben “A Potência do Pensamento” pg 260 e seguintes]