Ética e Filosofia Clínica – Coisas que a escuta ensina

Há muitos anos atrás, quando eu tinha exatamente nove anos, eu ouvi de minha mãe o que para mim foi, continua sendo e quiçá não deixará de ser, um dos mais revolucionários conhecimentos que tive na vida. Foi assustadoramente revelador o quanto eu me escondia do encontro com a verdade, que não era um objeto nem outra coisa senão o que unia os meus olhos ao mundo: um ponto de vista da totalidade e o seu inverso. Faltava-me, até aquele momento, o espelho de outros olhos com que se pode melhor enxergar a vida. Até então eu pensava que o mundo não era mais do que eu pensava ser, e que as pessoas se enganavam quando discordavam de mim. O mais absurdo foi me dar conta, algum tempo mais tarde, que o autoconhecimento não viria só de um olhar-se para dentro, mas de muitos outros ângulos. Precisaria observar como os outros me viam, portanto, antes, de saber vê-los com seus próprios olhos. Haveria depois que achar a possibilidade de algum entendimento entre as nossas diferenças. E, por fim, por maior que fosse o conflito resultante, nunca esquecer que o mundo é mais do que qualquer um vê, mas só é inteiro até onde a vista alcança. Que estranha lucidez é essa que obriga a consciência a ser humilde e jamais poder ver o que existe além do olhar, excitando a curiosidade para o infinito? Naquele momento, o importante para mim foi descobrir que o mundo é sempre maior que todas as verdades do pensamento.
A pretexto do que não me lembro bem, ela me disse: “não é o cobertor que esquenta você, meu filho… é você que esquenta o cobertor”. O mundo, impactante e imprevisto, girou na minha cabeça. Eu, que me sentia tão quentinho por causa da coberta, não imaginava que a verdade vinha da perspectiva, que o erro era a falta de um outro olhar, sobre o qual tudo mais existia. A coberta e eu (as coisas e os pensamentos) éramos verdadeiros, mas nossa relação era falsa. Na época descobrira o princípio de toda filosofia: que pensar o óbvio é fechar os olhos para novas “des-cobertas”. Desde então frequentemente me perguntei a respeito das pessoas, das minhas certezas, sobre tudo o que se escondia além das aparências e sobre como funciona o pensamento. Sem dificuldades, um dia entendi que eu era filósofo. Como todas as coisas parecem ter pelo menos dois lados, o meu lado instigador de criança sempre ficou do lado de dentro. Foi assim que iniciei meus estudos sobre ética, sobre gente… não apenas sobre o que parece ser certo ou errado, mas sobre os critérios desse julgamento. Por fim, mais tarde compreendi na Filosofia Clínica, de Lúcio Packter, algo mais do que o “amor à verdade” – significado grego da palavra filosofia. Comecei a ouvir na alma as verdades do amor. Jovem há mais tempo, depois de filósofo, tornei-me psicoterapeuta.
Antes da Filosofia Clínica eu consultava os filósofos, suas questões e métodos, intentava ser fiel ao contexto e conflitos de cada época em que suas obras foram escritas, no desejo de quem sabe melhor entender a marca de seus pensamentos e a profundidade de seus alcances. Mas ainda não aprendera a pensar meus próprios problemas – meus e de meu entorno – a partir do que eu lera até então. Falha minha e não de meus professores. Todavia, estudando com Packter, algumas vezes ele me desconcertava com a simplicidade poderosa de certas perguntas a respeito de dramas psicológicos facilmente encontrados na clínica de consultório, como esta: “Will, o que Platão diria para uma pessoa que acabou de perder o emprego, tendo filhos para alimentar, pagar escola, aluguel etc, e que por isso entrasse em desespero? ”. Eu sabia o que Platão afirmava em seus livros, mas ainda não sabia pensar platonicamente os problemas cotidianos da vida. Vencido o susto e posto ao trabalho, finalmente concluía, não sem algum orgulho de mim mesmo, algumas hipóteses teoricamente satisfatórias ou pelo menos defensáveis numa pós-graduação. Quando a mim tudo parecia novamente tranquilo, eis que me vinha o Lúcio de novo: “Meu querido, você está me dando uma resposta acadêmica, uma explicação teórica… A questão é outra e não é para mim, mas para aquele homem desempregado, usando a linguagem dele, que não é filósofo, que não sabe mais o que fazer da vida, mal compreendido pela esposa, que chora e pensa em suicídio. O que você faria para ajudá-lo se ele lhe aparecesse na sua frente pedindo orientação? Quero dizer, como você faria isso a partir do que Platão mostrava ser possível orientar as pessoas pela filosofia? ”. Perguntas como essa eu sempre reformulava assim: “com quantos pensamentos se constrói um barco? ”. Assim como um construtor de barcos sabe pensar corretamente as diferenças entre o bom e o ruim, muitas vezes a vida nos pede para reconstruir caminhos e sorrisos perdidos. Com isso aprendi que, bem mais que um sentimento, o amor é inteligente.
Dizem que é preciso respeitar as pessoas como elas são… e isso parece muito justo. Mas afinal, como elas são? Curiosamente as respostas quase sempre se antecipam às perguntas. É hábito de a maioria ter prévias explicações daquilo que ela própria não saberia fundamentar. Se se diz que fulano faltou com bom-senso, caberia a pergunta: o que é bom-senso? Se um crítico afirma que a vida em sociedade nos torna neuróticos e prova isso afirmando que desde Freud essa verdade está mais do que provada, inclusive mostrando os livros em que isso é dito, porque haveríamos de aceitar isso como verdade tão facilmente? Poderíamos questionar se de fato existe tal “neurose” e se o método freudiano é científico, válido, atual etc; querer saber o que é ciência e até mesmo buscar descobrir se existe algum método capaz de garantir suficiente segurança para afirmar o que é a verdade a respeito do que se pesquisa. E ainda que encontrássemos tais garantias em uma explicação, possivelmente haveria outras diferentes teorias igualmente bem fundamentadas, com novas perspectivas e conclusões. De resto, do ponto de vista ético, parece não haver dúvidas sobre o princípio básico do respeito: antes do que é dito, saber escutar.
Uma escuta clínica normalmente se interessa por localizar doenças ou tratar doentes. A escuta na Filosofia clínica difere por questionar o conceito de doença e, por conseguinte, o de cura, especialmente quando o assunto, longe das questões de natureza puramente física e biológica, refere-se a aspectos psicológicos e comportamentais, em que tudo não passa de valores comparados com valores. Dizendo assim, não se pode entender por clínica, nesta específica filosofia de consultório, qualquer significado próximo de uma ideia de tratamento daquilo que alguns insistem chamar de “disfunções psicológicas”, e que não passam de simples ou complexos modos individuais de ser, sem comparações diminutivas. Não faz sentido argumentar que o filósofo erra por não possuir conhecimentos científicos necessários para o diagnóstico de psicopatologias, sobretudo porque uma das maiores competências da filosofia está em desfazer falsos problemas e, com eles, a prática equivocada de suas consequências. Os diversos conceitos psicológicos de doenças mentais são muito relativos, por serem culturais, e pela razão de não estarem nem um pouco isentos dos interesses políticos e econômicos, dos mecanismos de classificação, controle e “ajustamento” aos estados de pressuposta normalidade. Em termos éticos, é inaceitável rotular alguém por “normal”, ou qualquer variação do seu contrário, por enquadrar-se nas normas científica e socialmente estabelecidas pelos poderes vigentes ou pelo nivelamento da maioria. É nesse sentido, sobretudo pela dignidade moral, que a Filosofia Clínica alivia o peso dos equívocos de significado da acepção de “loucura” versus “normalidade” e seus correlatos mais brandos (“neurótico”, “desequilibrado/descompensado emocionalmente” etc.), porém não menos cruéis em seu estigma de exclusão. Não há nisso novidades que já não tenham sido ditas em multianálises do poder, por filósofos como Michel Foucault em A História da Loucura e por literatos como Machado de Assis, em O Alienista.
Antes que alguém se arrogue algum direito de poder sob o status de alguma verdade, é preciso que se diga: todas as noções de verdade são discutíveis, com métodos próprios segundo as características de cada tema. O conceito de “verdade” pode se resumir em três tipos de conhecimentos diferentes:

  • O objetivo (do mundo material e das ciências exatas),
  • O intersubjetivo (próprio da cultura, dos desejos de relação, das ciências humanas em geral etc.), e
  • O subjetivo (único e intransferível da percepção de cada individualidade).

Tais dimensões da realidade se interagem constantemente, pois a totalidade da vida as pressupõe a cada instante, no entanto jamais se confundem. Exemplos: ouvir um médico sobre as estatísticas de avanço da metástase de células cancerosas de um paciente, argumentando que Deus não permitirá isso acontecer, é, com total perda de objetividade, não escutar o médico e, possivelmente, nem a Deus. É bastante apropriado afirmar que gosto se discute sim, e com razão; quando isso é relativo a um tempo e cultura específicos, sem valor universal fora desses limites. Neste caso, entre vinicultores, é correto julgar a qualidade ruim de um vinho, afirmando gostos com valor de verdade intersubjetiva. Todavia, seria um crime ético exigir mínima concordância subjetiva a respeito de fé religiosa, da preferência de cores, exprimindo com exatidão os sentimentos, as vivências e sensações comuns, pois ainda que as experiências pessoais se assemelhem nas aparências, a mesma sede, o estado de humor, o paladar e o exato gole de bebida nunca se repetem na vida, nem para si mesmo.
Seja como for, a Filosofia Clínica em particular não se ocupa do que é relativo, embora uma pesquisa da história, da sociedade e da cultura se faça indispensável ao entendimento do seu primeiro interesse: o indivíduo. Tal filosofia se dedica ao que é subjetivo, às pessoas e suas relações íntimas com o meio que as contorna e da maneira ímpar como elas o fazem. O filósofo clínico, enquanto terapeuta, tem uma única finalidade: cuidar daqueles que lhe pedem orientação existencial, entendidos não como pacientes, mas como “partilhantes”. O jeito de ser de cada um, por mais estranho que pareça aos que se acham melhores, não merece ser “curado”. O filósofo, portanto, não cura, cuida.
Todos temos um eixo de gravidade individual, uma estrutura que nos define, um modo próprio de existir, em que nela se pode supor, quem sabe encontrar, o equilíbrio das forças internas. Tal centro de sustentação não se advinha à distância em ninguém. Como planetas no espaço, cada alma é um mundo próprio, movimentando em torno de si mesmo a mesma vida que o leva além. Somos assim: simultaneamente constituídos de um universo interior e de um contorno ambiente. Somos, pois, o resultado e a renovação desse encontro de grandezas. O que às vezes nos parece ser gigante, noutras não é mais que um grão perdido na imensidão das galáxias. A esta estrutura individual da psique humana Lúcio Packter nominou de “Estrutura do Pensamento”. Sem prejulgamentos sobre a personalidade de quem não conhecemos bem, somente com uma profunda ética da escuta é possível “des-cobrir” quais são os elementos psicológicos que formam o centro de influência determinante de uma pessoa, que leva tudo o mais a ser fortemente atraído para ele. Algumas pessoas são marcadas pela emotividade e é através dos sentimentos religiosos que buscam solução para todos os seus problemas financeiros. Outras são muito racionais na educação dos filhos, mas a força do raciocínio depende essencialmente dos humores da vida sexual, de tal maneira que para melhorar os estudos deles é preciso cuidar do erotismo dos pais. Há quem deixe tudo para depois, priorizando a vaidade de sentir atlético em idade avançada, sem nunca haver dado importância ao fato de achar-se feio. Etc. Por fim, cada qual possui, constrói, extingue, reinventa… seu jeito único de ser. Ninguém merece ser tão facilmente “explicado” com um modelo genérico de personalidade que reduz as infinidades de mundos individuais só para justificar alguma teoria de destaque, por mais bonita que seja.
De maneira bem simples, o interior de alguém pode ser descrito e conhecido por meio de três perguntas: o que, para este indivíduo é absolutamente determinante e inegociável, ao ponto de sua presença estimular a vitalidade e na sua falta perder totalmente o equilíbrio de suas forças e, talvez, a própria vida? O que para ele é importante de tal forma que lhe signifique realização pessoal e valha muito o esforço por alcançá-lo; cuja falta seja penosamente suportável, mas perfeitamente substituída por outra coisa ou experiência de igual valor? Além disso, o que lhe é de tão pouco ou insignificante valor que não lhe faz muita ou nenhuma falta? Nos imprescindíveis detalhes, as respostas nunca se repetem de pessoa pra pessoa e, nalguns pontos sim e noutros não, se diferem em cada época e circunstâncias durante a vida. Com espanto, uma investigação rigorosa desses pontos nos obriga a reconhecer que coisas para nós absolutamente sem importância são determinantes para pessoas muito próximas de nós. Costuma ser mais difícil quando a situação é inversa. Uma simples palavra não dita, certo perfume, uma brincadeira ou um gesto qualquer, sem que o saibamos, podem magoar, trazer imensa alegria, recuperar lembranças do passado, ser motivo de amizade por toda a vida… Coisas assim acontecem muito mais do que nos acostumamos a perceber. Quanto maior o conhecimento dos modos de ser de si próprio e dos outros, maior a capacidade ética de respeito.
Mas estas não são questões didáticas a serem feitas em um questionário de avaliação psicológica e entregues ao próximo, muito menos na ante-sala do consultório. Quase nunca são perguntas. São verdades ditas na história de cada um apenas para quem sabe ouvi-las. Ouvir sem prejulgar exige compaixão, para colocar-se o máximo possível no lugar do outro, além de muita filosofia… filosofia da linguagem, epistemologia, lógica, pesquisas de estética, conhecimentos de política, noções de religião, farmacologia, literatura etc. Com muita competência, foi o que Lúcio Packter deu à filosofia: um sentido psicoterápico, um caráter clínico, um método de escuta da subjetividade tal que permite reconhecer todas as categorias de entendimento do ser humano, todos os traços existenciais da individualidade, seus signos, valores, pensamentos, corporeidade, emoções, funções de comportamento etc., tudo, enfim, que se possa afirmar como característica da psique humana e que a história do pensamento já produziu. E porque a filosofia é qualquer coisa que não dogma, este método terapêutico põe-se permanentemente aberto, pelo diálogo, às renovações que ainda hão de surgir.
Fosse a vida didática e a palavra aceita, bastaria explicar isso melhor, com alguns exemplos, dirimir dúvidas e muitos problemas decorrentes estariam definitivamente resolvidos. Eventualmente alguém funciona assim, por certo não a maioria. Há quem aprenda somente quando há uma relação de confiança e amor emanados de quem ensina. Também há quem recuse professores ou amigos e decida aprender tudo sozinho; quem prefira livros a pessoas; quem precise ver para crer ou pensar a respeito etc. Pessoalmente, depois de muito estudo, eu ainda teimo em tirar novas lições daquilo que minha mãe me disse aos nove anos. Teria Freud razão ao me analisar? Seria a psicanálise uma verdade universal em todas as épocas, culturas, idades, contextos econômicos e psicológicos diferentes? Ora… basta que haja a possibilidade de uma única pessoa desigual no mundo, distante do preceito de quem julga, para se cumprir o dever ético de primeiro buscar conhecer aquele que se quer julgar, ter consciência dos vários critérios de julgamento, permanecer autocrítico e humilde, para só depois afirmar conhecimentos da individualidade de alguém. Modelos sociológicos e tipos psicológicos ajudam na compreensão geral e são absolutamente necessários como um ponto de partida, amparados na pesquisa séria dos que se dedicam à ciência. Contudo, defronte a singularidade do outro, face a face, nenhuma teoria pode antecipar ou substituir a escuta, para se evitar os monólogos da tirania e a máscara da bondade. Quem não souber a escuta, saiba o silêncio.

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