Os novos fazendeiros: nossas crianças

Hrant Dink foi um jornalista Armeniano assassinado na Turquia em 2007. Em uma entrevista concedida no mesmo ano de sua morte, Hrant, que durante sua vida lutou para que o genocídio armênio praticado pelos turcos fosse reconhecido, relatou uma história sobre seu avô, reproduzida abaixo.

    Antes de o genocídio começar, em 1915, o seu avô, que seria deportado junto com toda a família, permaneceu em sua fazenda até o último instante possível tentando consertar a máquina que faria a próxima colheita da safra. Seu filho, pai de Hrant, disse-lhe: “pai, nós não estaremos aqui para a colheita, seremos deportados. De que adianta consertar essa máquina?” O velho homem disse: “Eu tenho que… Outros fazendeiros chegarão e farão a colheita. Não podemos deixar a máquina quebrada. Eles precisarão dela.” De fato ele foi deportado e morto logo depois.  

   O exemplo acima nos conduz a uma breve reflexão: somos seres beneficiados pelo sacrifício de muitos que vieram antes de nós. Pessoas desconhecidas que em seus dias de silêncio e sem holofotes lutaram por nós, habitantes do tempo presente; pessoas que sabiam que não colheriam os frutos de seus atos. Alguns poucos se tornaram personalidades conhecidas por suas lutas éticas, como Gandhi, por exemplo; mas milhares de desconhecidos, no silêncio de suas vidas, também lutaram pelo legado das gerações futuras…

   Quando paramos para refletir acerca de nossas vidas individuais, por mais que nós insistamos, não saberemos se os anos que ficaram para trás foram melhores ou piores que os anos que virão pela frente. Cada novo dia pode trazer consigo, em suas dobras de tempo, surpresas e eventos que podem marcar nossas existências de modo maravilhoso ou trágico. No entanto, enquanto sociedade, quando olhamos com lucidez e crítica para nosso tempo, é difícil escapar de um sentimento de pessimismo. Penso que tal negativismo, dentre outros fatores, repousa substancialmente na percepção de que as relações humanas estão frágeis, desgastadas e a ponto de ruir; com as necessidades básicas satisfeitas, nossa época é o tempo da “espetacularização” e da superficialização dos afetos; da dissolução dos espaços públicos de debate; do narcisismo e do egocentrismo.

   Gostaria de ampliar o olhar sobre nosso tempo, trazendo à discussão o filósofo Hegel e sua dialética histórica.

A tradução literal de dialética significa “caminho entre as ideias”; através do diálogo e da argumentação capazes de distinguir claramente os conceitos definidos na discussão entre opostos, tese e antítese, carreadoras em si  de “partes da verdade”, exageros e distorções, chega-se a uma síntese que traz em si mais “partes da verdade” e menos exageros e distorções. Hegel nos traz a ideia de que a evolução da humanidade se dá de modo dialético.

Segundo Hegel, a dor e um novo olhar para a dor é o inicio da possibilidade do novo construído a partir de relações de superação. E a mensagem de esperança reside em uma espécie de confiança histórica da superação e construção do novo, cujas imperfeições serão contrapostas e engendrarão a síntese a partir de diálogos, reflexões, conflitos e construções, e assim por diante. O método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente, questionando-o em nome do futuro, em nome do que “ainda não é”. E se fizermos um breve exercício de reflexão, podemos conjecturar acerca de nosso tempo e do novo que, não sem dificuldade, tenta se insinuar.

    A partir da revolução industrial, e mais recentemente com a revolução tecnológica, o humano cada dia mais se torna um ser mecanizado e utilitarista, cuja razão instrumental reifica o outro humano, estabelecendo com o mesmo uma relação objetal. O outro é visto como um meio para fins próprios. E quando vemos movimentos de retorno a uma “humanização” perdida, estamos em uma relação de oposição dialética. Por exemplo, quando começamos a nos insurgir contra os abusos da ciência, que assumiu para si o papel de estabelecedora da verdade, estamos nesse processo. Um dia a ciência nos prometeu a felicidade, a paz e a harmonia entre as pessoas; mas quando fomos obrigados a assistir pessoas sendo transformadas em fumaça na 2ª guerra mundial, começamos a perceber que algo estava errado. E o problema não está na ciência em si, mas na mercantilização e desumanização que caminhou ao lado do progresso científico e tecnológico.

   Introduzirei agora em nossa discussão o chamado “nascimento humanizado”, uma espécie de movimento humanista contra os abusos provocados pela técnica no trabalho de parto e no nascimento das crianças. 

   Para muitas pessoas o parto é apenas o modo pelo qual a criança vem ao mundo, importando apenas o resultado final, ou seja, a criança no mundo. No entanto, refletindo sobre o fenômeno em si, facilmente chegaremos à percepção de que o parto, seja por via vaginal ou cirúrgica, é o ato (ação e sensação) através do qual uma vida se inaugura no real; é muito mais que apenas o nascimento de mais uma criança no mundo. O parto é o ato de amor e doação inaugural dos pais que conceberam essa criança. A criança, para esses pais, é como os novos fazendeiros que chegarão para cultivar a terra. No entanto, diferentemente da ética absoluta do senhor da fazenda, que prescindia do nome dos sujeitos da próxima geração, a criança é cria; carne da carne, sangue do sangue; vem do ventre, vem da terra; vínculo maior entre humanos não há. A ética se impõe (ou deveria) com robustez, instinto e força. Penso que atitude ética fundamental dos pais em relação aos filhos se dá no ato inaugural desse novo ser que vem ao mundo.

   Pois bem. Intuitivamente, como seres de natureza, não é difícil chegarmos à conclusão de que deve haver algum sentido natural, alguma importância fisiológica para a mãe e para o bebê no período de tempo denominado “trabalho de parto”. Mas para quem se mecanizou em demasia e prefere legitimar a ciência à natureza, ofereço-lhes então a própria ciência e seus inúmeros estudos que atestam os benefícios para mãe e filho que “entram” em “trabalho de parto”. Dito isso, torna-se difícil e um contrassenso qualquer argumento contrário a respeito da necessidade de se respeitar o tempo do parto; qualquer argumento contrário à importância de se “entrar” em trabalho de parto assume ares, para mim, de passionalidade histérica.

No entanto, em nosso país, o número de cirurgias abdominais agendadas para a extrusão do bebê sem que o mesmo tenha entrado em “trabalho de parto” é assustador. A criança, em sua fragilidade absoluta, é “arrancada” de seu meio natural e de seu estado de natureza, chegando ao mundo de modo abrupto, antecipado e artificializado. Os médicos, exercendo o poder, e os pais, por falta de informação e apoio e/ou por comodismo e/ou medo, são os agentes comumente envolvidos nesse ato de violência contra a criança que vem ao mundo privada de seu momento de transição entre a vida uterina e a vida fora do útero.Com exceção das situações onde a ciência é bem vinda e cuja intervenção prematura se faz necessária e pode salvar vidas, o parto é um ato humano, natural, visceral; negar essa passagem do tempo onde se põe em marcha uma cascata de eventos biológicos, tanto na mãe como na criança, é negar também a biologia a partir da qual a criança foi gerada. 

   A casuística individual não está em questão aqui; tampouco há espaço para um julgamento moral. O que trago aqui é uma reflexão ética radical em relação ao egocentrismo, comodismo, medo, mercantilismo e narcisismo imperante em nossa sociedade a ponto de não permitir nem mesmo que nossos filhos venham ao mundo no seu tempo.Trato aqui de uma cultura artificializada e mecanizada de vida que é capaz de vilipendiar até mesmo a chegada de nossos filhos. O que dizer então das relações entre as pessoas do presente? E o que dizer das relações com os desconhecidos das próximas gerações?  

     A condição maquinal dos seres humanos modernos pode parecer uma limitação, uma fraqueza da sociedade infantilizada, anestesiada e egocentrada. Na verdade, penso que tal condição agigantou-se e assumiu proporções ainda mais drásticas: tornou-se condição de sua sobrevivência. Joseph Conrad, em seu conto Anoutpostofprogress, de 1896: “O indivíduo contemporâneo é moldado pela sociedade até o mais íntimo de seu ser; poucos se dão conta de que sua vida, a própria essência de seu caráter, suas capacitações e ousadias não passam da expressão de sua crença na segurança do meio que os cerca. A coragem, o autocontrole, a confiança; as emoções e os princípios; todo grande pensamento e todo pensamento insignificante não pertencem ao individuo, mas à multidão; a multidão que acredita cegamente na força irresistível de suas instituições e de sua moral. É a grande marcha da humanidade anestesiada pelo mito do progresso. Mas o mito do progresso é poderoso, como uma prisão perpétua. E fora dessa prisão perpétua, o indivíduo não sabe o que fazer da própria liberdade, tamanho o medo e o pavor diante da percepção de que toda ideia de controle e segurança diante da existência não passa de ilusão. E por isso precisam da prisão que esfola sua intimidade e determina sua vida”. O individuo contemporâneo descrito por Conrad (atentem para a data em que foi publicado o conto: 1896) caminha, paulatinamente,para um estado de perda da autoimagem e da identidade; perdido e incapaz de entender a realidade que o cerca, é deformado e absorvido de modo irrefletido por essa realidade.É sujeito passivo, um personagem de si mesmo que vive de modo inautêntico e é levado pela “massa”. Voltando o olhar para nosso tempo, um tempo que ainda vive sob a égide do “mito do progresso”, e um tempo onde vicejam as grandes epidemias de depressão, ansiedade, suicídio, medicalização e drogadição, precisamos, enquanto sociedade, buscar uma espécie de “reorientação” diante da realidade que nos cerca.Caso contrário, continuaremos sendo absorvidos e deformados pela mesma.

   Uma última reflexão: também as crianças de nosso tempo, imersas na cultura da artificialidade desde o nascimento, estão cada dia mais medicadas e cometendo atos de violência e suicídio. E se tais dados não forem suficientes para ensejar uma reflexão mais demorada e profunda sobre a nossa cultura, nossos medos e nossas relações, a começar por nossos filhos, é melhor deixar a máquina para a colheita quebrada mesmo, pois tudo estará perdido.Hegel, que tentou estabelecer um esquema histórico que explicaria e anteveria os novos passos da humanidade, talvez não tenha contado com o absurdo de nossos tempos: em uma época com tantos recursos e facilidade de comunicação, viceja, ao invés do dialogo, a solidão e os ataques pessoais entre os adultos carentes, egocentrados e infantilizados.

Vacina para a passagem do tempo – Bergson e literatura

O ano de 2020 caminha para seus últimos meses. No entanto, o desfecho desse ano “caótico” (mais para uns que para outros, iluminando ainda mais o claro o abismo social que nos separa), não será simbolizado pelo natal e pelas festas de final de ano, mas sim por uma vacina. E para muitos, asensação um tantovaga e incômoda – de que o tempo está passando depressa demais e a existência se esvaindo como areia entre os dedos – ganhou contornos de desespero. E é sobre a percepção da passagem do tempo que os convido a uma reflexão a partir do pensador francês Bergson (1859-1941).

O filósofonos trouxe o conceito de que vivemos em dois mundos: o mundo externo, com o qual nos relacionamos através do instinto e da inteligência (que nos direcionam para o mundo da matéria) e o mundo interno, o qual acessamos através de nossa intuição.

   Quando acessamos nossa interioridade transcendemos a existência dura e concreta e fugimos da mensuração do relógio. Aceder à nossa interioridade significa escapar, ultrapassar a nós mesmos, criar, expandir nossa consciência e dilatar nossa existência enquanto essência. Esse tempo é inapreensível e perene porque nos modifica e nos transforma, deixando rastros eternos e não se consumindo em si mesmo.

O mundo material sensório-motor, ao contrário, em seu enquadramento cada dia mais utilitarista e instrumental, nos rouba facilmente a real percepção do que significa cada milagroso segundo de nossas existências. Bergson denominou “tempo de latência” o tempo decorrido entre um estímulo recebido e a resposta subsequente. E é nesse intervalo, quando ficamos com nós mesmos, que habitamos o nosso mundo interno e nossa originalidade. Um mundo onde as resistências e os disfarces são dissolvidos e onde refletimos,imaginamos, viajamos e criamos; um mundo onde nos aproximamos de uma transcendência possível e criadora e a partir do qual engendramos açõeshumanizadas. E nesse interlúdio entre o estímulo e a reação, o tempo caminha a lentos e (potencialmente) prazerosos passos. É no silêncio de nosso mundo interno que nos encaramos verdadeiramente no espelho e nos aproximamos de quem verdadeiramente somos. É nesse “espaço” que nossos potenciais latentes e quase infinitos pululam e anseiam por vir à tona até a superfície da existência. É através da reflexão, da meditação, da imaginação, da criação, da leitura, da musicalidade, do prazer estético que entramos em comunhão com o que se chama de divino, milagre da vida.

No entanto, basta um discreto olhar ao mundo que nos cerca para observarmos que nossas existências estão cada dia mais voltadas para o mundo externo. Trabalho, entretenimento, aparatos tecnológicos, aparências…. Nossasrespostas tornam-se condicionadas e automatizadas, desprovidas de exercícios intuitivos, afastando-nos sobremaneira de uma vida e de uma existência mais humana. Tornamo-nos seres mecanizados que seguem em rebanho em busca de “bens”, em nome da competitividade, da felicidade (comumente egoísta) e do “sucesso”. E nas poucas horas livres mergulhamos na tecnologia excessiva que nos cerca e nos consome. Agimos e interagimos na matéria e confundimos nosso eu-profundo com o eu-material utilitarista e hedonista. Padecemos da pior forma de escravidão: a escravidão que impomos a nós mesmos sob o signo de uma suposta liberdade.

E é por habitarmos tão pouco nosso mundo interno que sentimos o tempo esvair-se tão velozmente. Os dias sucedem-se uns aos outros em velocidade vertiginosa e fugaz.E quando paramos um pouco nossos afazeres para um olhar mais demorado e refletido, vem o susto: a semana já acabou, o mês já terminou, mais um ano se foi…

É fato inquestionável queos tempos, as velocidades e os valores mudaram. E precisamos nos adaptar e celebrar os avanços e conquistas da modernidade, evitando o saudosismo ingênuo, idealista e contraproducente de um (suposto) tempo mais feliz que não volta mais.Mas tampouco precisamos embarcar de modo irrefletido na onda subjetivista do antropocentrismo radical que valida a individualidade acima de tudo.A tecnologia deve vicejar a serviço de uma ética humanista e não como instrumento de controle e distorção da natureza humana. Aqui não cabe uma discussão maior a respeito do tema, mas eu gostaria de deixar umamatéria que me é muito cara para reflexão.

A literatura (em seu sentido mais amplo: uso estético da linguagem escrita) é uma forma de resistência, pois para ler precisamos “perder tempo”, desacelerar, repousar nossa mente em um lugar tranquilo e sereno, distante da agitação autofágica da modernidade tecnológica e egocêntrica. Quando lemos dilatamos nossa sensibilidade e nossa percepção de mundo e de existência; estimulamos nossa criatividade e nossa imaginação; ampliamos nosso vocabulário e nossa capacidade de articular ideias e palavras e de interagir com o mundo e com as pessoas através de uma linguagem mais sensível, elaborada, autêntica e marcante. Não à toa o nível de leitura de uma sociedade guarda relação direta com o grau de desenvolvimentoda mesma. Não à toa a triste situação de nosso país guarda relação direta com o fato de que, segundo recente estudo, mais de 70% da população brasileira não lê um único livro ao ano e nosso índice per capita é de 1,7 livro/ano…

   Entre tantos desejos, planos e metas para o ano e para o mundo “supostamente” pós-pandêmico que se nos insinua repleto de possibilidades, deixo essa singela e humilde mensagem: o tempo “corre” depressa porque nós fazemos nossas horas de vida “correrem” descoladas do que realmente importa e resiste ao tempo. E cabe a cada um de nós, dentro de nosso âmago e de nosso silêncio íntimo(ainda inalienável), refletirmos sobre nossas existências e sobre nossos passos para os dias que virão, com ou sem vacina.

pensamento clínico

 

O conhecimento da experiência humana, no ocidente, talvez possa ser dividido em   áreas ou campos muito diferentes entre si. Numa primeira aproximação estariam a educação, a religião, a arte, a ciência e a filosofia, cada uma caracterizando um modo de experimentar e conhecer que se subdividiria em modos muito diversos, através dos séculos.

Com o tempo cada divisão acabou se transformando em critério do que seu objeto é, ou seja, se tornou a medida de sua constituição, de sua essência. A medicina que cuida do corpo material do homem.   Nessa inversão a experiência perde seu valor de constituição, sua linguagem fica dependente do que essa área de especialização define como válido, como verdadeiro. Ela se torna uma instancia de decisão do que é possível e do que não é, como uma espécie de filtro, que só permite passar determinados aspectos das experiências, dos fenômenos, das coisas.

Na clínica que trata de questões existenciais isto se tornou dramático e trágico, porque não havendo uma área própria, ela ficou encaixada no âmbito da ciência, sob a divisão da Psicologia ou da Medicina – neste caso subdividida como Psiquiatria.  Muitas foram as razões históricas para este percurso, mas isto não justifica a permanência disto neste início de século 21. O século passado foi palco de uma profunda reviravolta das bases do pensamento ocidental, com alterações definitivas nos padrões e fundamentos das ciências.

A clínica existencial não tem um campo próprio de referências que acolha as suas práticas, as suas teorias, os seus métodos, os seus valores, suas tradições, seus saberes, suas dúvidas. Um campo próprio para ela não pode ser de natureza semiológica, porque as suas questões não nascem do olhar, mas teria de ser um campo semântico, porque tratam dos sentidos, produzidos pela escuta, como se verá à frente.

Num campo semântico próprio cabem todas as clínicas que se baseiam na escuta: as psicanálises – junguianas, kleiniananas, bionianas, freudianas, reichianas, lacanianas, winicottianas, etc – certas psicologias – associacionistas, rogerianas, da personalidade e outras –  as dasein-analises, as filosofias clínicas e outras.  Outras  práticas que oscilam oscilam entre a escuta e   procedimentos provindos de semiologias científicas como algumas psicologias – comportamentais, funcionalistas, gestaltistas, skinneristas – ou as clínicas psiquiátricas. Cabe interlocução, conversas, trocas de experiências num campo de fato apropriado.  

 Não há clinica, nesse campo, sem linguagem. A linguagem não fundamenta, ela legitima.  Nestes modos de clínica há uma linguagem que se estabelece entre o clínico e quem o procura, num processo de expressão, impressão, assimilação e transformação de sinais sonoros e gestuais, de parte a parte. Sinais que procuram se tornar veículos de vivências. O clínico busca apreender o que está indicado nas palavras, nas expressões, nos gestos, e nas combinações do que “vem” de lá, desse outro.

Falar e ouvir são práticas comuns, cotidianas, ordinárias.  No dia a dia é pratica comum transmitir e interpretar mensagens. O habitual é tomar-se o que a outra pessoa diz a partir das próprias referencias sem atentar para as suas referências, como se as palavras, os gestos, as expressões, tivessem um só sentido, um significado óbvio, comum a todos. Como se as referências de uma pessoa fossem as mesmas das do “mundo”.  Isto gera muita confusão, mal entendidos, controvérsias.  O “ouvir clínico”, entretanto, exige cuidados diferentes, especiais. É um campo de significações próprio. Em construção.

As ciências não estão isentas de dificuldades. Talvez, sofram de forma até mais aguda, na medida em que são também atividades dependentes da linguagem e, de outro lado, têm para si um elevado grau de exigência de certeza, de segurança e de precisão. Que nenhuma linguagem humana pode oferecer. O pressuposto básico do qual elas partem é que o significado de uma expressão (sonoro ou gestual) é denotativo, isto é, estritamente informativo, referencial, objetivo. Fala-se  do mundo, “como o mundo é”.  Pressupõem, portanto, uma certa “realidade” em que há  um sujeito que observa e, um objeto observado,  claramente distinguíveis, um do outro. O objeto referido ou denotado pela linguagem, estaria “no mundo”,  poderia ser claramente  definido, distinto  de qualquer outro. O “real” são os sujeitos e os objetos, a linguagem um modo de acesso a eles, de descrevê-los.

Nesta vertente está o trabalho clínico  de um  terapeuta “científico”, “técnico”, que busca “des-pato-logizar” – desfazer a doença ou o sofrimento – para  recuperar os significados verdadeiros, sólidos, certos para qualquer pessoa. Usando a lógica, a linguagem, uma linguagem lógica. E por isso a pessoa se torna “paciente”, o “objeto” no qual se fará uma intervenção. Ela tem um sofrimento, um desequilíbrio, está doente, precisa de cuidados seguros, firmes, sólidos, que se apóiam numa verdade. Trazê-la ao normal, à norma,  à normalidade,   (re)aproximá-la do mundo “real”, das “coisas objetivas”.

A clinica

Na área do atendimento às demandas das questões vivenciais, em toda extensão em que isto possa ser imaginado ou vivido pelas pessoas,  a maior parte das psicologias e as psiquiatrias são   conjuntos de conhecimentos (métodos, teorias) e de tratamentos que se propõem a estar no campo da Ciência. Como atividades desse campo, buscam obedecer aos seus critérios de objetividade, medição e controle. Como conhecimentos, se baseiam em certezas, de natureza filosófica, que estão, portanto, fora de seu âmbito de atuação. E assim, de fora, vem o suporte, o fundamento, o seu contato com a verdade evidente que, além disso, os legitima. A legitimidade de um tratamento científico viria de fora de sua própria experiência, de um outro campo, indefinido, nebuloso. Dito, por dificuldade e facilidade, filosófico.

 Mesmo no campo já mais propriamente da clínica existencial pode –se notar essa dificuldade.  Para Christian Dunker a “definição do que vem a ser psicoterapia ainda hoje é objeto de confusa classificação… seja pela sua orientação teórica, por seus critérios de habilitação, por seus fins ou por sua eficácia diferencial.  Sua afinidade circunstancial com práticas mágico-religiosas, com estratégias científicas ou com visões de mundo particulares combina-se com um amplo dispensário de técnicas (corporais, grupais, farmacológicas, pedagógicas)” (Dunker pg 20).  Já para Renato Mezan “psicoterapia é em 1904 um método de trabalho pertencente à Medicina, e que procura curar as doenças ditas “nervosas” através de meios psíquicos e não através de meios físicos…uma doença seria “nervosa” se não tivesse causas físicas… ou distúrbio orgânico” (Mezan pg 312).  No início, ainda segundo Mezan, a psicoterapia era “idêntica à psicanálise…(e para Mezan) a única psicoterapia” (Mezan pg 314) . Para  Dunker, também,  Freud teve um papel “fundador e inaugural” no campo das psicoterapias, tornando-se quase o protótipo do terapeuta nesta área, com  “uma recorrente combinação entre experiências de observação e experiências de tratamento psíquico…antes de se tornar psicanalista…era um clínico e um psicoterapeuta” (Dunker pg20).

No ambiente acadêmico, no mundo da Medicina e para o público leigo, há muita dificuldade em se estabelecer com clareza o que é uma “terapia”, uma “psicoterapia”, uma “análise”, um “tratamento psiquiátrico” ou um “acompanhamento terapêutico”.

Esse modo de entender a clínica “do espírito” veio da tradição da medicina do corpo. Nela, o médico ou o clinico  seria  “sobretudo, um leitor dos signos que formam o campo de uma semiologia e [que] organizam uma diagnóstica de forma a justificar as escolhas de tratamento… o clínico é também um prático e sua figura descende do cirurgião barbeiro, do médico de família ou do profissional liberal, cujo habitat natural é o consultório e antes disso, a  casa ou a rua, não o hospital ou a universidade…“(Dunker pg 21). Com muita pertinência, assinalará que “o clínico, no sentido da ciência médica moderna, deve submeter sua prática à primazia do método de tal forma a fazer corresponder…as regras da investigação científica às regras da condução do tratamento” (Dunker pg 21].

O campo da Ciência em que se inserem os cuidados ligados aos sofrimentos e aos modos de existir da pessoa está circunscrito à  área da Medicina chamada de Psiquiatria.  Como área médica os sofrimentos são tomados como “sintomas”, sinais indicadores de patologias, de desequilíbrios, de doenças, de “transtornos mentais”. Os tratamentos são baseados em quadros nosológicos ou psicopatológicos. Há uma espécie de bíblia, que serve de referência à toda prática psiquiátrica e mesmo a alguma prática psicológica: o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM. Ainda que note que nenhuma definição especifique adequadamente os limites precisos para o conceito de “transtorno mental”, nessa publicação  ele é “conceituado como uma síndrome (conjunto de sintomas ligados a uma doença)” (DSM IV pg XX)…que deve ser considerada como uma manifestação de uma disfunção comportamental, psicológica ou biológica no indivíduo” (DSM IV pg XXI)

Tome-se como exemplo os “transtornos obsessivo-compulsivo” “essencialmente” definidos como “obsessões ou compulsões recorrentes”. Lá se diz que “obsessões” são“idéias, pensamentos, impulsos ou imagens persistentes que são vivenciados como intrusivos e inadequados e causam acentuada ansiedade ou sofrimento” (DSM IV pg 398). A pessoa vive aquilo como algo “estranho” a si e sobre o qual não tem controle. Já as “compulsões são comportamentos repetitivos ou atos mentais cujo objetivo é prevenir ou reduzir a ansiedade ou sofrimento… a pessoa sente-se compelida a executar a compulsão para reduzir o sofrimento que acompanha uma obsessão ou para evitar… uma situação temida” (DSM IV pg 399). Caracterizada a manifestação dessa “disfunção”, pelo julgamento clínico, isto é, através da interpretação de um relato de comportamentos e sentimentos, o próximo passo será definir o tratamento adequado. O médico faz a função de um leitor de sinais, referidos a esse protocolo de patologias, previamente determinado.

“A farmacopéia e a terapia comportamental (um dos modos de psicoterapia) são consideradas tratamentos de primeira linha para o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)”(Cordioli pg 285). Em quadros de intensidade leve ou moderada a terapia comportamental “pode ser utilizada de forma isolada…[quando] apresentam obsessões, com crenças muito fortes sobre seus temores… com ansiedade ou depressão intensas, a farmacopéia poderá ser a única terapia viável (talvez por muito tempo)”(Cordioli pg285). O tratamento começa com inibidores seletivos da recaptação da serotonina ou clomipramina; não funcionando, aumenta-se a dose; não dando resultado, troca-se de medicamento; não funcionando, busca-se potencializar associando com outras drogas; não tendo resultado adequado parte-se para “combinações não usuais, ECT e clomipramina EV; e se não funcionar, parte-se para a neurocirurgia” (Cordioli pg 285 e seguintes). A avaliação do sucesso no tratamento também será feita a partir de relatos, eventualmente, acompanhado de exames de controles químicos. Sucintamente, em apenas uma página de um dos livros mais utilizados por médicos (não só psiquiatras) no Brasil, podemos observar o modo de proceder e o pensamento científico em seu franco exercício pela Medicina. Praticamente a negação da clínica.  

Em sua característica mais peculiar, “clinicar é dobrar-se, inclinar-se diante do leito do paciente e interpretar os sinais significativos de seu corpo. Em outras palavras, aplicar sobre esse corpo determinado olhar e derivar desse olhar um conjunto de operações”(Dunker pg 399). Olhar, respeitando sua condição e, interpretar, para “captar a lógica do (de um) desvio” (Dunker pg 400]. Interligada à noção de clínica está a de “tratamento”, que originalmente era entendido como “o trabalho da experiência e do oficio de transformação …e que com a modernidade clínica, adquire a conotação de condicionada pelo emprego de um método” (Dunker pg 402).

Daqui, portanto, a noção atual de tratamento como o exercício articulado da clinica em um caso ou em um grupo de casos. Ele estaria constituído pela classificação dos signos, ou seja, por construção de semelhanças que se repetem em uma classe e, pela ordenação, isto é, por regras que organizam os sinais ou signos percebidos.  E nessa própria tarefa de classificar e ordenar se institui uma forma de linguagem, em que se estabelece “uma semiologia”, pela qual os signos, índices, sintomas e traços se organizam. A partir dessa “semiologia” é que o clínico trabalhará buscando estabelecer diferenças, sobre um solo, portanto, de certos padrões estáveis pré-estabelecidos.

A semiologia clínica

“Uma semiologia se torna então o fundamento da clinica médica, estabelecendo uma linguagem particular, circunscrita aos signos que lhe dizem respeito” (Dunker pg 404). Os signos quando estão classificados e ordenados aparecem como sintoma, sendo legitimados por essa descrição e pela consciência do médico. Aquilo que no início era  uma queixa genérica, pelos  “sinais” passam a  ser considerados como “sintoma”, no universo clínico. Como enfatizará Dunker  “essa passagem implica sua captura no discurso e, sua sanção na ordem médica”(Dunker pg 405). A legitimidade e a validade, da fala do paciente desaparece. O médico ouve mas não escuta o paciente. Uma atitude neutra, impessoal, pretensamente  facilitaria sua referência a uma observação isenta na comparação, na indexação com um padrão de patologias. Em outras palavras, o “signo” só existe quando o sujeito é o medico, pois é ele que estabelece, legitima e certifica a doença como tal.

Na clínica médica os signos só se tornam signos a partir do olhar do clínico sobre o corpo da pessoa. O que a pessoa conta e fala não tem importância, “possui valor secundário e suspeito” (Dunker pg 406). As informações que o paciente traz só adquirem peso quando correspondem a algo que o médico observa na analise do corpo do paciente. O “olhar clínico” é aquele incisivo, direto, neutro, sem interferência.  E o notável, sob este aspecto, é que a clínica, em seu exercício está muito longe de encontrar resultados homogêneos, certos, idênticos.  Sua natureza é a de uma atividade exercida por um homem na relação direta com outro homem, mais ligada à sua sensibilidade do que à sua capacidade intelectiva, mais uma arte do que uma técnica. O campo em que trabalha leva-o a tomar decisões e a assumir riscos, num campo em que predominam as incertezas.

Essa prática clínica de olhar e significar, são como um exercício de leitura semiológico. O passo seguinte – o diagnóstico – já é uma atividade propriamente, que já pressupõe uma organização já estabelecida da semiologia, um quadro classificado de doenças, nosológico. No diagnóstico a atividade é intelectual, dependente de um modo   racional de relação entre os signos, num contínuo trabalho de transposição de situações singulares às genéricas. Como trabalha por hipóteses pode ser corrigida, verificada e reformulada. Sua legitimidade vem dos resultados que obtém.

Dunker lembrará que além da semiologia e do diagnóstico a clínica moderna supõe também uma teoria da causalidade ou uma “concepção etiológica” (Dunker pg 411). Um modo baseado nas idéias de “causa” como “culpa”, responsabilidade ou questionamento ou, de outro tomando causa como antecedente e conseqüente, como efeito ou determinação (Dunker pg 414, 415).

 A última operação da clínica clássica é a terapêutica. Ela deve incidir, na medida do possível, sobre as causas e não sobre os efeitos, estabelecendo uma hierarquia das metas: como curar, controlar, mitigar. Além disso, deve estabelecer as estratégias de meios a empregar, definindo tipos de intervenção, ordem de procedimentos e, as táticas pelas quais a ação se dará: as principais técnicas (intervenção cirúrgica, por exemplo)  e as auxiliares (fisioterapia).

Não é o que acontece nas clínicas que trabalham com o “espírito”, com a “alma”, com a “mente”, com a “ psique”, como a psiquiatria, a Psicologia, a Psicanálise, a Filosofia Clínica e outras. Não tendo a referência do corpo para dirigir o olhar, passam a depender quase que exclusivamente do uso da linguagem, da escuta. O delírio, por exemplo, é uma realidade composta de “palavras e não por tecidos ou hematomas”. Como escreve Dunker “a totalidade na qual o delírio se inclui não é a totalidade fechada do corpo, mas, o universo aberto das significações”. Alguma “objetividade” pode vir de um vocabulário que inclui “atenção, memória, imaginação, pensamento, vontade, consciência”, para tentar produzir uma “totalidade artificial”. Algo análogo ao corpo orgânico, uma espécie de corpo psíquico, para onde poderia se transportar as mesmas leis de equilíbrio, funcionalidade e homeostase, postulados para o funcionamento dos tecidos” (Dunker pg 326).  

A clÍnica psiquiátrica

Na Psiquiatria há uma espécie de transcrição do relato ou da fala de uma pessoa para a linguagem dos sintomas, referidos nos quadros psicopatológicos. Diferente das clínicas que cuidam do corpo, ela não pode construir uma semiologia descrevendo todos os funcionamentos normais e os patológicos, as regularidades e as diferenças. Isto seria um despropósito sem tamanho similar a aquele descrito em 1884 por Machado de Assis em sua magistral novela O Alienista.

Lá, pode-se ler as incríveis, mas plausíveis, experiências vividas pelos habitantes da cidade de Itaguaí quando lá se instalou a “Casa Verde”, um local apropriado para o tratamento e isolamento das pessoas diagnosticadas como doentes pelo personagem dr. Simão Bacamarte. Investido pelos legisladores locais, de uma autoridade sem limites, provinda de um pretenso saber científico indiscutível, ele exercita o poder da clínica psiquiátrica ultrapassando as raias do delírio. Vê-se como paulatinamente a população vai sendo recolhida para aquela instituição, por conseqüência direta de uma atividade diagnóstica, baseada numa semiologia – ela sim um perfeito delírio – que vai, cada vez mais, tornando patológicos os comportamentos humanos mais banais. As “razões científicas” vão se sobrepondo de tal modo aos usos e aos costumes locais, que num certo momento grande parte da população está internada. A trama só se resolve pela genialidade do escritor, que mantendo a lógica científica  que comanda o desenrolar dos acontecimentos,  faz com que a  “evolução” da pesquisa do psiquiatra acabe  por levá-lo a “libertar” a todos os internados e a internar a si mesmo. Para o discurso científico a auto-internação foi como um momento sublime, com toda a força legitimadora daquela verdade produzida, a partir da qual a confiança se torna plena. Para o leitor, estarrecido, fica um exemplo acabado da possibilidade de como um delírio investido pela autoridade de um agente da Ciência, nesta área, pode ter o predomínio sobre a vida social, das pessoas. E isto realizado por um escritor brasileiro, mais de meio século antes das pesquisas e trabalhos de Michel Foucault.

A Psiquiatria, como clínica, não conseguiu desenvolver uma terapêutica não medicamentosa.  Já passou e continua passando pelas “técnicas” de sonoterapia, contrastes químicos, choques elétricos, contrastes térmicos, hipnoses e tantas outras, que buscam colocar o corpo em certas situações sob controle do médico, com a intenção de “alterar a linguagem que habita esse corpo” (Dunker pg 431].  Nessa linha que se poderia nomear como diretamente intervencionista estão, por exemplo as técnicas lobotômicas em que se desfaz, por cirurgia, ligações nervosas, levando a pessoa, na maior parte dos casos, a estados catatônicos, a situações muitas vezes catastróficas. Mas poderiam estar, também, as técnicas de intervenção química, pelas quais, se procura controlar o comportamento, disposição ou humor de uma pessoa. Isso é feito através de certos mecanismos de controle de variação de alguns elementos no sangue, um quadro de comportamentos classificados e ordenados: as psicopatologias, os quadros nosológicos.

Com os resultados das pesquisas feita pelos laboratórios farmacêuticos com os neurotransmissores, a clínica psiquiátrica passou a ser pouco mais – nos melhores casos – do que uma técnica de prescrição e controle de efeitos de drogas que atuam diretamente no comportamento, humor e disposição da pessoa. E faz isto com pouca reflexão sobre as razões (etiologia) de um determinado comportamento, humor ou disposição. Os pretensos conhecimentos são organizados em manuais práticos, que apenas em suas introduções indicam suas origens. Estas se ligam predominantemente a institutos de pesquisa direta ou indiretamente ligados à industria farmacêutica ou a departamentos universitários ou agencias governamentais, em que os corpos diretivos não escapam à sua grande influencia. E com isto os conhecimentos se tornam algo que aparece pronto, provenientes de fontes complexas,  distantes da experiência imediata, em que trabalhariam pretensamente  pessoas altamente especializadas, capazes de manipular fórmulas abstratas e saberes inacessíveis, próximos dos mistérios e enigmas vividos desde sempre pelos seres humanos.

Mesmo sem definir com clareza o que seria um comportamento adequado, uma variação de humor aceitável ou um grau de disposição normal, um psiquiatra pode trabalhar com grande desenvoltura através de diagnósticos físicos e poucas observações comportamentais, direta ou indiretamente relatadas. Seu objeto de observação primordial não é o corpo, mas também não é o “espírito”, a psique ou os estados mentais da pessoa. Se já não precisava muito do olhar em seu trabalho, agora se aproxima do requinte de dispensar também a escuta. Trabalha predominantemente com planilhas, modelos, controles numéricos, preocupa-se em controlar quantidades, dosagens. O reino do “deus da mensuração…que entende a doença em termos de desvios com respeito à normalidade…a questão é: como fixar um tal índice?” (Hegenberg pg 28). O homem se torna corpo químico, a ser manipulado e avaliado a partir de variações   quantificáveis. 

Nos tratamentos psiquiátricos, predominantemente, o homem se transforma em campo de experimento químico. As práticas clínicas tendem a validar o diagnóstico a partir do “tratamento” que está à disposição. Isto, neste ambiente, quer dizer: o médico vai usar o corpo da pessoa para testar a sua hipótese de diagnóstico, decidindo entre as drogas disponíveis aquela que lhe parecer mais adequada. O tempo despendido no processo de avaliação dessa decisão, muitas vezes, não passa de alguns minutos. Ele já sabe, já viu quadros semelhantes. Sem ouvir a pessoa, como não ouviu os anteriores. E a validade do tratamento será dada pelos seus “resultados”, isto é, em nova consulta, com talvez menos tempo de avaliação – é um “retorno” – em que os critérios para o relato da pessoa é a  “objetividade”, além da brevidade. E, assim, nesse processo de adequação do diagnóstico à experiência do “tratamento”, se faz a possibilidade da singularização: cria-se a possibilidade de transformar a variedade de psicofármacos disponíveis, em algum modo de adaptação ao corpo, ao organismo desta pessoa, em suas peculiaridades. Isto na melhor hipótese. Em alguns casos é tomado o cuidado de se fazer verificações, “controles” periódicos para aferição das dosagens, para se fazer uma avaliação dos resultados nos comportamentos, humores e disposição da pessoa. Sem ouvi-la. O que se busca nessas consultas de “controle” é verificar se o uso continuado da droga ainda está surtindo o efeito desejado. Aquele corpo, esquecido da sua humanidade, foi relegado a um campo de experimentos químicos, numa tragédia cotidiana, que de tão genérica, não toca mais aos homens e às mulheres que a praticam.

Como exemplifica Dunker “o déficit de atenção com hiperatividade surge como uma síndrome epidêmica na medida em que existe um tratamento que lhe é definido”, como o uso indiscriminado de Ritalina é um exemplo, próximo do criminoso. Ou como nos quadros descritos como de “depressão”, em que os tratamentos são cada vez mais deduzidos dos efeitos do uso dos antidepressivos e combinações com outras drogas. A legitimidade se faz através da incorporação das referências que constam nos manuais – com a primazia unificadora do DSM – e se tornam o “saber” que orienta a prática psiquiátrica e outras (clínica geral, clínica geriátrica, etc). Nestes novos modos de proceder não há porque pesquisar e relacionar motivos de diferenças de comportamento, humor ou disposição, uma vez que o tratamento poderá se dar apenas nessa relação com esse quadro de referencias, com essa precária semiologia.  Dunker pergunta-se se neste mesmo quadro de “estabelecimento de uma verdadeira teoria empírica do sujeito” não poderiam ser colocadas as pesquisas da neurociência e de parte da genética.

A fragilidade da semiologia na clínica psiquiátrica e nas clínicas que acompanham seus quadros nosológicos ou psicopatológicos, tem sua origem na desvalorização e diminuição no processo de escuta. Um quadro de sinais, de sintomas depende essencialmente “do relato do sujeito em primeira pessoa. Sem o relato não há como distinguir…uma face de tristeza de uma depressão, a presença ou não de uma alucinação” (Dunker pg 433).

Semiologia é palavra composta por “semio” que significa sinal ou signo e, logos, cujo sentido imediato é o de princípio de inteligibilidade de algo. O que corresponderia num sentido primeiro como a aquele âmbito em que se estuda os sinais, ligado, portanto ao universo da comunicação entre os homens. A palavra foi utilizada e explicitada por Saussure  em seu Curso de Linguistca Geral, como “uma ciência que estuda  a vida dos signos no seio da vida social…e nos ensina em que consistem os signos, que leis os regem”(Saussure pg 24).  

Levada para o universo da Medicina a semiologia pode ser vista como aquela parte que estuda, codifica e descreve os sinais de uma doença. O sinal, aqui, é visto ou entendido como “sintoma”, palavra que na sua origem se define como “co-incidência, acidente  ou acontecimento” e que pode ser entendido como um aviso ou indício de  mudança, provocada no corpo por uma doença, que poderia ser observado diretamente pelo médico ou ser descrito por quem está sendo atendido. O sintoma quando descrito pela pessoa é tomado pelo médico como uma informação subjetiva, já que tem como base a sua sensibilidade. Nas clínicas que tratam com o espírito, com a mente, com a psique ou com o comportamento do homem não é possível uma confirmação pelo examinador. A anamnese, isto é, o relato das questões e dos sofrimentos feitos pela pessoa, é praticamente com o que o cuidador pode contar.  No caso da clínica psiquiátrica há uma dificuldade suplementar uma vez que o profissional é médico, isto é, ele estaria apto a avaliar, além do espírito, o corpo da pessoa, trazendo um poder quase extra-humano nesta relação humana particular.

Na medicina um sintoma se caracteriza por alguma “alteração objetiva” que é percebida pelo médico. No mundo “psi”, no universo das clínicas que tratam de aspectos da existência espiritual da pessoa, uma “alteração objetiva” é algo muito difícil de se caracterizar. Com  o “ensurdecimento”, com  o processo de redução da capacidade de escuta,  dos homens e mulheres que trabalham nesta área o processo de construção e exercício de uma semiologia fica muito dificultado, se torna precário. E isto quer dizer, menos confiável, trazendo maiores riscos à pessoa que procura ajuda, quando se leva em conta que é a semiologia que dá sentido, que dá as bases para um diagnóstico médico. Como é possível um diagnóstico minimamente responsável a partir de uma semiologia que não enxerga – porque não há objeto concreto – e  não escuta, porque vem de uma tradição de predomínio do olhar? Mesmo o clínico que ouve a pessoa, muitas vezes, não a escuta.

A escuta e o sentido

E porque há essa diferença entre ouvir e escutar é que o sentido do vivido que é dito no falar da pessoa não é captado. Não se capta, não se colhe, não se recolhe, não se acolhe o que ela diz. Essa recepção não é a do som, ou dos sons e tons articulados pela pessoa emissora, que entraria pelos ouvidos da que ouve, já significados. Ela pressupõe, para ganhar significados, outros processos. O escutar não vem do aparelho auditivo. O ouvido físico não provoca, ele mesmo, a escuta. A percepção dos sons e tons não é um processo biológico, do corpo, ainda que se dê, que aconteça num corpo.

A transição da audição para a escuta se dá no momento em que o ouvinte se coloca num lugar em que passa a pertencer ao mundo do dizente. Pertencer ao mundo do dizente é dispor-se ao mundo deste outro que ao constituir o (seu) mundo depõe e propõe parte de si mesmo através da “fala”. Quando a “fala” fala, isto é, quando a pessoa (a que diz) articula sons, tons e ou gestos para colocar à disposição de quem ouve algo de si mesma, de seu mundo, e este que recebe põe sua própria disposição constitutiva de  modo aberto, recolhendo isso (que vem) para si mesmo, cria-se uma espécie de aproximação de uma unidade de disposição, entre a fala e o ouvir, entre o que é falado e o que é ouvido. O que pode ser tomado, a partir do lugar do ouvinte, como propriamente a escuta.

Na escuta, nessa produção do sentido, de significações, de intelecção de mundo, há uma relação com o que Heidegger toma como “logos”: “Logos é o puro deixar dispor-se em conjunto o que, por si mesmo, assim se submete…. o logos é assim o recolhimento originário de uma colheita original a partir de uma postura inaugural”(Heidegger pg 190) .“Logos” é um “puro deixar”, isto é, não é um fazer,  não é um exercício propositivo ou intencional sobre o que está posto ou sendo posto, sobre o que se dá. E “deixar” isso que vem, isso que se dá, isso que se põe,  se dê e se ponha por si mesmo, isto é, sem a inter-ferência do que não lhe diz respeito, do que não lhe é próprio. E, além disso, que aquilo que vem, venha, se dê, se ponha “em conjunto” ,agrupado, junto e ligado, conectado, com. E neste modo “se submeta”, fique colocado, metido, posicionado para o “recolhimento originário de uma colheita original”. Para – as expressões serão muito imprecisas – uma “seleção nunca feita desta maneira”, sobre um “material também nunca exposto assim”.

Tudo o que está contido em uma fala será, do ponto de escuta do ouvinte, novo, original, nunca antes exposto à sua intelecção assim, deste modo. E será por isso que essa apreensão só pode se dar a partir de uma “postura original”, de uma posição própria, cuja origem está nela mesma, autêntica, inédita, ainda não vivida.  

Essa “postura original” na “apreensão” é uma atitude de relação com o que faz parte do humano. Na escuta não é só “apreensão” do que vem pela fala que se dá, mas há um tramar com o que estiver dis-posto da memória do vivido, do já escutado, para uma outra combinação, outra mistura, outro sentido. E nessa produção de sentido, neste  sentido produzido se dá aquela outra conotação da palavra “sentido” que é a de direção como quando se diz que a direção ou  o sentido a seguir é tal ou qual; e ainda a conotação de destino, que responde a um “para onde” ou “para que”.

Em clínica esse produzir sentido, escutar, está relacionado com uma outra variável que é ética. Para escutar o outro – paciente ou partilhante – o clinico deve estar atento para as origens daquilo que colhe, que recolhe, que acolhe. Ele precisa limitar os efeitos do que vem de si, de sua experiência pessoal, para constituir o mundo do outro para si.  Esta relação com o outro deve estar sempre determinada pelo cuidado, pela inclinação atenta sobre o mundo do outro. Como pessoa que também é, o clínico está submetido às mesmas condições no processo de transformação dos sons em sentido, mas, como a sua tarefa é se aproximar do sentido que “está lá”, do que o outro procura lhe transmitir, ele tem a tarefa extra de fazer descansar, de desinvestir, suas próprias – dele clínico –  significações, suas memórias. Numa disposição que se aproximaria de um desfazer-se de si, pela qual abre espaço para a aparição das manifestações e da vigência do outro, para si.

O clinico renuncia temporariamente à qualquer iniciativa sua como pessoa. Passa a uma atitude de atenção flutuante sobre o que ouve. Sua mente se inclina para a fala do outro, porém, procurando não dar peso diferente a nada em especial, numa espécie de atenção dispersa, sem direção, desconfiada de si mesma. Escolher uma idéia, uma vivencia, pode implicar  deixar uma outra oculta. O critério do que “mostrar” deve ser daquele que está em clinica, pois, se a escolha fosse do clínico seria uma imposição de valor de preferência  sobre o que é vivido pelo outro. Se o clinico estiver prisioneiro de suas posições pessoais, de um ponto de vista, de uma perspectiva, sua disposição para o outro estará comprometida, poderá ouvi-lo, mas não o escutará.

Este constituir do outro para si é condição para o trabalho clínico, neste âmbito. Aqui não há corpo, o “objeto” – o outro – para o clínico está em si mesmo. Sempre em constituição, sempre fugidio. O outro, como essa trama de sentidos, de significações, é essa referência que não se completa (para si, clínico). E, lidar com isso, com essa incompletude é estar propriamente na dimensão ética, sabedor de sua condição constitutiva como “um ser em dívida” ou “indigente”. Dimensão que simultaneamente o liberta como ser que é “à disposição”. Disposição clínica que é para o outro. Esse outro que se institui e se constitui em sua incompletude (se fosse completo não haveria o outro), existindo um outro para si e especialmente um outro para o outro. Esse outro que ele é para o outro.

Escutar é produzir os sentidos do outro para si. Numa linguagem, inapropriada: o “objeto” para o clínico é o outro para si. Os modos de cuidá-lo definem um campo próprio e pressupõe um método, um caminho.

O campo da clínica existencial

A clínica que trata do homem em seu existir singular se faz pela escuta e está num campo próprio. Não é o campo da medicina, não está no âmbito da ciência e nem no da filosofia. O campo da clínica existencial é um campo semântico. O seu exercício prático e teórico não se faz pelo “olhar”mas pela escuta. A escuta, diferente do olhar, não é um exercício semiológico pelo qual o clínico estabelece sentido aos sinais relacionando-os a quadros gerais. Não coloca sua atenção nos sinais de ruptura de regularidades ou normalidades, referidas a quadros nosológicos ou patológicos, por definição, pré-determinados. A escuta não refere os sinais recebidos a quadros gerais, mas é ela mesma  produtora de sentido. Semântica.

A escuta ao produzir sentido define um campo que é semântico. Campo semântico porque lugar caracterizado como o da arte de criar sentidos, sugerir significados.   As significações, aqui, não estão consolidadas. É um reino próprio, autônomo, de formação do sentido.

A clínica existencial não tendo um corpo físico para ser cuidado, tem perante si a tarefa de cuidar de algo que é difícil até de nomear adequadamente. Cuida-se do homem nas relações de seu existir espiritual, psíquico, mental. E para isso não há, nunca houve e não haverá um padrão estável, universal. Estará sempre referido aos contextos, às circunstancias, a cada modo próprio de viver. Nessa singularidade os sentidos estarão sempre se fazendo a cada instante. Não se consolidam num saber que tenha a possibilidade de permanecer ou se universalizar. E nem por isso deixa de ser saber. Até pelo contrário: é a condição de saber do singular. Nesse campo não se vai em busca do conhecimento universal. É o campo para o singular. É o campo do sentido, portanto, ligado à capacidade da escuta, da apreensão daquilo que vem do outro.

Na lingüística a semântica trata da relação das palavras com os objetos designados por elas. Na clínica se pretende relacionar o relato, a fala,  a expressão, com aquilo que a pessoa traz, com aquilo que vige nela. A pessoa procura ajuda, tem um assunto, que pode ser uma queixa  uma dor, um sofrimento, expectativas, esperanças, desesperanças, medos, angustia, ansiedade, tédio. Nesse assunto ela manifesta o que vive. Traz seu mundo. Muitas vezes mal sabendo o que vive, mal sabendo dele. O campo semântico da clínica é o da compreensão não o da explicação. Inconcluso, por definição.

Não é semiologia também por isso: não há “logia” possível, não há universalidade que essa tradição pressupõe. Não é ciência como lugar da certeza, não é filosofia como produção ou relação com o absoluto, ou voltado ao universal. É Ciência como agrupamento de saberes e conhecimentos desse campo que vão se dando por aproximação, é filosofia como saber  contextualizado, voltado, inclinado ao singular.

A clínica não é lugar do “fato” nem da “razão”. Neste campo o trabalho é o de lidar com a formação de sentidos. Sentidos que não precisam se consolidar em significações estáveis, como   “egos” ou “eus”. Qualquer estabilidade será provisória, precária. Mais do que admitir, lida-se com a impermanência, com o transitório. Loparic notará que mesmo “Freud deixaria claro q sua suposição de caminhos psíquicos fixos é apenas uma metáfora espacial…uma construção auxiliar, um ponto de vista meramente especulativo…” (Loparic pg 8) 

O campo semântico da clínica toma a linguagem como um dizer que diz e que pode provocar o trabalho da escuta. Um lugar que é de produção de sentido. Sentido humano, que é fugidio. Ainda que vigente, “real”.  Neste campo cria-se a possibilidade de contato com o que está em vigência no mundo do outro. Este mundo que ele produz incessantemente. Ainda que seja inaugurando a cada momento a ilusão da repetição.  A re-petição, a ação de pedir que permaneça o “re”, que “volte” o já vivido.   Os sentidos estão dados e estão para serem dados, de-postos e pro-postos. Estão estabelecidos e em estabelecimento, re-feitos, se re-fazem. Esse é o campo em que se trabalha. Aqui é onde a clínica se dá, onde ela se faz. O sentido daquilo que é vivido por uma pessoa só pode ser assimilado por uma outra pessoa no exercício do escutar, nessa disposição para a escuta do que vem do outro. Clinicar é esta prática de se dispor ao outro. O sentido não está num outro lugar, não se produz num outro lugar, está sempre em trânsito, exige o estar disposto a isto.

Sentido, escuta, disposição: não há um sem outro. O que caracteriza a disposição é voltar a estar disponível.

Um caminho clínico eticamente adequado deve possibilitar a apreensão dos sentidos que vêem do outro, mantendo simultaneamente esse caráter mutante, numa espécie de permanência temporária do que é essencialmente impermanente. Deve possibilitar a fixação, ainda que artificial de sentidos e manter abertos os canais de seus refazimentos. Cada experiencia clínica enfrenta este desafio à sua maneira. A circunscrição de um campo próprio, de um campo de natureza semântica traz a possibilidade de se tomar a clínica na plenitude de seu fundamento e de sua legitimidade. Um campo, que não é ciência nem filosofia. Próprio:  pensamento clínico

Bibliografia

Cordioli, Aristides Volpato – Psicofármacos, 2ª edição, 2000, Artmed, Porto Alegre, RGS, Brasil

e colaboradores

DSM IV – Manual Diagnóstico e Estatísticos de Transtornos Mentais, 4ª edição, 2000, Artmed, Porto Alegre, RGS, Brasil

Dunker, Christin I.L. – Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica, 1ª edição, 2016, Anablume , São Paulo, SP, Brasil

Hegenberg, Leônidas – Doença – Um Estudo Filosófico, 1ª edição, 2002, Ed Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Heidegger, Martin – Logos (Heráclito, fragmento 50), in Ensaios e Conferências, 2ª edição, 2002, Ed Vozes, Petrópolis, RJ, Brasil

Loparic, Zeljko – Thomas Lipps Uma Fonte Eesquecida  do Paradigma Freudiano – internet

Mezan, Renato – Tempo de Muda, in….São Paulo, SP, Brasil

Saussure, Ferdinand de – Curso de Linguística Geral,…..