SOBRE O OLHAR/OUVIR DA FILOSOFIA CLÍNICA

“Hipócrates* só se ateve à observação, desprezando todos os sistemas. Somente seguindo seus passos a medicina pode ser aperfeiçoada.”
Citando esse trecho da obra de Clifton**, M. Foucault*** inicia o VII capítulo de sua obra O Nascimento da clínica. Prossigamos com alguns excertos: “O olhar que observa se abstém de intervir: é mudo e sem gesto. A observação nada modifica: não existe para ela nada oculto no que se dá. (…) Na temática do clínico, a pureza do olhar está ligada a certo silêncio que permite escutar. (…) O olhar se realizará em sua verdade própria e terá acesso à verdade das coisas, se se coloca em silêncio sobre elas; se tudo se cala em torno do que vê. O olhar clínico tem essa paradoxal propriedade de ouvir uma linguagem no momento em que percebe um espetáculo. Na clínica, o que se manifesta é originariamente o que se fala.”
Na obra citada, Foucault procura responder à questão das transformações no conhecimento médico ocorridas no início do século XIX, especificamente de como se dava e se organizava esse conhecimento, ressaltando a ruptura com a até então medicina tradicional mais pelas mudanças em seus objetos, conceitos e métodos do que pela utilização de instrumentos técnicos mais avançados. O objeto da medicina vai afastando-se da doença como abstração voltando-se para o indivíduo enquanto corpo doente singular; a medicina voltada para o contexto social e a doença como questão política.
Poderíamos aqui discorrer sobre a necessidade urgente de as áreas médicas e de saúde em geral, assim como o Estado brasileiiro, debruçarem-se sobre esta obra e aprofundarem-se nessa reflexão resgatando as origens da medicina, desde Hipócrates, perpassando toda a história da saúde pública, com um olhar mais atento, como ressalta o autor, que leve a uma nova atitude perante o indivíduo e a coletividade/sociedade da qual faz parte em vistas de verdadeiramente promover a saúde e o bem estar como direito.
Mas nossa intenção aqui é ressaltar que a Filosofia Clínica-FC também bebe nessa fonte, que é a própria filosofia como fonte buscando uma prática clínica que se coloca diante do indivíduo numa atitude de olhar silencioso onde, num primeiro momento, tudo o que importa é ouvir a palavra do partilhante**** na sua “pureza”, abstendo-se de qualquer julgamento e/ou intervenção que interrompa ou direcione o seu discurso possibilitando a ele mostrar-se como é, como se vê, como se entende no contexto de sua historicidade.
E só então, apreendendo esse ser único que se apresenta à sua frente, o Filósofo Clínico terá condições de, junto a ele, construir novas linguagens, novas narrativas, novos modos de conceber-se a si e ao mundo, numa atitude filosófica, i. é, alguém que pense a sua existência e o seu existir com autonomia, considerando as circunstâncias e as consequências das atitudes que tem ou venha a ter em sua trajetória.
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* Médico e filósofo grego (460-370 a.C.)
** Médico inglês (+1736)
***Filósofo francês (1926-1984)
****Como é denominada, em FC, a pessoa que procura a terapia filosófica, entendendo que esta vem partilhar com o terapeuta a sua história e a(s) questão(ões) que a incomodam.
Paulo Roberto Grandisolli
 
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