A FILOSOFIA CLÍNICA E OS JOGOS DE LINGUAGEM

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), em sua obra Investigações Filosóficas, afirma que a linguagem pode gerar superstições e que é papel da Filosofia questionar, esclarecer e neutralizar os efeitos dessas superstições sobre o pensamento. Também aqui ele cunha a expressão “jogos de linguagem” e que é preciso abrir a mente e os olhos para ver como a linguagem funciona, qual a sua função prática, ou seja, é no uso cotidiano das palavras, da linguagem, que podemos apreender o que elas querem dizer, num conjunto de “perplexidades” que devem não ser interpretadas, mas trazidas à luz, numa “luta contra o enfeitiçamento da linguagem”.
Em Filosofia Clínica, essa proposição faz todo o sentido, pois o Filósofo Clínico coloca-se diante do partilhante para ouvir a narrativa de sua historicidade. E, ao contar sua história, a pessoa usará de jogos de linguagem que lhe são próprios, contextualizados e permeados de outros tantos jogos de linguagem que fazem parte de seu mundo.
Acontece, comumente, em nossa experiência de vida, trazermos “n” conceitos, cristalizados em nossa mente* e que podem nos “enfeitiçar”, fazendo com que cheguemos a “conclusões” nem sempre as mais oportunas para as situações que vivenciamos e para as questões que nos incomodam.
Daí que, ouvindo atentamente a narrativa, o Filósofo Clínico, também ele portador de jogos de linguagem dos quais deverá momentaneamente “abrir mão”, terá uma atitude de “entrar”** no(s) jogo(s) de linguagem do partilhante para, numa postura filosófica, ajudá-lo a ver a quais armadilhas conceituais*** essa linguagem pode levá-lo a pensar e a posicionar-se de modo, às vezes, não os mais adequados às situações que vivencia.
Dessa forma, podemos dizer que a Filosofia Clínica contribui para uma permanente ressignificação/desconstrução/construção de jogos de linguagem que sejam mais condizentes com o mundo em que vivemos, proporcionando melhor comunicabilidade e relação entre os seres****.
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*Em FC podem ser associados aos tópicos “pré-juízos” e/ou “termos agendados no intelecto”, que são juízos pré-estabelecidos e noções que se firmam em nossa mente, conduzindo nosso raciocínio.
**Aqui o Filósofo Clínico usará do sub-modo “recíproca de inversão”, que pode traduzir-se por “entrar no jogo de linguagem” do partilhante para melhor apreender sua narrativa.
***Tópico da Estrutura de Pensamento-EP: como diz o texto, conceitos, ideias que podem levar a paralisar e/ou a tomada de decisões menos adequadas às situações vividas.
****Ressaltamos a comunicação entre “os seres” referindo-se não só às pessoas, mas a todas as formas de vida da natureza, da qual somos parte.
Paulo Roberto Grandisolli

FILOSOFIA CLÍNICA – HISTORICIDADE

Permitam-nos “brincar” com a palavra historicidade: HISTORIcidade – hISTOricidade – historiCIDADE – historicIDAde – historicIDADE. Primeiramente vamos ver os conceitos:
HISTÓRIA: substantivo feminino. Conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade e sua evolução, segundo o lugar, a época, o ponto de vista escolhido.
ISTO: pronome denominativo. Indica algo (coisa) que se acha espacialmente mais perto de quem fala, ou, temporalmente, acontecimento recente, ou que está sendo ou será em seguida dito ou referido por quem fala.
CIDADE: substantivo feminino. Aglomeração humana localizada numa área geográfica circunscrita e que tem numerosas casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou a atividades culturais, mercantis, industriais, financeiras e a outras não relacionadas com a exploração direta do solo; urbe.
IDA: substantivo feminino. Ato ou movimento de ir(-se); trajeto que termina onde ou quando tem início o retorno a seu ponto de partida.
IDADE: substantivo feminino. O tempo de vida decorrido desde o nascimento até uma determinada data tomada como referência.
Essa “brincadeira” é tão somente para dizer que a Filosofia Clínica, enquanto terapia existencial, só faz e tem sentido quando escuta atentamente e entende a historicidade da pessoa que procura a clínica. E também para dizer que essa história é o isto que se apresenta para o terapeuta no momento em que o partilhante, permitam o trocadilho, partilha sua vida com o Filósofo Clínico. E esse isto, essa história, aconteceu/acontece numa cidade, i. é, num determinado lugar, com todas suas características e circunstâncias, feitas de idas e vindas, numa determinada idade, ou seja, num determinado tempo.
E a clínica, melhor dizendo, o processo clínico, torna-se também (ou pode tornar-se) essa ida, essa busca do partilhante, por um novo olhar, um novo sentir, um novo pensar, um novo posicionar-se diante da sua história pessoal e coletiva, enquanto um ser de relações, em constante construção de seu modo de ser e estar no mundo.
Obs.: Vale dizer que os conceitos acima apresentados, retirados do Dicionário HOUAIS da Língua Portuguesa, Ed. Objetiva, 2001, são conceitos técnicos, mas que podem adquirir um significado diferente e/ou complementar para cada pessoa, considerando suas ideias, seus pensamentos, seus afetos, seus sentires…
Paulo Roberto Grandisolli

FILOSOFIA CLÍNICA E LITERATURA

Uma das fontes de conhecimento daquilo que se convencionou chamar “condição humana” é a literatura. E a Filosofia, sendo também uma literatura, está, desde seu início, buscando “dizer” a condição humana de seu jeito próprio. Mas não existe “a” Filosofia. Ela, a Filosofia, é vária. Enquanto conceito, podemos dizer que “a” Filosofia é aquela que, buscando uma leitura e tendo um olhar totalizante do mundo, vai fundo, às raízes das questões que se lhe colocam e entende tudo como um processo constante de desconstrução/construção de saberes, de modos de ser e estar no mundo”, utilizando-se, para isso, de método próprio. Mas assim como são várias as filosofias, várias são as literaturas, as leituras, os olhares, os modos de ser e estar no mundo.
E a Filosofia Clínica-FC não foge desses caminhos, pois também ela tem se tornado uma literatura, uma leitura, um olhar, um modo de ser e estar no mundo, na medida em que se constrói, não se dá por acabada. Se assim fosse, não seria Filosofia, não seria Clínica. Tudo é um processo.
Mas, justamente por ser Filosofia, justamente por ser Clínica, é que a FC sabe-se parte de um conjunto onde, nesse caso, a Literatura, ou melhor, as Literaturas, têm muito a dizer da “condição humana” e, por isso, a aproximação é vital, pois pode nos levar a repensar, a entender e levar a entender que o “devir”* acaba por tornar-se a própria “condição humana”, i. é, o humano, individual e coletivamente falando, é uma constante construção, processo. “Navegar é preciso, viver não é preciso”, como já diziam os antigos navegadores nos idos tempos das “invasões e conquistas” de “novos mundos”, frase que celebrizou-se na voz e na literatura de Fernando Pessoa**.
Enquanto concepção e prática filosófica, a FC, sendo uma terapêutica existencial, constrói-se como aquela que ouve a narrativa, “ouve o texto” do partilhante e, fazendo uso da literatura filosófica, bem como de outras literaturas, mas, principalmente com sensibilidade, com cuidado, com conhecimento, com método próprio, irá contribuir para que o indivíduo, o grupo, a organização, “reescrevam seus próprios textos”, i. é, reelaborem seus modos de sentir, de pensar, de posicionar-se, de ser e de estar no mundo.
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*Devir: verbo intransitivo :1vir a ser; tornar-se, transformar-se, devenir; substantivo masculino Rubrica: filosofia. 2 fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e transforma todas as realidades existentes; devenir, vir a ser. – Dicionário eletônico Houais 2009.3
**Escritor e poeta português, 1888-1935.
Paulo Roberto Grandisolli

FILOSOFIA CLÍNICA E SAÚDE

Em sua obra Uma História da Saúde Pública, de 1958, George Rosen (1910-1977), médico e pensador estadunidense, destaca no prefácio da edição norte-americana* que: “A função de proteger e promover a saúde e o bem-estar dos cidadãos é uma das mais importantes do Estado moderno, e representa a consubstanciação de uma série de considerações políticas, econômicas, sociais e éticas. Mas desde quando essa preocupação com a saúde do grupo existe? E como se relaciona com a vida de cada cidadão, de cada indivíduo? A história da comunidade e de seus problemas de saúde nos ajuda a responder a essas perguntas.” E continua: “A História, como memória do grupo humano, ajuda a moldar, para o bem e para o mal, a consciência coletiva, e desperta a atenção do indivíduo para o mundo, mesmo o de ontem e o de amanhã.”
Poderíamos considerar que as questões levantadas são pertinentes e atualíssimas, dado que em nosso contexto latino-americano e brasileiro**, em especial, este ainda é um dos prementes desafios que enfrentamos, tendo em vista que, mesmo sendo esse direito garantido pela Constituição Brasileira***, as legislações vigentes ainda não foram efetivamente assimiladas e regulamentadas, imperando os interesses das grandes corporações médicas e da indústria farmacêutica em particular. Mas essa é uma outra abordagem, embora fazendo parte da mesma história, para a qual faz-se necessária constante reflexão e mobilização da sociedade e seriedade por parte dos políticos e governantes.
Também essas mesmas questões fazem parte do universo da Filosofia e da Filosofia Clínica-FC em particular, ao rol das quais poderíamos acrescentar outras: O que é saúde? O que é doença? O que a historicidade de uma pessoa e/ou de um coletivo tem a nos revelar sobre seu estado de saúde/doença? O que vivenciam uma pessoa, um coletivo, serviços e profissionais de saúde, uma sociedade em situações limítrofes da existência? Como munir-se, interior e exteriormente, de meios que possam contribuir para o enfrentamento dessas questões/inquietações/angústias?
Falando especificamente de FC e Saúde, podemos dizer que, tanto no atendimento clínico individual como num trabalho de consultoria e/ou de análise de clima organizacional, essa modalidade de terapia existencial tem muito a contribuir, especialmente visando construir junto às organizações de saúde ambientes e relações mais saudáveis, tão necessárias neste “universo” que exige de todas as pessoas envolvidas – administradores, profissionais, clientes, parceiros – uma postura de silencio para a escuta, atenção e respeito às histórias e às dores, conhecimento e perspicácia nos diagnósticos, conhecimento e técnica no tratamento, mas, fundamentalmente, uma atitude, que poderíamos chamar de atitude filosófica, de profunda humanidade para os seres humanos que somos e para aqueles que diante de nós se apresentam.
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*Ed. UNESP, 2ª ed., 1994
** Vale ressaltar as conquistas dos movimentos sociais que culminaram na Constituição Brasileira de 1988 e a na lei 8080/1990 que regulamenta o SUS-Serviço Único de Saúde e que no atual governo tem sofrido graves desmontes, seguindo a cartilha do neoliberalismo.
***”A saúde é um direito de todos e dever do Estado.” – Constituição Brasileira – 1988, artigos 196 a 200.
Paulo Roberto Grandisolli

SOBRE O OLHAR/OUVIR DA FILOSOFIA CLÍNICA

“Hipócrates* só se ateve à observação, desprezando todos os sistemas. Somente seguindo seus passos a medicina pode ser aperfeiçoada.”
Citando esse trecho da obra de Clifton**, M. Foucault*** inicia o VII capítulo de sua obra O Nascimento da clínica. Prossigamos com alguns excertos: “O olhar que observa se abstém de intervir: é mudo e sem gesto. A observação nada modifica: não existe para ela nada oculto no que se dá. (…) Na temática do clínico, a pureza do olhar está ligada a certo silêncio que permite escutar. (…) O olhar se realizará em sua verdade própria e terá acesso à verdade das coisas, se se coloca em silêncio sobre elas; se tudo se cala em torno do que vê. O olhar clínico tem essa paradoxal propriedade de ouvir uma linguagem no momento em que percebe um espetáculo. Na clínica, o que se manifesta é originariamente o que se fala.”
Na obra citada, Foucault procura responder à questão das transformações no conhecimento médico ocorridas no início do século XIX, especificamente de como se dava e se organizava esse conhecimento, ressaltando a ruptura com a até então medicina tradicional mais pelas mudanças em seus objetos, conceitos e métodos do que pela utilização de instrumentos técnicos mais avançados. O objeto da medicina vai afastando-se da doença como abstração voltando-se para o indivíduo enquanto corpo doente singular; a medicina voltada para o contexto social e a doença como questão política.
Poderíamos aqui discorrer sobre a necessidade urgente de as áreas médicas e de saúde em geral, assim como o Estado brasileiiro, debruçarem-se sobre esta obra e aprofundarem-se nessa reflexão resgatando as origens da medicina, desde Hipócrates, perpassando toda a história da saúde pública, com um olhar mais atento, como ressalta o autor, que leve a uma nova atitude perante o indivíduo e a coletividade/sociedade da qual faz parte em vistas de verdadeiramente promover a saúde e o bem estar como direito.
Mas nossa intenção aqui é ressaltar que a Filosofia Clínica-FC também bebe nessa fonte, que é a própria filosofia como fonte buscando uma prática clínica que se coloca diante do indivíduo numa atitude de olhar silencioso onde, num primeiro momento, tudo o que importa é ouvir a palavra do partilhante**** na sua “pureza”, abstendo-se de qualquer julgamento e/ou intervenção que interrompa ou direcione o seu discurso possibilitando a ele mostrar-se como é, como se vê, como se entende no contexto de sua historicidade.
E só então, apreendendo esse ser único que se apresenta à sua frente, o Filósofo Clínico terá condições de, junto a ele, construir novas linguagens, novas narrativas, novos modos de conceber-se a si e ao mundo, numa atitude filosófica, i. é, alguém que pense a sua existência e o seu existir com autonomia, considerando as circunstâncias e as consequências das atitudes que tem ou venha a ter em sua trajetória.
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* Médico e filósofo grego (460-370 a.C.)
** Médico inglês (+1736)
***Filósofo francês (1926-1984)
****Como é denominada, em FC, a pessoa que procura a terapia filosófica, entendendo que esta vem partilhar com o terapeuta a sua história e a(s) questão(ões) que a incomodam.
Paulo Roberto Grandisolli
 
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PARA QUE E COMO PROCEDE A FILOSOFIA CLÍNICA-FC

Sendo a FC uma terapêutica que faz uso do conhecimento filosófico construído ao longo da História, mas que primeiramente parte da historicidade, i. é, da história de vida de cada pessoa, tem por objetivo contribuir para que o partilhante, narrando a sua história e repensando seu modo de ser e estar no mundo, construa outros caminhos possíveis para sua vida.
Partilhante é como denominamos a pessoa que procura a terapia filosófica, por entender que ela vem partilhar com o terapeuta a sua história e este partilhará com ela seu conhecimento, através de uma relação de respeito e de método próprio para atingir o objetivo proposto.
Para tanto, o Filósofo Clínico, tomando conhecimento e propondo divisões e enraizamentos na historicidade da pessoa, irá perceber como está organizada sua Estrutura de Pensamento-EP, seu modo de pensar, de ser e de estar no mundo.
Com base nisso, como já dito no início, o terapeuta fará uso do conhecimento filosófico construído ao longo da história e do pensamento de filósofos/as que abordaram as questões da existência para ajudar o partilhante no entendimento de como funciona sua EP e das maneiras informais que este usa para trabalhar as questões que traz para a clínica. O Filósofo Clínico usará de procedimentos clínicos, chamados de sub-modos, de acordo com a EP do partilhante e que lhe são familiares, mesmo que de modo não muito claro para este, mas que funcionarão como molas propulsoras no repensar e no reestrururar seu pensamento e reelaborar suas ideias.
Entendemos que essa é uma abordagem clínica-terapêutica por resgatar os conceitos e significados dos termos gregos klinos e therapeo, o primeiro significando inclinar e o segundo, aquele que cuida, sendo papel do Filósofo Clínico, inclinar-se sobre a história de vida do partilhante, numa atitude de respeito e cuidado para com a pessoa.
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Gláucia Rita Tittanegro
[FClínica/Inst Packter; docPUG/Roma; pós-doc FSP/USP] professora universitária, pesquisadora em saúde pública, filósofa clínica, consultora
Paulo Roberto Grandisolli
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/UCMG; GSS-FSP/USP] filósofo clínico, professor, administrador serv saúde, consultor

GRUPO DE ESTUDOS E DE FORMAÇÃO EM FILOSOFIA CLÍNICA – GE/F-FC

O que é?
Espaço de estudo, conhecimento, aprofundamento e troca de saberes/práticas em Filosofia Clínica-FC
O que se propõe:
Aproximar pessoas interessadas em conhecer, estudar, aprofundar e trocar saberes/práticas em FC.
Embora seja uma atividade independente do Curso EAD de Formação em FC , o GE/F-FC, pretende fornecer base de apoio e de introdução no universo da FC para pessoas interessadas em obter a Formação em FC e a Habilitação à Clínica.
Temas a serem abordados
Filosofia como Atitude Filosófica / Introdução à FC: o que é e método / Historicidade / Exames Categoriais / Tópicos da Estrutura de Pensamento-EP / Sub-modos: enquanto modo informal de tratar as questões do cotidiano e enquanto modo formal utilizado em clínica / Estudo de Casos, Leitura e aprofundamento de textos filosóficos, entre outros…
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Gláucia Rita Tittanegro
[FClínica/Inst Packter; docPUG/Roma; pós-doc FSP/USP] professora universitária, pesquisadora em saúde pública, filósofa clínica, consultora
Paulo Roberto Grandisolli
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/UCMG; GSS-FSP/USP] filósofo clínico, professor, administrador serv saúde, consultor

CURSO DE FORMAÇÃO EM FILOSOFIA CLÍNCIA-FC E ALGUNS TEMAS E FILÓSOFOS QUE A FUNDAMENTAM

O objetivo principal é possibilitar à pessoa uma ampla compreensão da Filosofia Clínica, através da leitura e discussão de textos dos principais filósofos que formam a base de seu pensamento. Além disso, mostrar como esse conhecimento é articulado para formar a dinâmica de funcionamento desta metodologia tão própria e rigorosa de terapia existencial. E, ainda, possibilitar um proveito pessoal pelo diálogo constante com visões de mundo muito diversas, a partir dos textos filosóficos e do pensamento e relatos das práticas clínicas.
O processo se dará com a leitura e discussão, ao longo do Curso, de alguns fragmentos de Heráclito e Parmênides, um diálogo de Platão, um texto de Aristóteles; da concepção sobre o tempo de Sto.Agostinho; da constituição da ideia de sujeito e de ciência em Locke, Hume e em Descartes e a crítica e o desdobramento feito por Kant; a ruptura de Schopenhauer com a noção de representação e a crescente importância da linguagem com Frege, Saussure e Wittgenstein e da história com Dilthey e a tradição marxista e da vertente fundamental das fenomenologias de Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger, Gadamer e Lévinas.
Além disso, se tratará de modo sumário as principais referências psicopatológicas ligadas às correntes da psicologia e da psiquiatria (DSM 4 e 5). E se buscará apresentar, também brevemente, como trabalham as clínicas do inconsciente com Freud, Jung, Bion, Lacan e as variantes clínicas da fenomenologia com Jaspers, Medard-Boss (Daseinsanalyse) e Deleuze (Esquizoanalyse).
Para ampliar a compreensão serão escolhidos pequenos textos de Foucault, Derrida, Ricoeur e Agamben e de alguns teóricos clínicos brasileiros, como Luís Cláudio Figueiredo, Renato Mezan, Christian Dunker e daqueles ligados a FC como Lúcio Packter, Hélio Strassburger, José Maurício de Carvalho, Will Goya, Marta Claus e Gustavo Bertoche. O conteúdo específico do método da Filosofia Clínica será abordado a partir das leituras dos filósofos. Com isso se pretende um modo orgânico de aprendizado e compreensão, num incessante ir e vir do pensamento ao método, do texto lido ao aspecto tópico específico, da ideia inspiradora à questão prática e mesmo às vivências pessoais.
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Cláudio Fernandes
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/USP] terapeuta, filósofo clínico, psicanalista

PARA QUE FILOSOFIA

A existência e o modo de ser e estar no mundo são inquietações constantes e permanentes em nossa vida. Assim é para toda e qualquer pessoa? Só uma reflexão apurada e um aproximar-se do mundo do outro nos poderá dizer sim ou não.
Desde seus primórdios, na Grécia Antiga, a Filosofia nasce com essa e outras indagações acerca do cosmos, da vida no cosmos e, principalmente, da vida humana como parte desse cosmos.
Questões clássicas como “de onde viemos?”, “onde estamos?”, “para onde vamos?”, para além do senso comum, buscam um maior conhecimento do que há em nós, do que somos e do significado de nossa existência, vendo-nos como seres “à parte” para uns ou vendo-nos como “partes integrantes” desse cosmos para outros.
Para isso a Filosofia: pode levar-nos para além do senso comum, daquilo que “todo mundo pensa”, a enraizar nosso pensamento, a elaborar ideias e conceitos sobre a existência na sua totalidade, contribuindo para um maior entendimento do que somos e auxiliando-nos nas questões do cotidiano.
O estudo da História da Filosofia e do pensamento construído por pensadores e pensadoras, filósofos e filósofas ao longo do tempo é um dos caminhos possíveis para tal.
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Gláucia Rita Tittanegro
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A condição do filósofo: uma paráfrase sobre Nicolaus Berdiaeff

Marcelo B. Oliveira **

I – Considerações Históricas

Em todas as épocas e civilizações em que se acentuou o cultivo específico do conhecimento, a condição do pensador apresentou-se um tanto trágica. Eis a observação do filósofo Berdiaeff, ao analisar o confronto entre a filosofia, a religião e as ciências, ao longo da história1.

O filósofo, de modo geral, nunca foi bem aceito socialmente, ao menos que se tenha conformado ao sistema ideológico dominante, renunciando à sua condição de pensador. Sua condição essencial tem sido marcada por uma atmosfera bastante densa de ataques, ora vindos do poder político do Estado, ora das elites religiosas, uma vez que esses segmentos, invariavelmente, são os promotores das instâncias de controle social.

Nos primeiros tempos de estruturação das filosofias ocidentais, entre os gregos, por exemplo, a inimiga da filosofia fora principalmente a religião. Não esquecendo, evidentemente, o fato de que esta se encontrava aliada aos poderes políticos sustentadores das normas de comportamentos aceitas como ideais, naquele contexto.

Esse confronto se prolongou até nossos dias, lembrando que tem sido acirrado, num outro aspecto, pela corrida das ciências empíricas, ao reivindicarem seu status próprio, “desligando-se” daquela que lhes dera origem – a própria Filosofia.

Com bastante lógica este último evento se fez necessário. Disto nós somos conscientes, hoje; mesmo vendo como parecem interesseiros o distanciamento e a separação entre a Filosofia e as ciências particulares, em última instância.

Sabemos que o conhecimento filosófico foi, primordialmente, o saber que englobava em sua competência todas as áreas do conhecimento. Porém, a progressiva consciência da identidade de seus métodos e a delimitação desses campos cognitivos os tornaram independentes, possibilitando o surgimento das diversas ciências, que exigiram, por sua vez, sua relativa autonomia. A Filosofia, desde então, pressionada pelos estreitos e vigiados corredores das instituições religiosas, desde o período do teocentrismo medieval e inícios da modernidade, foi apelidada como a “serva da teologia”; embora, em parte, haja acontecido o contrário; pois a teologia é que se submeteu às categorias filosóficas, para se legitimar. De saber totalizador que havia sido, no edifício da sabedoria antiga, passou à posição de especulação de segundo plano. Oprimida, aparentemente inútil e sob acusação de atividade diletante, face aos avanços das ciências empíricas, o certo é que a Filosofia sempre esteve presente na própria lógica dos demais universos do saber, principalmente na pessoa do filósofo, que questiona os próprios valores e possibilidades da ciência e da cultura em geral.

No auge da cultura aristocrática da Grécia, a conduta do filósofo era vigiada, ameaçada, temível, por ser alguém capaz de expressar racionalmente a sua desconfiança relativamente às instituições político-religiosas e a colocar em xeque tudo que se apresentava com ar de certeza inabalável. Não é sem motivo que vemos a casa de Pitágoras incendiada, Sócrates condenado a beber cicuta; Aristóteles, Ockam, Leibniz, Hume, Locke e Marx, em apuros terríveis, por terem inquietado as oligarquias de seu tempo. Assim como contemporâneos nossos, ainda hoje exilados e ameaçados pelos anátemas da autossuficiência do Estado e das Igrejas, desde a “Santa Sé” ao “Santa Fé”2. Porque enxergaram outras nuances da verdade e não se limitaram à estreiteza dos horizontes das convenções políticas vigentes. Melhor dizendo, porque questionaram o poder. Enquanto isto, percebemos, por outro lado, pensadores muito bem instalados, como Comte, Hegel, apoiados pelas hierarquias do Estado, sem tanta perseguição, Por que? A resposta soa fácil. Eles não incomodaram muito as elites.

O filósofo sempre teve um caminho estreito e espinhoso a comprimir a largueza de sue passos. De um lado, comprimido pela ciência; de outro, pela religião e pelo Estado. Como constatou Berdiaeff, “a Filosofia é a parte menos defendida da cultura… Não goza, em nenhum grau, do que se chama o prestígio da popularidade”3. Até mesmo alguns pensadores a usaram como instrumento para a destruição do próprio filosofar, como foi o caso de August Comte, tendo contraditoriamente desembocado noutra filosofia e, o que foi muito pior, numa espécie de religião da ciência.

A maneira como as sociedades tratam os pensadores nos dá a sensação de que não temos nenhuma incumbência social. Sobram ao filósofo apenas os estreitos e vigiados corredores de algumas faculdades. E “a própria universidade não lhe dá asilo senão na condição de que divulgue o menos possível a sua própria filosofia, e de que se encerre geralmente na história da filosofia e nas doutrinas dos outros filósofos”4. Tal foi a crítica empreendida, há poucas décadas, aos filósofos do século XX, por Gabriel Marcel e Berdiaeff, e que ainda não perdeu totalmente a sua atualidade.

Este estreitamento de espaço geográfico-político, mais sombra que reflexo da ausência de espaço de liberdade, dificulta o cultivo da filosofia como atividade especificamente reconhecida.

A história nos mostra que o ataque mais violento suportado pela Filosofia adveio-lhe da religião, desde a antiguidade. O assassinato de Sócrates constituiu o símbolo de muitos similares e um exemplo terrível da crueldade que integra o poder das elites de todos os tempos. Não deve ser visto apenas como um fato isolado no mundo grego. Em “A Apologia de Sócrates”, encontramos a acusação de que o pensador ensinava a rejeição dos deuses. Na realidade, ele apontava as defasagens e o ocaso da cultura aristocrática em decadência; pois sabemos que, na Grécia antiga, política e religião estavam a serviço do poder, assim como no mundo romano dos primeiros séculos da era cristã.

Em fins da era medieval europeia, no contexto da cristandade ocidental, surgiu a incandescência das fogueiras da Inquisição (cujos resquícios duram até hoje) queimando filósofos e cientistas, só porque não pensavam como os prepotentes da hierarquia político-religiosa da época. Neste contexto ideológico, identificava-se uma estrutura histórica com a Verdade, por falta de consciência histórica e porque o ânimo dos primeiros cristãos havia arrefecido, desde as sutis manobras de Constantino e Teodósio, que fizeram o clero romano curvar-se diante de ofertas econômicas, quais adoradores de Baal. E o Cristianismo, de religião que trouxe a lume a consciência da dignidade dos seres humanos, fora transformado em “religião lícita”. Em lugar do aforismo “a fé busca a razão” passou a valer “a fé mata a razão”. Desde então, a humanidade passou a praticar uma verdadeira coivara de homens e mulheres inteligentes, como Hipácia de Alexandria, Giordano Bruno, Savonarola, Joana D’Arc, ardendo nas grelhas do “Santo Ofício” e sob tortura militar, pelo preço de suas descobertas e da liberdade de pensamento, frente aos dogmatismos morais erigidos nos palácios. À parte o contexto moderno que assassinou Rosa Luxemburgo, Trotski, Politzer e outros. Como não existe mais a prática da fogueira, os atuais inquisidores usam a tortura psicológica da punição com o desemprego e o silêncio forçado5.

II – Nossa Epocalidade

Nestes inícios do século XXI, não sejamos ingênuos em demasia para pensar ter havido evolução linear na história do pensamento humano, concebida vulgarmente em termos de “história universal”, como se fosse algo homogêneo. A violência atribuída ao mundo antigo perdura nas sociedades contemporâneas. Se não de modo idêntico, mas disfarçada ou em outras modalidades, dependendo da classe dominante que exerce o controle social máximo como classe dirigente; seja o clero, no caso das religiões, sejam os militares, ou ambos, em caso de teocracias ou concordância de interesses de ambas as facções. Por menos que pareça verdade, mas ainda vigora o imperialismo religioso e militar. Inclusive, muito semelhante ao de Roma antiga. Basta que observemos as nossas ruas invadidas pela cavalaria, em plena metrópole; o que é exatamente a herança da violência policial daquela babilônia. Vivemos em plena época de grito em defesa dos direitos humanos, que se acirrou desde 1970. Entretanto, assistimos a sanções e censuras ao pensamento científico-filosófico, da parte dos escombros das ditaduras militares, fazendo ressurgir práticas fascistas. O inacreditável é fato constatável: a humanidade ainda não se libertou do “index librorum prohibitorum”, apesar do acesso às tecnologias da internet! A censura midiática é usada pra dificultar o pensamento reflexivo. Atualmente, com ênfase na educação, pela censura ao ensino de filosofia e sociologia, como ocorre em todos os regimes políticos autoritários. As elites se acham no poder majestático de dizer o que o povo deve ou não deve saber. A produção cultural é tratada como caso de polícia. Pensar e agir além dos sistemas funcionalistas e dos padrões da ideologia capitalista ocidental é arriscar-se. Começar novas formas de relacionamento afetivo, além da monogamia jurídica ocidental, é considerado desvio, desequilíbrio ou patologia; apesar de todos os esforços e conquistas recentes no campo das lutas pela diversidade cultural. Misoginia e homofobia aparecem como integrantes ideológicos dos regimes e golpes juridicofascistas atuais, internacionalmente. No Brasil, em pleno 2017, vemos o MEC permitindo que parlamentares fundamentalistas autorizem arrancar dos livros didáticos as páginas referentes à discussão sobre questões de gênero e sexualidade, sob o pretexto ilegal e absurdo de uma “escola sem partido”, nomeado como neutralidade; uma versão vulgar do pior positivismo fascista, proposto por setores religiosos que rejeitam a laicidade do Estado.

Nesse contexto encontra-se comprimida a Filosofia. Banida, cassada e caçada (em ambos os sentidos), sob a acusação de subverter as pessoas em relação ao dogmatismo político e religioso. E o pretexto para tal é, de um lado, o refúgio religioso, a acusação de materialismo ou ateísmo; do outro, a “ameaça do comunismo”, velhos mecanismos de defesa das elites reacionárias para justificarem o seus status quo.

Em quase todos os países da América Latina, onde a miséria cresce, como resultado da secular exploração colonial e capitalista, os setores fascistas das Igrejas e do Estado, portanto, ainda apelam para o anticomunismo; principalmente as igrejas evangélicas originárias dos Estados Unidos, como método antigo para impedir a educação democrática das massas populares e sua organização. Impõem o medo e a proibição do livre pensar que desmitificaria a idolatria do capitalismo aqui instalado. Como a Filosofia pode questionar as bases do poderio dessas elites acostumadas no comando ideológico das populações, a solução é condenar, apelar para ao anátema e vedar os processos de libertação e independência dos grupos mais conscientes da insuficiência desses mecanismos fundamentalistas.

Após tantas voltas e revoltas na história da filosofia, ainda se teme a crítica, o questionamento e a reflexão indagadora. Os grupos que pensam deter o controle das sociedades, o controle do curso da história, comportam-se, na maneira sábia da expressão filosófica popular, como quem quer “tapar o sol com uma peneira”. Isto porque, mais cedo ou mais tarde, alguma ruptura ideológico-política acontecerá. A linguagem da sabedoria popular expressa esta possibilidade dizendo: “um dia a casa cai”, “um dia macaco é gente”.

Fato curioso é que os teólogos sempre gozaram de certa segurança institucional. Exceto, evidentemente, quando questionaram o dogmatismo institucional de suas religiões. O filósofo, não. Jamais recebeu qualquer apoio, porque a filosofia nunca se institucionalizou de modo permanente. Encontra-se solto, entre os olhares da ciência, da religião e, atualmente, enfrentando o autoritarismo do Estado neoliberal militar. Caso não seja um pensador a serviço da ideologia das classes dominantes, do tipo que fica obediente, à sombra da árvore do poder, falando para ser admirado e encantando plateias. Em se tratando de um pensador crítico, que tem coragem suficiente para se distanciar das “proteções” oferecidas pelas elites, como bolsas, viagens, ou os chamados cargos de confiança, pelas chefias e espionagens.

Desse modo, o filósofo crítico é perseguido e marginalizado pelas elites no poder, quando busca cumprir a tarefa de construtor da história, ao catalisar as aspirações de sua contemporaneidade. Sua atividade é colocada “entre parêntesis”, em suspense, ou suspeita. Nem, ao menos, lhe conferem uma competência profissional, como constatou o pensador Berdiaeff: “filósofos e filosofia têm contra si os homens de religião, os teólogos, membros do clero e simples fiéis , os sábios e todos os especialista, os homens políticos e os organizadores, os homens de Estado, conservadores e revolucionários, os engenheiros e os técnicos, os artistas, enfim, a turba. Os filósofos devem ser, ao que parece, os que não têm nenhuma importância na vida política e econômica. No entanto, os homens que detêm ou brigam com o poder, os que desempenham ou querem desempenhar um papel no Estado e na economia social, parecem querer-lhe mal, não se sabe de que; não podem perdoar à filosofia parecer-lhes inútil (…). Ignora-se o aparelho técnico da filosofia, mas não se hesita empregar o termo filosofia como uma expressão de troça ou de censura. No uso corrente, a palavra metafísica é quase uma injúria (…). Que a insegurança seja a condição vulgar da filosofia é o que a experiência obriga a constatar… Em todo filósofo há sempre qualquer coisa de Spinoza e do seu destino. Por essa insegurança social, a personalidade de seu pensamento, a situação do filósofo aproxima-o da vocação profética. O profeta não está mais protegido do que ele; e está tanto mais sujeito à perseguição quando se preocupa principalmente com os destinos da sociedade e do povo. É por isso que, de todos os tipos de filosofia, é a do tipo profético a que está mais desarmada, a menos tolerada, a mais isolada”6. Apesar da sua tragicidade, e por causa dela, esse texto de Berdiaeff merece ter reconhecida a sua objetividade histórica e a sua beleza poética.

Em contraste, é inegável a função da filosofia como força propulsora de todos os movimentos culturais, uma vez que se constitui como o próprio impulso do agir humano na indissociável unidade vital entre teoria e prática. Desde o mais simples método de conhecimento até a mais complexa pesquisa científica, a comunicação se torna possível graças à reflexão filosófica subjacente ao trabalho de sistematização dos saberes. Se assim não fosse, por que seria tão vigiada e excluída?

Todo sistema político, todo posicionamento ante um desafio histórico, fundamenta-se numa mundivisão, numa filosofia, numa concepção de mundo e de homem. Toda organização humana, como projeto social e histórico, supõe uma manifestação racional e uma fundamentação por meio dos princípios da racionalidade. Subjacente a qualquer sistema social encontra-se uma ideologia, um conjunto de princípios e valores racionalizados e explicitadores de sua razão no existir humano. E a pessoa do filósofo faz-se necessária a fim de exercer uma ação crítico-judicativa, para mostrar a incoerência ou coerência desse projeto em relação ao próprio ser humano no seu irrenunciável face-a-face com outros, no mundo. Com o filósofo, nesta atitude de julgamento quase ninguém ousa solidarizar-se. Em geral, parece ficar sozinho, pouco reconhecido. Sua incumbência é a de pensar a existência, no mundo, com a única certeza de que é possível conhecer, julgar, detectar contradições e apontar horizontes de ultrapassagem em todos os domínios do saber aplicado, posto que o filosofar se põe a si mesmo como objeto de conhecimento, e nenhuma ciência o faz tão radicalmente como a própria Filosofia.

O filósofo que não se deixa confundir e não se torna cúmplice com a mesmidade sistêmica da ideologia dos segmentos sociais dominantes não é bem aceito, justamente porque sua atitude criticizadora não admite fronteiras nem entraves. Pela sua práxis, aponta as ambiguidades dos sistemas pretensamente acabados; localiza as contradições, desenterra os conflitos abafados, desmascara, desmistifica, quebra a aparente rigidez e vislumbra possíveis mudanças sociais. Conscientiza-se ajudando os outros a se conscientizarem. Nisto está a sua função histórico-pedagógica. Não existe autoridade externa para o filósofo crítico. Na filosofia a autoridade se constitui pela coerência do próprio pensar condizente com as exigências do presente histórico. Por isso, o pensador que não se torna obediente ao sistema opressor é sempre perseguido por aqueles que se beneficiam da segurança estrutural e material das oligarquias. Tal filósofo é o terror das doutrinas sectárias, dos sistemas e dos dogmatismos de quaisquer origens, desde o religioso ao especificamente político ou cientificista. O único limite para o seu campo de ação é o não poder nem dever pensar a serviço da opressão, se quiser ser fiel à humanidade. É não pretender possuir a verdade total. Não se deixar enquadrar num sistema. Não se curvar a censuras. Não silenciar. Não pretender a ingenuidade de querer afirmar-se ideologicamente neutro ou apolítico. Seu lema deverá ser a construção da verdade, pela construção da história. Utópico, procurará tornar “tópico” aquilo que pensa, com o testemunho da sua convivência, pela dialetização com outras consciências, na luta pela liberdade política, a começar pela própria liberdade individual. Sabendo que a filosofia é o saber do saber e do não saber; condição reveladora sem a qual o existir não seria humanamente possível.

III – Considerações finais

Os seres humanos não vivemos sem filosofia. O pronunciar-se com outros é incondicional ao nosso existir, no mundo. E a crítica, o filosofar, a atitude interrogativa, constituem os únicos caminhos a serem desbravados pela humanidade em busca de orientação para viver essa grandeza: a vida; náusea para uns, mistério para outros.

Cônscio desta possibilidade e dos limites que lhe são impostos, o pensador crítico sabe que deve continuar exigindo espaço para sua tarefa histórica específica. Ainda estamos a tempo de tentar libertar a Filosofia dos estreitos corredores e salas de aula em que está confinada, nas universidades, para apontá-la como atividade virtualmente possível a todas as pessoas como seres pensantes. Se já é fato que fizemos uma filosofia da libertação, não esqueçamos de lutar pela libertação da Filosofia, cuja ideia continua presa às escolas ou banida pela censura disfarçada.

A atividade filosófica deve ser explicitada e compreendida como tarefa de todos, embora em níveis diversos; não apenas de universitários. Como pensadores brasileiros temos que operacionalizar concretamente o modo e o espaço político para isto. Não esperemos o reconhecimento “oficial” desta atitude humana – o pensar crítico – pois nunca virá, uma vez que nossas instituições escolares, sob o poder majestático das elites, dos vulgares “políticos”, continuam como instrumentos da socialização repressiva a serviço do status das classes privilegiadas e da defesa da ordem da propriedade privada.

Afirmamos que o filosofar não deve permanecer apenas como atividade acadêmica, pois é preciso que leve em consideração o cotidiano popular. Assim como é necessário que a linguagem filosófico-científica dialogue com o linguajar comum, a fim de que, dialógica e dialeticamente, as camadas populares também se apropriem do conhecimento rigoroso. E ambos, filosofando, questionem suas práticas, conjuntamente, num esforço de superação do vanguardismo e do intelectualismo de gabinete.

O pensamento filosófico não pode se desligar das lutas históricas das populações. O filósofo ou filósofa deverá fazer o esforço para se comunicar cada dia mais intensamente com aqueles que estão impedidos de dizer sua palavra, com os movimentos culturais populares. Porque as classes populares também são potencialmente capazes de captar e expressar o espírito de sua época.

Temos de nos organizar culturalmente, saindo dos gabinetes e “chocadeiras” dos departamentos, para combater a censura neoliberal que atinge as escolas. Precisamos da força organizativa do pensamento filosófico para quebrar o autoritarismo e o fanatismo ideológico que consideram o exercício da filosofia como algo perigoso. Visto que, no momento, grande parte das nossas instituições ainda são demasiado débeis para suportar isto. Temos de acordá-las como o canto dos galos nas silenciosas madrugadas. Inclusive porque pensar filosoficamente também se constitui como um direito; já que diz respeito à educação e à liberdade de consciência como expressão fundamental da dignidade humana.

Se esta proposta chega tardia, não é ao cair da tarde que levanta voo o pássaro de Minerva, na poética expressão de Hegel? ***

* N. Berdiaeff: Filósofo russo, 18/03/1874, Kiev, Ucrânia – 24/03/1948, Clamart, França

** Autor: Mestre em Filosofia pela UFPE

*** Sobre o texto: Esse texto foi publicado, em primeira versão, no suplemento cultural do Jornal do Comércio de Recife, há quase vinte anos. Como, no Brasil, curiosamente, as circunstâncias não mudaram absolutamente nada em relação à Filosofia, pois vivemos época de crescente fundamentalismo, pouco foi alterado em seu conteúdo essencial.

1 BERDIAEFF, Nicolaus. Cinco meditações sobre a existência. Lisboa, Guimarães Editora, 1961, p. 13.

2 Referimo-nos aqui ao organismo político-militar criado durante o governo Reagan, nos EUA – o Instituto para Religião e a Democracia, chamado vulgarmente “projeto santa fé”, destinado a combater os movimentos de libertação popular dos países dependentes, especialmente os inspirados na Filosofia e Teologia da Libertação. Sobre isto ver: Um processo de ataque contra a Igreja que nasce do Povo. Publicação do CEDI e Revista Tempo e Presença, São Paulo, 1986, p. 6, (folheto).
3 BERDIAEFF, N. Op. cit., p. 13.
4 Idem, ibidem, p. 21.

5Continua atuante a repressão da censura policial às produções artístico-culturais. Durante as ditaduras das décadas de 1960-80, as punições aos pensadores críticos foram sistemáticas; a nível mundial, lembre-se a perseguição desencadeada contra os pensadores da Filosofia e da Teologia da Libertação da América Latina, o fechamento temporário do Centro Latino-Americano de Parapsicologia, em São Paulo; além da exclusão do ensino de Filosofia, repetida atualmente. Publicado esse texto em uma primeira versão, há vinte anos, resolvi reescrevê-lo, pouco acrescentando, face ao fascismo social que desponta com as mesmas práticas das ditaduras militares do século XX.

6 Idem, ibidem, p. 30;