Quem? O sentido da Autogenia

Autogenia. Uma aproximação da questão: “quem é esta pessoa”

Autogenia  não é uma palavra corrente, na filosofia, na clínica e, pouco usada nas ciências,  daí ser prudente defini-la  para os propósitos deste texto.

A palavra grega “auto” traz o sentido daquilo que é próprio e, “genos”- também do grego – o de origem ou nascimento. De maneira simples, autogenia pode ser entendida como a qualidade daquilo originado por si mesmo, independente de força ou recurso externo a si.

E como essa palavra autogenia participa no mundo  da filosofia clínica?

Autogenia pode ser considerado como um retrato existencial desta pessoa à frente do clínico. Como ela se constituiu, se tornou o que é.  Ela se vincula a uma idéia de totalidade da pessoa, próxima de certa forma da noção de personalidade ou de caráter usado pelas psicologias e por algumas psicanálises. Na filosofia clínica ela deve ser resultado de um minucioso processo de construção, sempre vivo e reconstruído. Autogenia se aproxima de uma questão muito esquecida e fundamental da clínica: quem é essa pessoa que está aí? Questão filosófica vivida na clínica.  

Heidegger ao tomar como tema o quem, escreveu: “é cada vez um eu e não algo distinto” (Ser eTempo pg 333). “Cada vez um eu”, portanto, um “eu”, um alguém que muda a cada vez que é observado e simultaneamente “não algo distinto”, isto é, um algo ou alguém que não é diferente de si, que é o mesmo. Nessa tensão entre mudança (Heráclito) e permanência (Parmênides) estaria o lugar para alguma consideração da questão quem é essa pessoa, esse ser-aí, à frente .

Quem? “Cada vez um eu e não algo distinto”.

Mas o que é“eu”? É uma palavra que se refere a quem fala, designa a pessoa que enuncia. Mas não a descreve, não dá qualquer predicado dela.  Na gramática da língua, “eu” é um pronome, por definição, algo que vai em direção a um nome, mas não nomeia uma coisa. Pronome pessoal “eu” só indica a pessoa que fala, portanto, é (só?) um fenômeno de linguagem. “Eu” se funda, se re-inaugura em cada fala. Em cada uma, na sua, na minha, na dele. “Eu” existe através da fala da pessoa que a profere. E, algo – o “eu”- fala por intermédio da pessoa. Esse “algo-eu” que fala é alguémAlguém fala: um “eu”. Quem?

 No âmbito existencial o “eu”, na vivência de uma pessoa, é sempre presente para si.   E também um observador eterno de si, afinal  sou sempre eu que vejo, penso, percebo, sinto   “a mim”, “a mim mesmo”. Então há algo na base do “eu”. O “eu”, entretanto, não é uma coisa no mundo, um ente. E ao mesmo tempo há um fenômeno “eu” que existe para mim enquanto eu sou consciente de mim. Então “eu” serve para eu me referir a mim. O que é  alguém e não se refere a mim não é “eu”, é “outro”. Eu” é a palavra que  indica aquele q designa a si na fala.

Quando alguém usa “eu” já traz também pressuposto alguém diante de si, um tu ou um você.  E pressupõe também um “eu” desse interlocutor. Eu compreendo quando uma outra pessoa fala “eu”, eu sei  que ela se refere ao “eu” dela, o “eu” do “outro” que é ela, para mim. Isso, essa compreensão, é condição para a clínica. Ela e eu, cada um a partir de si, sabe que há um “eu” meu e um ”eu” dela. Curioso: sabe-se, mas é um saber de natureza frágil, meio por aproximação. Não há um saber certo, firme, fundado, nisto que é tão comum, corriqueiro, vivido por qualquer um. Um saber-sabido-desconhecido.

Quem? Essa pessoa que fala cria um mundo a partir de si. Cada “eu” pode ser definido razoavelmente  como um centro de experiências de mundos vividos por uma pessoa e, um centro de perspectivas de mundos seus a viver. O clínico – este “eu” que escuta – deixa este mundo do outro “eu” se estabelecer próximo a si. Talvez o lugar propriamente em que esse mundo do outro “eu” se estabelece é na interseção  entre estes dois “eus”. A clínica se dá entre.

A pessoa não é um conteúdo do mundo que cria, ela é a referência, a base, o ponto de apoio. Mesmo frágil.  Esse “eu” fala algo, aqui e agora para um outro “eu” aqui e agora, que escuta, cada qual numa posição insubstituível. A pessoa que traz o seu mundo é um limite desse seu mundo, não está dentro nem fora desse mundo. Não está dentro porque está aqui “fora” falando e não está fora porque fala de “dentro” de si, a partir de seu “eu”. Como um “eu – criador” está no limiar, entre o dentro e o fora [como notou  Wittgenstein]. No mundo existencial, não há  sujeito, nem objeto. Não há objetivação possível do sujeito.

Quem?  A pessoa não é somente esse “eu” que fala: ela se compõe de uma corporeidade. Ela também é um corpo. Ela existe também num âmbito material. E cada pessoa tem um corpo diferente da outra.  Se ela e só ela pode se identificar com o corpo que ela habita, então este corpo é seu, só seu: este corpo é o lugar do seu “eu”. Compõe o “eu”. E, alem disso, o meu corpo, desse outro que sou para ela, pode ser entendido por ela como “eu”.  Em outras palavras, do ponto de vista espacial, o corpo como critério de identidade do “eu” parece dar uma resposta mais firme. Ao menos para um universo cultural tomado predominantemente  por critérios materiais A pessoa parece poder ser identificada pelo seu corpo. E assim se faz socialmente. A sua identidade é atestada pelo reconhecimento do desenho de seus dedos. A convicção inquestionável da singularidade dos traços corporais está aqui pressuposta.

O corpo ainda responde a um outro critério importante de identidade da pessoa que é a possibilidade de ser reconhecível pelos outros. Este corpo que contém um “eu” pode ser percebido em dois momentos diferentes  e ser considerado ainda como a mesma pessoa. Há uma permanência, ainda que provisória da fisionomia da pessoa, por exemplo. A pessoa passa a ser reconhecida por aquele rosto ou por aquele corpo que trans-porta esse “eu”. O curioso é q muitas vezes, encontra-se  alguém que se reconhece não por seus traços físicos, mas pelo seu jeitão, por uma expressão, por um sorriso, pela voz, pelo seus modos de se movimentar, um modo de olhar. Pela voz.  Mas de qualquer forma o corpo como critério de identidade parece funcionar razoavelmente, para as necessidades das relações sociais.  Mas…

Quem é essa pessoa? “Cada vez um eu, não algo distinto”.

 O mesmo algo, aquilo que não é diferente, que parece repetir um conhecimento que já se teve. Nesse lugar incomum, difícil de perceber, que é a cada vez de um modo e que permanece com alguma propriedade comum, parecida. Daqui não se pode falar que é o mesmo – já que de cada vez é um “eu” – e que ao mesmo tempo mantém alguma coisa que lhe é própria, e pela qual pode ser reconhecida,  o corpo.

Quando eu me refiro ao “meu” corpo eu tenho uma referência de um mundo em que há outros corpos.  Foi na minha relação com outro corpo q eu pude constituir a idéia de um corpo meu. Este movimento de me constituir como um corpo diferente, me possibilita e me exige ver a mim quase como um terceiro, isto é, de “eu” através da percepção de um “outro”. Mas como sou “eu” que indico a mim mesmo esse “eu”, há um movimento reflexivo, quer dizer, há um desvio da minha direção inicial – indo em direção ao outro – que me faz voltar para trás, me faz recair em mim [esse “mim” é um pronome obliquo reflexivo da 1ª pessoa do singular- refere-se a “eu”, mas não é “eu”]. Há quase um olhar em terceira pessoa para o meu “eu”, mas um olhar que também não se realiza plenamente, ou pelo menos que me dá pouca possibilidade de alteridade (externalidade?) desse “eu”, que me permitisse perceber esse “eu” como a um estranho.   Mas isso não se realiza porque o “eu” permanece em meu corpo e me percebo como uma única pessoa. E sou eu que digo “eu”.

A reflexão do parágrafo anterior está no campo do pensamento clínico, tem sua referência  no âmbito existencial e não epistemológico.

Quem? A noção de pessoa se constitui a partir dos predicados que se atribui a ela.  Na cultura ocidental contemporânea os predicados mais aceitos são os de que uma pessoa é composta de um aspecto físico e outro espiritual ou psíquico. Quando se está frente ao corpo de alguém morto, por exemplo,  há algo da pessoa presente e algo ausente. A pessoa não está mais ali, só seu corpo. O corpo, uma coisa no mundo, mas ainda como memória do ausente.  A pessoa na sua inteireza material-psíquica tem como sua natureza, portanto, o  estar presente, ser presença. Mas isso não a predica, não fala nada dela.

Quando se busca a identidade da pessoa –  ela como idêntica a ela mesma – surge de novo a dificuldade. Cada pessoa é um “eu” distinto num corpo distinto. O que distingue um corpo de outro é sua aparência física, seu volume, suas formas que se conhecem a partir da percepção. Mas como distinguir as características psíquicas de uma pessoa?

Na clínica a pessoa se encontra numa situação em que fala e escuta  e é ouvida por outra pessoa que também fala. Nessa circunstância ela usa a língua e vários recursos de linguagem para expor para alguém, de algum modo presente, as suas experiências. Uma situação de interlocução que tem valor de instituição de acontecimento. Está em cena, através de um discurso, corpo e psique frente a corpo e psique, alma, carne e osso, ainda que mediada por aparelhos (plataforma, internet, celular) trazendo a sua experiência do mundo, sua perspectiva, q não pode ser substituída.

Quando eu digo “eu estou feliz” não é a mesma coisa do que se eu dissesse “a pessoa q está falando está contente”. Há um ponto de referência diferente: quando eu digo “eu” estou dando o ponto de referência, tem um certo peso existencial,  no outro caso eu sou descrito como uma 3ª pessoa, quase não é uma pessoa.  Quem é essa pessoa? Como predicá-la? Como estabelecer suas propriedades, o que lhe é próprio?

Mas isso ainda está muito vago. O que é isso – o “eu” – que eu sei q existe porque vivo em mim e percebo viver no outro?  Eu sei que o que vivo em mim é diferente do que ele vive nele. Então há algo de próprio neste “eu” meu e no “eu” dele, do outro. Há uma diferença entre ele e eu.  Há um próprio a mim e um próprio a ele. Como se produz isso que é próprio a cada um? Como se deram essas Autogenias?

O recurso chamado EP

A Filosofia Clinica busca enfrentar esse desafio através de um artifício próprio, de um elemento simbólico, chamado de “estrutura de pensamento” – “EP”. Ela tem uma natureza operatória. A grosso modo ela pode ser vista como um modelo, um “artifício de montagem”, que facilita formar um quadro para o clínico dos modos constitutivos dessa pessoa, de forma explicitamente aproximada, com alguma estabilidade. O sentido é de um quem  utilitário e não tem nada a ver com um quem ontológico (que estabeleceria o ser dessa pessoa) .

Ao criar uma certa permanência artificial, a EP possibilita ao clínico um certo afastamento da experiencia imediata da escuta vivida na interseção com o partilhante. Dá-lhe a oportunidade de pensar, comparar momentos distintos, observar seus movimentos, fazer relações, formar hipóteses para procedimentos, planejar ações clínicas. Mesmo quando não está na presença física do “outro”, do partilhante, pode ainda pensar e refletir, respeitando seu próprio ritmo de pensamento, numa espécie de “re-escuta”, observando aspectos que talvez lhe escapariam sem isso. Além disso, permite-lhe, também, criar a possibilidade de um certo afastamento dos efeitos das suas próprias idiossincrasias, elaborar os seus preconceitos – específicos  desta relação ou não.  

Nessa estabilidade artificial impregnada na EP está uma série de apropriações de sentido produzidas através da escuta realizada pelo clínico das falas faladas do partilhante. Ela é um modo que possibilita um afastamento da memória  do vivido, numa tentativa de mantê-la  “presente” em seus sentidos. Isso não é pouco quando se trata de se aproximar do que é próprio a essa outra pessoa.

Quem? Talvez não seja conveniente pensar a EP como uma “representação da pessoa”. Representação  tem sentidos bastante vinculados a certas tradições filosóficas, não sendo recomendado, aqui, utilizá-la para evitar más interpretações. Será melhor caracterizar a EP de modo menos preciso, mais aberto e próximo de seu próprio sentido, como sendo “o jeito da pessoa”, ou “o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente” .

O conhecimento de uma EP será sempre “trabalho realizado”, síntese organizada de observações feitas pelo clinico, a partir de sua relação com essa pessoa que vem partilhar as suas vivências. Como assinala Lúcio Packter,  ela só poderá ser determinada “após o exercício existencial da pessoa” [packter; caderno B pg 8] e deve ser tomada “como um preconceito e não como um a priori”. Não é um saber que venha constituído por uma razão transcendental ou metafísica. É um registro, em línguagem própria, do processo autogênico da pessoa. O quem em outra língua.

Um resumo do processo metodológico de formação da EP mostraria que o partilhante narra sua história, atualiza suas vivencias, enquanto o clínico busca, pela escuta, apreende-las, fazendo  uma coleta do que ouve a partir de categorias,  aprimorando essa colheita propondo “divisões” temporais na história narrada e buscando especificar, discriminar o que  lhe permanece obscuro, fazendo processos de “enraizamento”. Com esse material atualiza, “monta”, constrói, “preenche”,”encarna” a EP dessa pessoa. Das múltiplas vivencias narradas, de tudo o que ouve, busca recolher seus sentidos e traduz, canaliza, traz para dutos pertinentes, para colocá-lo em modos que facilitem a absorção  pela EP.

A EP só estará constituída quando já estiver estabelecida como uma totalidade. E, como qualquer totalidade, a EP é composta de elementos – os “tópicos” – que se relacionam e se articulam mutuamente. Cada EP será um arranjo singular de pesos e importâncias desses tópicos inter-relacionados e de suas possibilidades. Mas só será EP quando for uma totalidade constituída, ainda que transitória.

Sempre tomada como totalidade, uma EP tem momentos estruturais que podem ser muito diferentes entre si. São relações ou arranjos tópicos (autogenias) diferentes que, às vezes, podem até dar a impressão de se tratar de outra estrutura. Mas é isso que caracteriza essa própria EP: essas diferenças são apenas a expressão da variedade de seus modos próprios de existir, e que, precisamente,  a definem e a distinguem.

A um tempo a EP poderá ser tomada como uma totalidade unitária, como conjunto e,  de outro como uma série de totalidades momentâneas, circunstanciadas. Em outros termos, a EP pode ser tomada sincronicamente: o tópico Autogenia, procura dar conta disto. E pode ser vista diacronicamente e, então será a vez da Autogenia como submodo. Como tópico há uma espécie de “congelamento do tempo” enquanto como submodo é “posta no tempo”. Portanto, na dependência da perspectiva ou do momento de quem observa, a EP pode ser tomada como uma unidade a ser investigada em suas relações constitutivas  ou também como uma unidade a ser investigada em seus movimentos e suas relações com o mundo, com os outros.

 A EP é este modo muito próprio de exercício que contribui para a possibilidade de responder  temporariamente, quem é esta pessoa. Autogenia, são dois modos de descrever como se produz esse quem.  E através do tópico Matemática Simbólica possibilitar modos de mudanças dessa pessoa. Esse quem se tornar um quem adequado a si. Por seus critérios.

Há todo um modo próprio de  prática clínica  a partir da Autogenia. Aqui é pressuposto sempre não perder o sentido da própria idéia de Autogenia desenvolvida acima, e as reflexões sobre o “eu” e ainda a natureza da EP. Isso não foi feito por acaso. Em outras palavras, manter presente a idéia de que o que se está fazendo é co-laborar com o modo singular desta pessoa se mover, gerar a si própria, tornar-se o que está sendo, o que quer vir-a-ser. Esse movimento envolvendo seu ter-sido, seu vir-a-ser, sua presença.

A matemática simbólica

A EP  não é uma forma que o clínico possa  perceber por seus recursos perceptivos ou sensoriais,  e também não tem uma essência que seja possível  apreender por meio do entendimento. A sua natureza seria mais próxima do campo dos símbolos. Eis porque Matemática Sinbólica. Na descrição disponível,   “o conjunto simbólico que tem por função ir desfazendo a linguagem verbal…e [que] gradativamente associa e substitui o atendimento verbal por outro que utiliza equações e conceitos” [pg 9 do Caderno de Mat Simbólica].

Pelas dificuldades do autor, talvez isto fique melhor expresso dizendo que a Matemática Simbólica é um outro modo de exercer a Filosofia Clínica, tomando por base a Autogenia já realizada de uma EP, reduzindo a ênfase da linguagem verbal, aumentando a importancia de outros recursos simbólicos. Vale dizer, tomar a pessoa como um todo e, a partir desta perspectiva, acompanhar suas relações existenciais com os outros, com as coisas, com as suas circunstancias.  

 Este modo de clinicar permite pensar a EP de alguém como um modo mais qualificado de “eu” – porque ela é passível de predicações existenciais. Não se predica a pessoa, mas esta espécie de símbolo dela, com elementos (predicados) existenciais.  Observar a EP de alguém é acompanhar um modo  que tem uma boa dose de  verossimilhança com as suas – da pessoa –  próprias vivências  existenciais, sem contudo confundi-las – a pessoa e sua EP.   A EP tem seu movimento, é informada e constituída pelo que a pessoa  experimenta, mas não é ela, não se funde com ela. É apenas  um artifício, um símbolo generalizante dela.  Esta abordagem é um modo clínico possível na Filosofia Clínica, que nasce e se realiza precisamente a partir das possibilidades abertas pelas características do tópico Matemática Simbólica. E será avaliada, caso a caso, pelo clínico, a oportunidade de seu uso. Ela  pode ser uma via para trazer bons resultados, frente aos Assuntos trazidos pelo partilhante.

Esse alguém que vem à clínica tem a sua constituição, sua composição existencial própria, que faz ele ser  como  ele é. A composição dos tópicos na sua EP, como eles se interligam entre si, e quais são e quais não são importantes define sua Autogenia [como tópico]: aquilo é próprio a si e a origem dessa sua propriedade.  A EP busca trazer o que é o mais próprio dessa pessoa,  em uma dimensão diferente, virtual, em que se pode compreender as origens dessa composição existencial que é só sua, diferenciando ou aproximando de outros momentos estruturais de sua vida.  A EP dessa pessoa anos atrás pode ter tido uma configuração quase irreconhecível, frente ao que apresenta hoje. ´

Num exercício de imaginação seria possível notar como as circunstâncias vividas nesse período alteraram sua EP, sua Autogenia, compuseram suas muitas configurações autogênicas. Alguns tópicos perderam a importância relativa que tinham e deram espaço para a proeminência  de outros, de novas relações, variações, surgindo arranjos, inter-relações muito diferentes. Mas suas configurações sempre são próprias, sempre são suas, como modos de se relacionar com os assuntos que tratou e cuidou nesse período, o jeito que se relacionou  com o tempo, os lugares existenciais em que habitou, as coisas, as pessoas com que conviveu. E sempre foi ela quem gerou isso que ela foi sendo. Suas diversas autogenias, nestes anos. Com algum grau de independência de sua vontade, de sua consciência, de suas intenções. 

A pessoa deixa de ser propriamente ela mesma quando age de modo diverso daquilo que parece lhe ser próprio? Mas este modo que parece impróprio, inautêntico, não é propriamente aquilo mesmo que lhe é próprio? Há estado de inautenticidade, do ponto de vista estritamente existencial? Este é um aspecto que pede muita discussão. Não é, entretanto, o tema deste texto. Fica a provocação.

Um certo modo de exercício

Um exercício imaginário que se poderia fazer seria observar como a  EP de alguém  se relacionou com os infindáveis contextos em que a pessoa  esteve envolvida. Como foi que se comportou, se movimentou? Talvez tenha havido momentos de intenso constrangimento, em que a sua sobrevivência física ou de algum de seus próximos foi quase que a sua única preocupação. E outras em que numas férias naquela praia, caminhando plena de um vazio aconchegante  reencontra inesperadamente aquela que foi e virá novamente a ser sua grande companheira de trocas existenciais.

Nessas 2 circunstancias tão contrastantes como foi sua relação com sua consciência, com seus impulsos? Deixou sua EP, por si só procurar seu caminho ou havia intenção, vontade nisso? Confiou em seus recursos desconhecidos, não racionais, inconscientes?   E o clínico que a acompanhava, com o que podia contar?

A Autogenia oferece  um modo característico e diferente de  prática clínica. Para não perder  o seu sentido é importante o leitor ter em mente  as reflexões sobre o “eu”e , a natureza da EP, desenvolvidas anteriormente. Isso não foi feito por acaso. Em outras palavras, fique sempre conectado com a idéia que o que se está fazendo é tentar descrever um modo clínico que não deixa de lado a questão: quem é essa pessoa, autogenicamente. Como o clínico pode co-laborar com o modo próprio dessa pessoa se mover, fazer a si, tornar-se.

Este é um campo com poucas referências. Sem certezas. Com o que se pode contar talvez seja esse movimento que envolve seu ter-sido, seu vir-a-ser, sua presença. E será por isso que a atenção para os contextos vividos pela pessoa são tão importantes.  Perceber qual é o momento vivido, quais suas bases categoriais, quais são seus vizinhos, que papel exercem em sua vida. Hstoricidade, bases categoriais.

Esta pessoa talvez tenha se dado bem em algumas circunstancias  “ao se jogar” ao que lhe fazia sentido, mesmo com ampla resistência das pessoas com as quais convivia. Havia só umas poucas que apoiavam seu movimento.  Foi muito expressiva sua experiência de se lançar ao desconhecido, sua vida se modificou, passou a viver uma ampliação de horizontes com que nunca sonhara.

Para o clínico essa pode ser a tarefa. Pesquisar como ela fez em outros momentos de sua vida e quais elementos foi possível perceber no processo de historicidade que trouxe esses elementos. Às vezes  é  possível retomar algum momento, conversar um pouco, rememorar, desdobrar aspectos ainda pouco claros, trazer recursos para fortalecer seus vínculos com novos vizinhos, buscar composições com elementos que estejam no horizonte de possíveis. Reparar como foi para ela as experiências passadas, perceber se ela coloca mais atenção nos ganhos  possíveis ou nas possibilidades de fracasso.  Ao olhar para trás a pessoa vê os bons momentos ou o que não quer mais viver. Reparar o que lhe importa nessa experiência, o que lhe impulsiona, qual o peso de seu desejo, de sua intenção. Talvez aqui ela não esteja mais “solta”. Sua EP já não estará condicionada. Ao  ter uma intenção, já não tem uma espécie de pré-controle do futuro?

Ao imaginar  ir em direção a um ganho autogênico,  não é incomum  a pessoa já sentir falta de  pessoas, coisas, hábitos,  por antecipação.  E aqui, também, quando ela começa a pesar perdas e ganhos, já volta a uma predominância de referências estabilizadas, fazendo uma espécie de contabilidade existencial. Muito razoável, no mundo estabelecido, porém, talvez contraproducente no universo das Autogenias com movimento verticais. Esse é um  movimento característico de autogenia horizontal.

A  pessoa em movimento vertical ao conseguir atingir certos estágios  autogênicos [na Filosofia Clínica esses “estágios” são chamados de “patamares”, para evitar a idéia de sequencia]  e  passar a viver num ambiente bem diferente daquele que vivia,  pode  ser que  sofra pela falta da vizinhança com a qual tinha grande familiaridade. O surgimento de novos vizinhos, novos hábitos, novos lugares com que ainda não tem familiaridade pode ser temporariamente difícil.  Nesses movimentos alguns elementos de sua base original podem se refazer no novo ambiente, mas isso nem sempre é assim.  Pode se formar  uma nova turma, uma nova família, mas, pode ser que isso não aconteça  e a pessoa continue fixada no momento  existencial anterior.

Para poder lidar com isso o clínico ao acompanhar os movimentos da pessoa deverá estar especialmente atento à importância que vinha sendo dada às suas novas vizinhanças. Este é um modo em que é possível estar próximo das novas circunstancias vividas e poder perceber como as coisas estão andando, com quem ela está se relacionando, de que modo e assim por diante. Algumas vezes a pessoa ao mudar de patamar autogênico, mantém relações com seu ambiente anterior, porém, não é raro que a maneira como essa relação passa a se dar, se modifica. Se antes havia uma identificação de papéis existenciais, por exemplo, é possível que isto desapareça, mas que a relação de amizade, por conta de outros atributos da relação – como a memória de emoções vividas – se refaça. 

Certamente haverá muita incompreensão de parte a parte quando buscar argumentar ou decidir algo já a partir de seus novos modos de ver, e se defrontar com aquele ambiente, que continua a operar nos moldes anteriores. Querer permanecer obedecendo aos mesmos critérios e obter aquilo que só está disponível em outro ambiente que tem suas próprias regras é algo com pouca probabilidade de bons resultados. Não dá para mudar permanecendo onde se está, existencialmente.  Os livros de auto-ajuda, algumas linhas de terapia de base comportamental vendem essa ilusão:  seria possível mudar seu comportamento sem todo um movimento existencial complexo, que implica perdas, riscos etc. E é por isso que as mudanças provindas desses recursos são só temporárias. Quando chegam  as exigências dos novos lugares existenciais, não há força, critérios desenvolvidos, convicções amadurecidas, sentidos experimentados e conectados com os processos autogenicos .Não se alterou o modo de produzir a si próprio. 

Na Filosofia Clínica a aproximação feita pelo clínico aos mundos da pessoa é feito via EP, espécie de consolidação simbólica dos principais traços provindos da sua historicidade. E por ela que é possível acompanhar seus principais movimentos existenciais, seja de crescimento, de queda, de estagnação.  Ao trocar os vizinhos pode ser que esteja mudando seu patamar autogênico. Às vezes não é isso, mas é apenas  um movimento  pontual, de mudar certas contingências, certos hábitos, certas relações. Na clínica o caminhar do terapeuta deve ser sereno e atento.

A movimentação autogênica pode ser instável. A pessoa pode estar se sentindo bem, e no momento seguinte está no maior baixo astral, pode estar animadíssima ou entediada, deprimida ou motivada. O critério clínico será sempre a base categorial da pessoa, suas tonalidades afetivas predominantes e não  seus estados emocionais atuais. A avaliação deve ser pela escuta das circunstancias recentes vividas, vinculadas com sua EP, e não seus “estados”.

Nos pocessos clínicos exercidos via Matemática Simbólica, no ambiente autogênico da pessoa, a atenção do clinico deve estar também nos critérios usados pela pessoa. Não é raro a pessoa  chegar  numa determinada consulta, durante o processo,  com referencias, valores e opiniões muito diferentes de seu hábito. Isso pode ser observado comparando o que ela está vivendo com seus novos vizinhos. Estes são valores, referencias desse mundo q ela passou a freqüentar ou é parte de um mundo criado por ela. E o clínico deve reparar também se há uma certa estabilidade nessas novas referências  Quando a pessoa está em mudança pode ocorrer que  seus parâmetros mudem só temporariamente. É observando os vizinhos q é possível verificar se a pessoa está em movimento de criação de “novos mundos” (ascendente, de riscos, vertical) ou de estabilidade (tranquilidade, segurança, horizontal). Se for um momento de criação os vizinhos atuais provavelmente não conversam com os vizinhos anteriores, enquanto q se o movimento for de sossego as referencias dos vizinhos tendem a permanecer as mesmas. Em certos momentos criativos o rompimento com padrões anteriores pode ser muito forte a ponto da pessoa eliminar de sua vida certos elementos que até então eram os mais importantes,  determinantes: um namorado, a família, um emprego. Com fortes vínculos com seus novos vizinhos a pessoa pode não querer  mais voltar ao mundo em que vivia. É claro que há sempre risco. E é claro que deve ser observado o que é específico deste caso, singular a esta pessoa em atendimento. 

Ainda outros aspectos

Com o risco de se tornar monótono, o autor não pode deixar de ressaltar mais uma vez a  importância predominante da atenção para as bases categorias, para o mundo de onde a pessoa vem, para onde se dirige, onde está. Secundariamente, durante os momentos de reflexão e planejamento, o clínico pode fazer, para si,  certas aproximações, levantar  hipóteses, para observar as movimentações nas relações e pesos tópicos, que estejam ocorrendo.  Certas coisas podem estar se modificando ou deixando de ter validade (“não acredito mais que a virgindade é sinal de integridade pessoal”). Nunca é demais lembrar: aquilo q constitui a EP está vivo, em conversação permanente, com as coisas do mundo, as pessoas, consigo etc.

Ao filósofo clínico compete acompanhar esses movimentos existenciais, conversar sobre as novas vizinhanças,  sempre garantindo proximidade com a pessoa. Caminhar com ela onde e como ela estiver. Respeitar seus modos de expressão, de ódio, de amor, de indiferença. Certos modos da pessoa podem estar muito distantes daqueles já vistos pelo clínico, porém, fazem parte de seu ofício procurar compreender  os modos diversos, diferentes de viver e de se expressar que a  pessoa experimenta.  Se o clínico não tem referências em suas experiências pessoais pode explorar um pouco a historicidade da pessoa para ir se aproximando desses mundos de referências.

 Como diferenciar quando se deve interromper uma clínica que está se fazendo por esses movimentos  autogênicos e buscar uma intervenção tópica? Talvez quando o clínico começar a perceber que os movimentos da EP nos seus mundos circundantes, nos contextos de convivências, começam a não fluir como de hábito. São indicações que surgem nos seus relatos, nas suas expressões corporais, faciais, em gestos incomuns, o surgimento de fatores existenciais novos. O modo de lidar com isso pode ser retomar vínculos com momentos da historicidade, procurar indicações de intervenções clínicas já feitas e provocar situações que pelas reações possam dar alguma indicação do que está ocorrendo.

Uma maneira que pode ser útil, em alguns casos, é atentar para os modos como essa pessoa trabalha a si própria. Como é sua autogenia, até aqui?  Quando algo novo surge na sua vida, como ela age? Se for um problema de difícil solução, ela se desespera ou age no modo “Rita Lee” (“tire isso da cabeça, põe o resto no lugar..”). Há casos em q a pessoa permite que sua EP como um todo, dê um jeito de se reorganizar. O modo de clínica via Autogenia, através da Matemática Simbólica, abre espaço para eventual legitimidade de “conhecimentos-desconhecidos”, de base não racionalista, apoiados em saberes intuitivos. E isso não implica irresponsabilidade, antes, reconhece os limites do conhecimento no campo humano.  Este modo de trabalhar, entretanto, é para algumas pessoas, alguns modos de organização estrutural.

Com uma  EP com bom funcionamento nas relações tópicas – sem grandes conflitos e choques  – essa própria configuração inclina a EP para lugares  existenciais adequados. Uma EP assim pode se encontrar, circunstancialmente isolada em um ambiente desconhecido, mas tende a encontrar rapidamente modos de ajustes e formas de comunicação com os vizinhos que vão se apresentando. Não há como a priori saber se um novo elemento vai permanecer e se incorporar à sua vida ou se é um elemento apenas de passagem. 

Num momento de grandes mudanças, sempre se diz que há riscos e oportunidades, ameaças e possibilidade de ganhos e reconhecimento. Uma EP com boa fluidez,  pode assimilar uma série de recursos que não se dão a observar, a perceber, na vida corrente. Estando livre das principais contingências existenciais, pode aproveitar modos de apreensão que podem lhe facilitar decisões de vida, impensáveis em seu modo cotidiano habitual.

Não é raro nestes momentos em que a pessoa tem que tomar alguma decisão importante, que ela crie uma porção de limites imaginários e barreiras psíquicas que se tornam insuperáveis.  Fazendo isso abre mão de possibilidades que, talvez,  a sua força estrutural poderia lhe trazer.  Esse caminho de soltar-se à sua força “estrutural”, deixar que “sua EP” (esse modo de fazer-se a si, do tornar-se- si-próprio, que levou toda a vida construindo) faça o papel que já é dela. Como se observa em certas pessoas que parecem portadora de uma força excepcional nesses momentos, ou ainda aquelas pessoas das quais se diz “puxa, como ela é auto confiante …como é que consegue fazer isso, nessas circunstancias!”. Mas ao clínico resta a questão de como proceder, como saber se a “EP”  desta pessoa não vai encaminhá-la  para um caminho perigoso? Aqui se volta ao começo e ao sentido deste trabalho. Quem é esta pessoa? O que é próprio a ela? Como ela produz e se torna o que é?

 Uma pessoa “solta”, auto-confiante, possivelmente (mas, não obrigatoriamente) tem sua organização estrutural para direcioná-la, algo como o “submodo Zéca Pagodinho”: “deixa a vida me levar, vida, leva eu…” E isso pode não ser  uma “loucura” mas, algo sensato. Afinal,  esses  caminhos já podem estar como que  previamente estabelecidos, pela fluência com que a pessoa se relaciona com suas  vizinhanças conhecidas ou próximas.

Vizinho é um nome que se usa nestes procedimentos de clínica autogênica para os chamados  fatores  de similitude,  que são elementos que podem interferir, reparar, encaminhar para as coisas e lugares, próximos, familiares. Vivências anteriores podem se propagar e conversar, se relacionar com vivências atuais, surgentes, sem que a pessoa se dê conta. O curioso é que isso é quase uma circunstancia comum, ordinária da vida, um recurso do ser humano, que é desprezado, deslegitimado pelo modo de conhecimento predominante. Na clínica quando é possível um direcionamento com esta base, é dos melhores destinos existenciais possíveis à pessoa.

Uma caso inventado de procedimento baseado na autogenia

Dá pra imaginar q Hanna deixou sua EP vagar livremente, a ponto de lhe trazer uma perspectiva absolutamente diferente daquelas que suas vizinhanças habituais lhe trariam.  Se não for assim, como compreender o surgimento dessa nova perspectiva de seu olhar, tão distante dos critérios, das referências culturais, epistemológicas, sociais, axiológicas de seu ambiente intelectual e existencial, predominante naquela Nova York, de então.

Mas como isso foi possível?  Tudo indicava um desdobramento completamente diferente. No seu mundo circundante este modo de enxergar as coisas era algo simplesmente inconcebível, inaceitável.  Mas algo lhe passara na mente e ela teve a sorte da proximidade de Malcolm, seu filósofo clínico. Mesmo este, acostumado ao flutuar dos movimentos da EP de Hanna, ficou muito espantado. Percebeu que se tratava de uma poderosa intuição que lhe visitara. Uma forte transversalidade, na sua linguagem da Matemática Simbólica. Não era um movimento existencial vertical /ascendente, nem horizontal/ estabilizado.

Mas uma coisa é reconhecer o fenômeno, na clínica e outra é como lidar, acompanhar e ajudar sua partilhante a lidar com ele.   Ela sabia que havia alguma coisa naquela situação que fazia um sentido completamente diferente do habitual para ela. Como é que ela pôde passar a ver naquele homem que admitia com a maior naturalidade, sem qualquer culpa ou constrangimento, ter sido o agente das maiores atrocidades frente a um numero enorme de pessoas? Como ver um homem atrás disso? Como prestar atenção e ponderar suas “razões”? Razões?

Neste texto não importa a questão propriamente, mas como foi possível a Hanna lidar com ela e como Malcolm procedeu como clínico.  Isto é só um exemplo, inventado.

 Ali havia um fenômeno que ela vislumbrou e que a sua vizinhança atual não lhe dava permissão nem de considerar. Malcolm lembrou-se do relato que ela lhe havia feito, muito tempo atrás, de sua experiência de sair da casa de seus pais, com menos de 20 anos para seguir uma intuição poderosa, de estudar filosofia, nos confins da Alemanha, com um jovem professor que vinha impressionando o mundo intelectual por suas teses revolucionárias, na fenomenologia, vinculando existência e ontologia.

Aquelas circunstâncias, vividas quase 50 anos antes, mudaram por completo o sentido de sua vida. E de tal forma que direcionou praticamente todos os aspectos de sua existência. Esse modo de confiar e seguir as intuições que lhe visitavam foi seu modo pela vida afora, nos momentos das grandes decisões. Nela, uma exímia intelectual.  É claro que isso aconteceu, com intensidade menor, com menores repercussões, mas, sempre com resultados favoráveis.

Desta vez, entretanto, a dimensão era incomensurável: a sua própria identidade estava ameaçada; tinha o risco de perder o trabalho na universidade – que adorava – seu prestígio na imprensa e na intelectualidade, seu reconhecimento público, social, seus amigos etc. Mas talvez fosse mais uma vez uma oportunidade de ampliar os sentidos de sua vida própria, de si mesma. De des-mesmificar o seu si próprio. Bem no cerne de sua Autogenia, de suas relações tópicas, do peso de cada uma neste re-arranjo.

É claro que essas reflexões foram feitas por Malcolm. Que pouco a pouco foi pesquisando modos de apoiar os passos de Hanna na direção que ela vinha traçando.  E não deu outra: com o apoio aos movimentos com vistas a reforçar seus vínculos com os novos vizinhos que se apresentavam, ajudou-a a criar um bom afastamento das vizinhanças que lhe pareciam perniciosas e dificultantes para o desdobrar dos desafios que a nova configuração exigiria dela. Não é preciso dizer, leitor, como, depois da situação passar, Hanna, consigo mesma, com Mary, e com outros poucos, pôde viver uma ampliação de seu ambiente existencial inimaginável, a princípio, para uma pessoa de sua idade e já tão consolidada.

Ainda algumas considerações

Como compreender que uma EP pode oferecer para a pessoa uma maneira de observação sobre si, tão diferente? É quase certo que por raciocínios e relações habituais a pessoa não chegaria a tantas possibilidades. Os caminhos podem ocorrer por transversalidades, mas também podem ser traçados pela pessoa  por horizontalidades ou  verticalidades. Um modo é construir novas vizinhanças.  Os elementos horizontais são os que estão na mesma base existencial, na mesma “realidade”, no mesmo campo.  Quando a pessoa quer sair dessa “realidade” é uma indicação de movimento com vetor para verticalidade.

O elemento que mais dificulta qualquer movimento autogênico é  a intenção e controle. Se a pessoa quer mudar mas quer garantia, certeza etc, tende a não mudar. Esse é o grande freio para o movimento autogênico, vale dizer, para criar condições para q o próprio se engendre de uma nova maneira para si.

Há muitos aspectos da vida que são incompreensíveis para a base categorial em que se vive. Uma das mais constantes é expressa pela idéia de “coincidência”, como se a “incidência” de algo comum não pudesse ter sido produzida, gerada com alguma relação com alguma outra coisa. Não é preciso entrar no mundo racional de causa-efeito, para poder observar certas relações – de natureza ainda não referenciada e admitida como corrente – que relacionam elementos que incidem juntos.

Em todo o ambiente da Autogenia, da aproximação da origem e modificações daquilo que é próprio a alguém, do modo como se pode ter certos vislumbres de quem é essa pessoa  será sempre imprescindível a historicidade da pessoa, os exames das categorias e a formulação da  EP. Sem isso não há Filosofia Clínica. O âmbito aberto pela Autogenia traz possibilidades e recursos importantes para o desenvolvimento da clínica. Mas há que se ir com prudência e serenidade, porque sendo campo de pesquisa e envolvendo muito de perto destinos humanos, a possibilidade de interpretações esquisitas é muito grande. Não é raro observar colegas – aderindo ou rechaçando –  que entendem o trafegar neste campo delicado de conhecimento-desconhecido, em que se dá boa parte de nossa experiência humana, como justificação de  compreensões esotéricas, religiosas ou delirantes. Nada mais longe do que se propõe como Autogenia.  Leitor, faça o seu percurso. A caminhada, só ela, já vale a pena.

Afinal, permanece a questão:  quem é esta pessoa?  

A colcha de retalhos na filosofia clínica e a teoria portátil na psicanálise

Cláudio Fernandes
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/USP] terapeuta, filósofo clínico, psicanalista

A filosofia clínica traz para o campo semântico da clínica existencial algumas tradições importantes da filosofia ocidental. Traz consigo as suas linguagens.

Ela não é e não faz propriamente filosofia, assim como não faz metafísica, ontologia, fenomenologia ou hermenêutica. Não é uma clínica provinda de protocolos estatísticos, “indistinta”. Institui-se como filosofia clínica, como um modo próprio em que a separação de seus termos – filosofia e clínica – desfaz a possibilidade de sua compreensão. Mas não será por isso que se absterá de lidar com fenômenos, teorias, ou linguagens diferentes. E nessa lida, por diferenças, se dá a perceber, faz afirmações. Certamente, tem modos pressupostos de ver o mundo, mas não se institui como modo de ver o mundo. Ela não é ciência, não é filosofia. Não é e não se pretende uma teoria do conhecimento. O que lhe é próprio surge, vive, se transforma e se destina em campo semântico próprio, campo dessa relação humana peculiar – a clínica.

Lúcio Packter, que inicialmente a concebeu, usa a bonita imagem da colcha de retalhos para descrever a diversidade de influências epistemológicas da filosofia clínica: “…é extremamente eclética, é uma grande colcha de retalhos na qual as escolas estão em conversação…e o critério para dizer qual irá se destacar e qual irá deixar a desejar é simplesmente o que nós encontramos lá na história da pessoa”. A colocação é precisa: há na filosofia clínica uma conversa entre diversas tradições da filosofia. “Conversar” é trazer as falas das pessoas, as suas versões de observação do mundo, para um lugar em comum. E, além disso, tem também o curioso sentido de “conviver, morar, residir”. Diferentes tradições e pensamentos podem conviver em um método, oferecendo ao clínico a opção de iluminar o caminho, com a luz mais adequada a cada passo.

Karl Jaspers, o pai da psicopatologia, ao elaborar as suas teorias sobre as doenças psíquicas e suas possibilidades de tratamento, defendia que no plano “científico” há de haver a “liberdade para todas as possibilidades da investigação empírica,[para a] defesa contra o desvio de querer por a humanidade sob um só denominador. No lugar de discutir um esboço do todo, deve-se preferir aqueles horizontes em que a nossa realidade psíquica se apresenta” . Ainda que não se acompanhe as suas escolhas, esse pedido de princípio à diversidade de “horizontes” é importante, significativo.

No campo clínico, a influência da diversidade de horizontes permite apreender a experiência por diferentes ângulos, estabelecendo o foco ou a ênfase, hora num aspecto, hora noutro. Cada tradição filosófica tem uma maneira de olhar, de captar as experiências, dando oportunidade de organizar modos distintos de escuta. A conexão entre as partes dessas tradições é feita a partir da utilidade prática nos modos de apreensão do relato da pessoa. Não há razão para se buscar uma unidade ou uma coerência entre os elementos do método fora das exigências da clínica, apenas para atender aos deuses do âmbito metafísico ou do mundo universitário. Um método é um “caminho para” – “odos” e “meta”- e sua organização se dá no enfrentamento das exigências do próprio caminhar: se tiver bons instrumentos, companheiros de viagem experientes e boas indicações no percurso, melhor será para o caminhante.

Por que não trazer, como faz a filosofia clínica, aspectos do pensamento de Protágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Kant, Hume, Schopenhauer, Marx, Dilthey, Husserl, Whitehead, Peirce, Wittgenstein, Heidegger, Foucault, Merleau-Ponty, Ricoeur, Agamben e…? Para fazê-los presentes, através dos modos de leitura do clínico e de suas formas de ver o mundo, o ser humano, esta pessoa em sua contingência?

A psicanálise, uma clínica consequente e experimentada, fez e faz o seu percurso de modo diferente, desde que foi “criada” por Freud. Nos últimos 100 anos, a partir da prática clínica, da reflexão sobre ela e, da incorporação de outras tradições, muitos psicanalistas criaram “escolas”, “linhas”, “tendências”, numa diversidade enorme de modos de compreensão do que é a psicanálise. A Adler, Abraham, Anna Freud, E Jones, Ferenczi, Hartmann, Jung, W. Reich, O Fenichel, Kohut, Karen Horney, Melanie Klein, Bion, Kris, Lowenstein, Lacan, Winicott, para ficar nos principais. E todos esses modos de compreensão não desfiguram aquilo que lhes é essencial: “A psicanálise é o que se passa em análise. Num divã, alguém fala, em princípio, sem qualquer retenção. Numa poltrona, alguém escuta, em princípio sem qualquer idéia preconcebida. Daí é que se precisa partir, é aí que é preciso permanecer”, como tão claramente define o psicanalista frances Jean-Bertrand Pontalis. Há muita diversidade de referências mas o pensamento inaugural continua lá: Freud.

O filósofo clínico Will Goya observa com perspicácia que “o psicanalista é alguém que verdadeiramente sabe ouvir… mas com os ouvidos da psicanálise”. E isto é muito importante de se notar, uma vez que o psicanalista em sua prática clínica não pode prescindir daquilo que o teórico da psicanálise, Renato Mezan, nomeia como uma “teoria portátil”. Cada uma das “escolas” psicanalíticas é resultado da explicitação de diferenças teóricas surgidas em confrontações que em algum momento surgiram a seus protagonistas como inconciliáveis. “Mas ainda assim o analista continua analista, embora fazendo semblante de saberes muito diferentes dos que Freud fazia”, como nos lembra o psicanalista paulista Marcio Peter. Ele continua a exercer seu ofício ainda que tratando com linguagens, teorias e uma infinidade de questões trazidas pelo exercício clínico. O psicanalista ouve com os ouvidos dessas psicanálises que se fazem e se refazem a partir de sua própria prática, mas sempre com algum grau de reverência à “teoria portátil”.

Mesmo adotando uma “atenção flutuante”, o psicanalista faz a sua experiência clínica com a sua “teoria portátil”. Ela é um amálgama de vivências próprias com as teorias e as interpretações de outras experiências, em busca de uma universalidade que não se realiza. A prática as devora, tira-lhe o sentido, exige e não consegue oferecer uma resposta unívoca. “Cada caso exige uma terapia diferente… a psicoterapia é tão diversa como os indivíduos…não é possível estabelecer regras gerais…cada doente exige o emprego de uma linguagem diversa”, como tão bem escreveu Gustav Jung, um psicanalista de primeira hora e de tantos talentos.

Na filosofia clínica o terapeuta não se utiliza de uma “teoria portátil” no exercício da escuta. Ele simplesmente escuta, numa “despreocupação atenta”, como ensina o filósofo clínico Hélio Strassburger, no desafio constante de silenciar seus sabidos e inevitáveis preconceitos.

Estes modos de proceder dos filósofos clínicos e dos psicanalistas, têm uma natureza próximos dos da arte e muito distantes dos da técnica. São mais convivências com sentidos pré-estabelecidos, caminhos partilhados, do que “técnicas de ajuda”. Os saberes das experiências humanas estão entranhadas e são produzidas em plena con-vivência, não sendo algo estranho a elas, vindos de fora – como a técnica – que os organiza, como um a priori. Os princípios são éticos e não de resultados ou de objetivos genéricos, como “curar”, apaziguar angústias, prover bem estar e outros. Sensibilidade e tolerância à incerteza no lugar de “perícia” e “pressuposições”.

A filosofia clínica em sua prática de cuidado se aproxima mais dos movimentos do fazer artístico. Próxima daquilo que o artista plástico paulista Sérgio Fingermann traz em um momento de sua reflexão sobre um quadro familiar: “..será a luz (da tarde) o acontecimento daquela pintura? Será que o acontecimento ali é o silencio que habita aquela cena ensombreada? Aquela luz da tarde precede a noite que chegará com suas sombras e encobrirá tudo. Falta alguma coisa ali, alguma coisa antecede a imagem se fazer como compreensão. Aquela pintura não comunica o conteúdo de um pensamento, ela nos faz prisioneiros de uma “voz” que é portadora de uma tonalidade afetiva. É poesia subentendida. O tema da pintura é passagem, caminho lugar destinado ao transito de um para outro ponto. É um convite para irmos aonde? Aquela pintura é passagem…”. Ela não é em sua natureza uma técnica, é um modo de escuta.

A filosofia clinica é plástica, de saída. Conjunto de hipóteses articuladas entre si com a finalidade de oferecer perspectivas diferentes para facilitar a apreensão dos sentidos emitidos pela pessoa, por mais contraditórios que se apresentem ao olhar de quem observa. Com isto se forma um campo semântico próprio, peculiar e abrangente. Cada clínico aprende à sua maneira: por leituras, estudos em comum, aulas, trocas com outros profissionais, práticas supervisionadas, assimilando noções, hipóteses, de modo mais ou menos sistemático, meditado, refletido.As inumeráveis possibilidades de combinação oferecidas ao clínico, a partir dessas tradições da filosofia são um traço importante da filosofia clínica. Privilegiar, a priori uma tradição, talvez seja útil para evitar a dispersão especulativa nos trabalhos, predominantemente abstratos, filosóficos ou das teorias científicas, mas, de modo algum a um caminho clínico, que em sua constituição e natureza lida com as pessoas em seus infinitos modos singulares.

A colcha de retalhos das tradições filosóficas mobilizadas pela filosofia clínica dá condições para surgir o inédito: uma clínica da experiência singular. Que já parte do singular. Tateado e firme, incerto e rigoroso. Quem está na lida clínica sabe como isto é precioso.

O que é que fundamenta uma terapia?

Cláudio Fernandes
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/USP] terapeuta, filósofo clínico, psicanalista

Qual o verdadeiro fundamento de uma terapia? Como se poderia estabelecer os fundamentos para uma clínica que atua nos cuidados de questões relacionadas à existência de uma pessoa?
Aqui se argumentará que o fundamento mais consistente é a própria experiência clínica.

Sobre fundamento

Em geral se diz que um conhecimento é verdadeiro se estiver bem fundamentado, ou apoiado sobre uma base sólida. O fundamento seria uma garantia de que se caminha em solo firme, dando a confiança necessária para um saber. Com a palavra “fundamento” se procura significar aquilo que está na origem, na base; ou aquilo sobre o que algo se assenta, se alicerça; ou, de um modo mais abstrato as razões ou os argumentos, por exemplo, em que uma teoria está apoiada, os seus princípios; ou ainda, a causa de alguma coisa.
De qualquer modo, a noção de fundamento traz consigo a idéia de ser uma base, algo que dá sustentação, que suporta, que mantém firme. Uma boa base é o que dá a confiança necessária de que algo não vai cair, se desequilibrar, ou mesmo se desfazer. A base desta mesa, daquela escultura, daquele prédio, assim como a daquela filosofia, o alicerce daquela ciência, a estrutura daquele trabalho. E disto, por exemplo, provêm expressões como “argumentos bem embasados”, “conceitos fundamentados”, “idéia original”, “professor com conhecimento profundo” e, assim por diante.
Na idéia de base há pressuposta uma analogia espacial, onde o fundamento estará no ponto mais baixo ou no mais alto do espaço. No âmbito religioso, para muitos, acima de tudo está representado um deus; nas estruturas de poder no topo sempre está quem reina, quem sabe, quem decide, o chefe. Ou, a idéia correlata, daquilo que está no fundo, no mais profundo: a teoria enraizada em bases sólidas, o homem de uma sabedoria profunda. A idéia que se tem é que lá no fundo, num lugar de difícil acesso, mas existente, há algo com essa firmeza, essa solidez necessária e definitiva.
Não é incomum ouvir que um conhecimento está “ancorado na verdade”, tomando-se a âncora como símbolo do fundamento. Note-se, entretanto, que o fundamento não é a âncora, mas sim, onde a âncora está fixada, aquele lugar que ancora a âncora. O fundamento, neste caso, seria “como a terra vegetal adubada, o solo grávido, frutífero…a região que está mais funda, que dá suporte”, como diz Heidegger em “Proposição do Fundamento”. Essa região seria o lugar originário, a origem, onde tudo começa, onde o ser nasceria, onde as coisas seriam instituídas. E onde também se daria o início do tempo. Não é difícil perceber a presença desse modo de pensar na cultura ocidental.
Um conhecimento, um saber, uma ciência dificilmente serão admitidos se não tiverem uma base sólida, um fundamento consistente, uma relação firme com a origem. Isto é pressuposto – “pré”, antes, de antemão; “su”, de baixo para cima; “posto”, colocado. Aquilo que não tem um fundamento estaria flutuando, disperso, difuso, ao sabor dos ventos, das contingências, vagando, incerto, sem limites. Tudo, todas as coisas, todas as idéias teriam uma origem, que seria a sua fonte asseguradora. Um algo que está antes no tempo e acima – ou abaixo – no espaço, sustentando tudo.
Curiosamente, a ideia de fundamento, mesmo sendo aceita de maneira universal, raramente é tematizada ou pensada criticamente.

A proposição do fundamento

A certeza de que há um fundamento foi expressa de maneira pretensamente inequívoca, por Leibniz, na chamada proposição do fundamento, que diz: “nada é sem fundamento” – “nihil est sine ratione” . Essa dupla negação – “nada…sem” – é que estabelece esse caráter de “necessidade inelutável” que marca uma parte importante do nosso pensamento. Ela tem tal força e amplitude, que mesmo ao ser enunciada, cobra que se efetive: a própria proposição do fundamento, sendo “algo”, deve, ela mesma, estar submetida ao que afirma, isto é, deve ter, ela mesma – proposição do fundamento – um fundamento.
O fundamento da proposição do fundamento seria então, entre todos os fundamentos, o fundamento por excelência, algo assim como o fundamento do fundamento. Mas não se teria que ir em direção ao fundamento do fundamento do fundamento? E assim por diante numa regressão ao infinito? Se o pensar sobre o fundamento seguisse esse caminho iria cair incessantemente no carente de fundamento.
Se – como diz a proposição do fundamento – tudo tem um fundamento e, se ao procurá-lo se cai numa regressão ao infinito, se poderia fundar uma perspectiva de leitura do fundamento de que, no final, nada tem fundamento.
Heidegger chama a atenção que não será por outro motivo que Leibniz teria caracterizado a proposição do fundamento como “principium rationis”, entendendo-se “princípium” como aquilo que contém em si a “ratio” – a razão – para outra coisa. “Principum rationis” se torna o mesmo que “ratio rationis”: a razão da razão, ou, o fundamento do fundamento. O princípio do fundamento teria, para Leibniz, na leitura de Heidegger, a natureza de um axioma: uma proposição considerada por todos como patente, certa, um “conceito-limite” (Leibniz dirá: “..axiomas e postulados… princípios primitivos, que não poderiam ser provados e, não têm necessidade disso” ). E seria esse caráter axiomático do axioma que traria a segurança de que as contradições ficariam afastadas, que não interfeririam no processo de construção do conhecimento. A forma axiomática não se referiria a um objeto específico, mas serviria a qualquer objeto. O fundamento se tornaria aquilo que procura estabelecer uma unidade, uma totalidade, com a função de eliminar as contradições que a diversidade dos fatos, dos fenômenos ou das teorias naturalmente traria.
Um objeto ao ser tomado como uma unidade, como um todo, concentra em si a promessa de uma plena determinação – cria essa ilusão. E faz isso como se estivesse restrito à sua essência, a uma objetividade do objeto, eliminando o que estaria fora disso. No mundo científico, em que é soberano o conceito de objetividade, a verdade só poderia ser estabelecida a partir da entrega de um fundamento – ainda que este fundamento tenha em sua base a fragilidade de um axioma. Um argumento de autoridade: “é porque é”, porque alguém diz que é.
No mundo acadêmico as verdades tendem a ser produzidas circunscrevendo-se um ambiente, um universo: dentro dessas condições, destes limites previamente estabelecidos, com o número de variáveis controladas, será possível se aproximar de afirmações que poderão ser testadas, verificadas e confirmadas. Isto pode ser aceitável para a ampliação do entendimento e talvez até de conhecimento de um número grande de práticas das chamadas ciências operacionais, que lidam com os aspectos materiais da vida (como a medicina, a biologia etc). Mas para a produção de conhecimentos nas áreas que tratam com os aspectos espirituais da vida humana, esses procedimentos não servem: há um tremendo equívoco. Pode ter sido louvável, em algum momento da história das universidades, buscar acolher sobre o manto quase sagrado da ciência os saberes ditos espirituais, mas, o crescente caráter métodológico de seus procedimentos, hoje mais confundem e dificultam o processo de conhecimento nessas áreas .
Na vida cotidiana, mesmo quando há uma busca do fundamento, ela costuma terminar com uma primeira resposta, muitas vezes superficial. E isso é tão comum que as pessoas mal sabem, mal se dão conta que ao perguntar “por que?”, buscam um fundamento. É muito raro que se prossiga, indo mais adiante, em buscas mais aprofundadas. Qualquer pessoa pergunta “por que?”, mas são raras aquelas que não se satisfazem com uma primeira resposta, com um primeiro “porque”.

A razão como fundamento

No dia-a-dia há um outro modo muito presente da proposição do fundamento que diz “nada é sem causa”. Ou que “não há efeito sem causa”, ou ainda que “a todo efeito lhe corresponde uma causa”. Neste caso fica clara uma relação entre algo que se toma normalmente como fenômeno presente – o efeito – e um outro algo – a causa – que o produz. Há, aqui, um tempo, um suceder que está pressuposto nesta relação: a causa, que ocorre antes, determina o efeito, que lhe sucede. Nessa relação de tempo passa a vigorar uma regra que diz que ao se tomar algo no momento presente – o efeito – sempre se estará pressupondo que há algo que vem antes – a causa – e, que neste momento anterior está pressuposto algo que sempre lhe sucederá.
Essas ligações causa-efeito são determinações mentais – têm a sua realidade na mente das pessoas – que passam a ter um caráter de necessidade, isto é, obrigatoriamente ocorrerão. Como escreve Kant, na “Crítica da Razão Pura”, “…em nossas representações [que são mentais] se estabelece uma ordem na qual aquilo que é presente acena a um estado precedente qualquer como um correlato, ainda indeterminado, deste evento que é dado. Tal correlato refere-se a este evento determinando-o como sua conseqüência e, conecta-a necessariamente consigo mesmo na série temporal” . E conclui: “o que sucede ou acontece [o efeito] tem que seguir, segundo uma regra universal, ao que estava contido no estado precedente [a causa]”.
Como “causa” nomeia algo que é um fundamento, bastaria agora determinar a essência dessa razão inicial, qual a sua natureza, como ela se constitui. Por este raciocínio o fundamento ou a causa seriam constituídos por uma verdade que seria natural, uma razão última, uma espécie de verdade, auto-referida, evidente por si. Se não fosse assim essa causa ou esse fundamento deixariam de ser verdadeiros, já que verdade se define, precisamente, como algo de que não se duvida, de que se tem certeza, que é, portanto, evidente. Válida por si. Um “princípium rationes”, um axioma, no lugar da “verdade natural”, ou da “razão última”.
Em outra perspectiva, ao propor que “nihil est sine ratione” (nada é sem razão), afirma-se que tudo tem uma razão ou um fundamento ou uma causa, soando como uma constatação. Fundamento seria aquilo do qual vem o fenômeno, o que se apresenta a alguém. Toma-se como um dado, como um fato ou como uma verdade, que tudo que existe está provido de um fundamento, tem uma causa ou uma razão. Não há, mesmo no senso comum, qualquer dificuldade para se entender a afirmação da proposição do fundamento, de que tudo tem uma razão e, nem de se estar de acordo com ela.
O curioso é que se entende a afirmação de que tudo tem uma razão depois que ela foi pronunciada, sem ter tido antes a experiência de receber ou de se saber de uma razão, de uma causa ou de um fundamento: sabe-se que há uma razão, uma causa, mesmo antes que uma razão se apresente. E será este modo de ter uma confiança antecipada numa razão, numa causa que se desconhece, que engendrará o raciocínio da validade: algo será válido, terá validade, apoiado em algo que se desconhece. A segurança no valor de algo será dada pela razão que essa afirmação promete e, no limite, talvez nem tenha possibilidade de oferecer.
Razão, que se diz em latim “ratio”, é, para Kant, aquilo que é capaz de princípios, de estabelecer proposições fundamentais, de dar os fundamentos. Ao escrever a Crítica da Razão Pura ele não toma a razão para analisá-la, mas, para levar a razão a seus limites, às suas possibilidades, isto é, para estabelecer as condições sob as quais a razão pode se dar. A razão seria uma faculdade, aquilo a partir do que ela se inicia, de onde ela – razão – brota para ser como é: o fundamento da razão. Criticar não é, para ele, rechaçar, mas, colocar em relevo, ressaltar aquilo que mais importa. Estabelecer o que ele chamará de “as condições de possibilidade a priori”, isto é, os critérios pelos quais algo pode ser conhecido, antes e independente da experiência.
A razão estabeleceria desse modo – pela crítica, por colocar em relevo – as condições em que um conhecimento se torna possível, isto é, ela – razão – se põe como aquilo que determina as condições de possibilidade do conhecimento das coisas no mundo. Mas a razão não fundamenta. Kant dirá de modo inequívoco: “…que tudo o que acontece tem uma causa, não é de modo algum um princípio conhecido e prescrito pela razão.” A razão, mesmo se referindo a objetos “não possui nenhuma relação imediata com eles e com sua intuição, mas só com o entendimento e seus juízos… a unidade da razão não é unidade de uma experiência possível…a razão sem relação com a experiência possível, não teria podido, a partir de simples conceitos impor uma unidade sintética de tal espécie…na realidade, a multiplicidade das regras e a unidade dos principios é uma exigência da razão para levar o entendimento a um acordo universal consigo mesmo, assim como o entendimento submete a conceitos o múltiplo da intuição, levando-a a uma conexão”.
A razão passa a ser capaz de dar os critérios para que se possa representar algo como algo, passa a ser aquilo que estabelece sentido, em última instância, aquilo que cria a possibilidade de se representar o mundo, o real. Mas quem será essa pessoa capaz desse representar?
Obrigatoriamente alguém tomado como um ser ou um “eu” racional, lugar da razão, entendido como universal, e com um caráter puro – fora da experiência. Alguém que possa colocar ante si algo que já venha como uma unidade, como uma totalidade, vale dizer, alguém que possa representar um objeto. Um objeto, esse algo completo, pleno de determinações. Este “eu” que representa este objeto, torna-se nesse ato, um sujeito.
Todo outro fundamento da essência ou do ser de um ente fora desta dimensão da razão pura – fora da experiência – fica excluído. O fundamento suficiente para uma coisa no mundo é a razão subjetivada, isto é, que essa coisa se torne um objeto num sujeito universal, ele também obrigatoriamente a priori, puro. A objetividade de um objeto se funda nessa subjetividade da razão. Mas essa subjetividade é pouco subjetiva, não está limitada a um homem isolado, em sua singularidade e com suas escolhas. Essa subjetividade é uma subjetividade pura, universal, dada a priori, que se estabelece como uma lei que está na essência da possibilidade de fundamentar, de constituir um objeto: não há objeto sem esse sujeito puro, fora da experiência.
Esse sujeito universal quando enuncia a proposição do fundamento, dizendo que tudo tem uma razão, tira o valor do homem singular, com suas contingências, para dar valor ao que é uno -“uma razão”- e uniforme -“tudo”. O homem encarnado, singular, esse que procura a terapia, que se encontra na clínica, em suas percepções, não enxerga nem escuta de um modo só e nem da mesma maneira: o mundo, muitas vezes, lhe parece diverso e, lhe aparece a cada vez de um modo – multiforme. Ele enfrenta o que lhe vem no modo que lhe é possível, a cada vez, se relacionando com as coisas do mundo, disso que lhe aparece como mundo. Ele percebe aquilo que emana, que vem, que se manifesta, que se mostra. Em uma palavra, percebe as coisas como fenômenos, como o que lhe vem ao encontro. Ainda que se pensasse numa unidade dos fenômenos, esta unidade, para este homem singular, já estaria no mundo dos fatos, portanto, contingente, histórico, condicionado, experimentado. Não se estaria mais no mundo puro, a priori, universal. Este homem aqui não é um sujeito universalizável e, por isso, só poderá ser atendido em suas demandas mais singulares, por uma clínica que se exponha ao risco da experiência, sem as defensas de teorias e outros aparatos.

A experiência como fundamento

Quando se coloca a pergunta “por que?” pede-se uma resposta, que a coisa – “res” – seja “posta”, colocada, que algo lhe seja entregue. A pergunta “por que?”, inicialmente, indicaria apenas a direção em busca da resposta, daquilo a ser entregue. Ao perguntar por que, o “por que?” – ele mesmo – não fundamenta, nem sequer sonda o fundamento, ele só indica a direção ao fundamento. O “por que?” é sem porque, não tem resposta quando se torna objeto de sua própria pergunta: o “por que?”, por si, não tem fundamento. O “por que?” indica isso que dá suporte, que dá base, que pré-está, que está lá, que no fundo causa. Isso que está lá, que se dá, que acontece, isso que é, e que é em seu próprio fundamento. Isso que promete estar lá, que com a aproximação escapa, mas que tem uma certa duração, que enquanto permanece e se demora, neste estar, é. Isso que “é” – o ser – é fugidio, é presença efêmera, é enquanto é. Isso que é o que está no fundo do fundamento, que funda, está e é só a partir de si.
O “por que?” enquanto se dirige ao fundamento faz perdurar o fundamento. O “por que?” faz uma indicação de que ao mesmo tempo que algo é, esse algo enquanto é, fundamenta. O ser enquanto perdura fundamenta: funda a si como fundamento. Numa linguagem direta, enquanto é, é: o ser fundamenta enquanto acontecimento. Ser e fundamento, estão supostos no “por que?”: “ambos se co-pertencem”, como diz Heidegger, ainda em Proposição do Fundamento.
O ser ter o caráter de fundamento não quer dizer que o ser tem um fundamento. Ter o caráter de fundamento quer dizer: o ser é a essência de si enquanto funda: é fundante de si. Ser “é” em essência, fundamento. E é por isso que o ser nunca pode, para começar, ter um fundamento que o fundamente fora de si. Como o ser, enquanto ser, é em si fundante, ele mesmo fica sem fundamento. O “ser” não cai sob o domínio da proposição do fundamento, só as coisas do mundo, os entes, os fenômenos.
Ao dizer que algo é e, que é deste ou daquele modo, o que se está fazendo é representando esse algo num discurso como uma coisa do mundo. Só as coisas do mundo – os entes, os fenômenos – são: o ser mesmo, não é. O ser escapa, se esconde, se oculta.
Mesmo oculto o ser perdura. Algo que está oculto está escondido, mas continua presente. É neste registro que se pode pensar na ideia de inconsciente em Freud, como aquilo que mesmo presente está oculto. O oculto é o que está na cena mas na parte escura, ou na ribalta, fora do foco luminoso do palco. É ao sair da ocultação, ao desocultar-se, no vir à luz que o ser guarda o que lhe é próprio, que fica momentaneamente sendo. E ao ocultar-se, perdura, enquanto ser, afinal oculto ainda é o ser que está lá como ser. E será por isso que dá para dizer que o ser, mesmo oculto ou fugidio, funda, é fundante.
E será para lidar com este caráter fugidio da essência ou da natureza do ser que as teorias científicas ao buscarem o seu fundamento se apoiam numa razão suficiente e na citada concepção de um sujeito racional. Colocando-se num lugar “antes” ou fora da experiência ela não precisa dar conta dos acontecimentos e seus modos de apropriação. E isto nas chamadas ciências humanas e especialmente no pensamento sobre a clínica que trata das questões dos modos de existir das pessoas, acaba por trazer uma concepção de homem muito afastada do que é vivido – do lugar próprio deste saber.
O que precisamente a tradição moderna –e a universidade – elimina é a existência, a singularidade constitutiva de cada pessoa. O homem, este homem existe enquanto está aí, ele é propriamente em existência: não estando, não é homem. Essa é a sua natureza, poder-se-ia dizer, a sua essência. Este homem se define por estar no mundo, um ser que está aí. Quando ele diz “eu” ele diz um modo próprio de estar no mundo, um modo só seu de criar um mundo.
Mas isso já é outro assunto. Por hora vale a tentativa de manter sempre viva a pergunta-título “o que é que funda uma terapia?”. Afinal, não é no trato do dia a dia do atendimento clínico a este homem singular, que o sentido dessa questão se refaz?

Como a Filosofia Clínica (também) é estruturalista

A filosofia clínica (FC) tem um modo próprio de ser estruturalista.

Esta afirmação se justifica pela possibilidade de focalizar e apurar os modos de ver o uso da noção de estrutura na chamada “estrutura de pensamento” (EP), central na FC.

A EP é definida como “o jeito da pessoa” , como “o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente”, uma representação do que é o “eu” da pessoa. A EP só existe através do que a pessoa é [nota 1] . Como filósofo clínico tenho diante de mim esta pessoa e, é através dela, da linguagem que vamos construindo juntos que posso ter acesso à sua EP. Construí-la.

O conhecimento de uma EP é sempre um “trabalho realizado”, síntese organizada de observações feitas por um clinico, a partir de sua relação com a pessoa que vem partilhar as suas vivências – o “partilhante”. A EP só está constituída quando estiver estabelecida como uma totalidade. E, como qualquer totalidade, a EP é composta de elementos – os “tópicos”- que se relacionam e se articulam mutuamente. Cada EP é um arranjo único desses tópicos inter-relacionados e de suas possibilidades. Mas só é EP quando está constituída como uma totalidade.

Ainda que sempre tomada como totalidade, uma EP tem momentos estruturais que podem ser muito diferentes entre si. São relações ou arranjos tópicos diferentes que na comparação podem até dar a impressão de se tratar de outra estrutura. Estas diferenças, entretanto, fazem parte das características desta EP: são apenas variações de seus modos próprios, e que, assim a definem e a distinguem.

A um tempo a EP pode ser tomada como uma totalidade unitária, como um conjunto e, de outro como uma série de totalidades momentâneas, circunstanciadas. Em outros termos, sincronicamente (numa espécie de congelamento do tempo) ou diacronicamente (“posta” no tempo, em série). Não teria sentido utilizar a noção de estrutura se ela fosse só estável, imóvel, indiferenciada. Não teria sentido, num caminho terapêutico, sem a possibilidade de se comparar, isto é, produzir e captar diferenças. Portanto, na perspectiva ou no momento de quem observa, a EP pode ser tomada como uma unidade, numa espécie de consolidação, ou como uma série de totalidades formadas por combinações tópicas diferentes.

Em qualquer de suas acepções a palavra “estrutura” indica uma totalidade composta de elementos constitutivos inter-relacionados e interdependentes: “uma estrutura é um conjunto de elementos entre os quais existem relações, de forma que toda modificação de um elemento ou de uma relação acarreta a modificação dos outros elementos e relações” [nota 2] .

Provinda da palavra latina “strutura”, “antes de mais nada, define como o edifício está construído, depois, por extensão o modo como as partes de um corpo qualquer – substancia mineral, corpo vivo, discurso, pouco importa – são dispostas entre si. A estrutura é, portanto, aquilo que nos revela a analise interna de uma totalidade: elementos, relações entre os elementos, o arranjo, o sistema dessas relações” [nota 3]

A noção de “estrutura” pressupõe a idéia de totalidade e da possibilidade de analise das partes de uma totalidade, o que, nas palavras de Pouillon “permite definir o que constitui a singularidade de um conjunto e, ao mesmo tempo, fornece o meio de não nos circunscrevermos a ele” [nota 4] .

Em outras palavras, “estrutura” “é um termo que define ao mesmo tempo um conjunto, as partes desse conjunto e as relações dessas partes entre si” [nota 5]

Apenas com estas definições já se pode entrever a utilidade da noção de estrutura num método clínico, uma vez que permite observar a pessoa como uma totalidade – ou unidade distinta de outras – e, como um conjunto de elementos em sua composição intrínseca [nota 6] .

A EP na FC traz, portanto, essa dupla possibilidade de permitir a observação dos seus movimentos como uma unidade e, a das variações, arranjos e inter-relações dos elementos-tópicos que a constituem. E, mais importante do ponto de vista clínico, traz a possibilidade de relacionar estes dois pontos de observação, num terceiro, mais amplo e certamente mais complexo.

Tomar a EP como unidade traz a possibilidade de observar os seus movimentos, por onde se movimenta, como se movimenta, quais os efeitos de seus movimentos [nota 7] . Por outro lado, a visada a partir das inter-relações tópicas, permite ver seus modos próprios de viver, seus condicionamentos, suas facilidades e dificuldades.

Observar a partir dessas duas perspectivas, permite observar como os efeitos dos movimentos realizados se dão na outra, simultaneamente. Ao se partir da EP como unidade pode-se observar que um determinado movimento estabelece um outro arranjo nas relações tópicas, alterando seus pesos relativos, fazendo e desfazendo “choques”. Na outra perspectiva, como uma mudança nas inter-relações tópicas, altera o seu conjunto, de modo a se poder perceber como a EP passa a se movimentar de modo diferente como unidade constituída.

Os tópicos mais complexos da EP são precisamente os que procuram dar conta das inter-relações tópicas – a “Autogenia” [nota 8] – e dos seus movimentos como unidade – a “Matemática Simbólica”.

Na língua francesa o adjetivo “estrutural” tem duas palavras para o descrever : “structurel” que estaria mais próximo das análises da estrutura como unidade [nota 9] e “structural” que tomaria a estrutura mais como uma sintaxe, como a analise da disposição e relação de seus tópicos [nota 10] .

Os estruturalismos

Roland Barthes, inicia um texto que se tornou clássico [nota 11] perguntando “que é o estruturalismo?” para responder que “não é uma escola nem mesmo um movimento…já que os seus autores não se sentem ligados entre si por qualquer solidariedade de doutrina ou de combate …nem chega a ser um léxico: “estrutura” é um termo muito antigo e hoje em dia [nota 12] muito usado …e o uso da palavra não distingue ninguém” [nota 13] . Desde aquela época – a “de ouro” do estruturalismo.

E François Dosse em seu extraordinário “História do Estruturalismo” [nota 14] anota que “o estruturalismo nasce [justamente] nos psicólogos para opor-se à psicologia funcional do começo do século [XX] mas, o verdadeiro ponto de partida do método em sua acepção moderna…provem da evolução da lingüística. Se Saussure emprega apenas em 3 vezes o termo “estrutura” – ele usava “sistema” – no Curso de Lingüística Geral é sobretudo a Escola de Praga que vai difundir o uso dos termos estrutura e estruturalismo” [nota 15] .

Levi-Strauss trouxe para os estudos das “humanidades” o caráter e a respeitabilidade científica que a lingüística passara a ter. E fez isto através da noção de estrutura. Para dar conta em seu trabalho como antropólogo da multiplicidade das praticas matrimoniais, realiza uma operação de redução lógica, definindo um numero limitado de possibilidades, que ele definirá como “as estruturas elementares do parentesco”. O modelo, ele mesmo precisa, veio da lingüística estrutural: “tal como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação sob a condição de se integrarem em sistemas” [nota 16]. Se toma de Saussure as noções de significante e significado coloca o significante – que era som para aquele – como o lugar da estrutura, e o significado – que era conceito – como o lugar do sentido.

Dosse diz que a lingüística se torna para o estruturalismo a “ciência-piloto” , enquanto a antropologia e a psicanálise serão as 2 “ciências-faróis” [nota 17] . A partir do momento em que se consiga integrar todos os fatos sociais atomizados numa totalidade, a antropologia poderá ser vista como um sistema global de interpretação que “explica simultaneamente os aspectos físico, fisiológico, psíquico e sociológico de todas as condutas e, no centro dessa totalidade o corpo humano…no cerne corporal o inconsciente” [nota 18] .O acesso ao inconsciente só pode se dar pela mediação da linguagem. Antropologia, lingüística e psicanálise imbricadas na produção do estruturalismo como um “movimento” importante na historia do pensamento ocidental, francês, no meado do século 20.

Desse momento inicial o estruturalismo se expandiu a muitos domínios. Em algum momento ou foram “estruturalistas”, ou, no mínimo, estiveram presentes e foram influentes nesse debate : Merleau-Ponty, Piaget, Foucault, Althusser, Barthes, Derrida, Greimas, Jakobson, Deleuze, Lacan, Bourdieu, Vernant, Kristeva, Todorov, Dumezil.

Não são poucos, por consequência, os textos sobre o “estruturalismo”. E em cada um se descobre que muitas concepções diferentes – quando não divergentes – são assim nomeadas. Não é por outro motivo a sugestão de Lepargneur, que seria melhor nomeá-lo como “estruturalismos”.

Mas, como é preciso prosseguir e para isso, fazer escolhas, tome-se um texto que, nesta altura, logo pelo seu título quase que se justifica por si mesmo: “Em que se pode reconhecer o estruturalismo?” [nota 19] de Giles Deleuze, escrito no calor da hora com a sua conhecida perspicácia.

Um estruturalismo

Escrito em 1967 mas só publicado em 1972 Deleuze se propõe a “somente extrair certos critérios formais de reconhecimento [do que se caracterize como “estruturalismo”], os mais simples” [nota 20].

O primeiro critério que estabelece para que algo possa ser reconhecido como estruturalismo é que a estrutura, em sua natureza é simbólica, isto é, não é real nem imaginária. Como simbólica não é uma forma sensível, nem uma figura da imaginação, nem uma essência inteligível. Não pode ser confundida com elas. Está numa espécie de “ordem” ou “reino” em que não pode ser reduzida a aquelas duas e é, a seu ver, mais profunda que elas: o real e o imaginário e suas respectivas relações seriam sempre engendradas depois, pelo próprio funcionamento da estrutura. A estrutura teria essa característica comum com a linguagem, de estar no reino simbólico. Como ela, institui um “real”, configura um “imaginário”.

A idéia dessa “ordem simbólica” que institui a realidade das relações humanas vem da leitura de Saussure feita por Levi-Strauss, pela qual o significante lingüístico tomado isoladamente não possui qualquer ligação interna com o significado. O significante só ganha significação por estar integrado num sistema significante , que se caracteriza por “oposições diferenciais”. A “ordem simbólica” permite tomar o significante independentemente do significado. E é por isso que tentar definir o simbólico se torna um problema: seria tentar buscar atribuir um significado a aquilo que por definição é significante não significado.

A natureza simbólica da estrutura é o que cria a possibilidade de toma-la como método. Como a linguagem, poderá ser concebida como um conjunto significante, uma hipótese, uma ficção.

O segundo critério explicita que a estrutura tem um sentido de posição. Os elementos que constituem uma estrutura não têm uma designação extrínseca (não tem relações de referencia com objetos estranhos a ela) nem uma significação intrínseca (um significado por si mesmo, uma semântica própria) [nota 21].

Um tópico da EP não é nomeado por algo – diga-se – “existente” que

estaria lá, na realidade, no mundo concreto ou mesmo na imaginação. Eles são “lugares” de um espaço propriamente estrutural, isto é, “inextenso, pré-extensivo, puro statium constituído por aproximações como ordem de vizinhança” [nota 22]. Um tópico estrutural, ele mesmo, só se relaciona com outros tópicos, não tem sentido fora do universo estrutural, de seu “reino”.

Como elemento da estrutura, um tópico, como por exemplo “Termos Agendados no Intelecto” (Tópico 6 da EP), só “existe” como parte da EP, como uma posição de observação, sem conteúdo e sem referente, mas fazendo parte dela, constituindo-a, em sua relação com os outros tópicos. Na EP enquanto estrutura potencial, isto é, quando ainda não atualizada, não efetivada, não há relação do tópico “termos agendados no intelecto” com qualquer “termo”, qualquer “agendamento” ou qualquer “intelecto”, estando apenas como uma posição na estrutura, como um lugar de observação, local do qual se observa.

O importante é que os lugares no espaço estrutural são anteriores em relação às coisas e seres reais que os ocupam , assim como aos papéis e aos acontecimentos, sempre um pouco imaginários que aparecem necessariamente quando são ocupados.

O terceiro critério é o diferencial [différentiel] e o singular. Onde há estrutura há multiplicidade e há singularidades: “Os elementos simbólicos [os tópicos] e suas relações determinam a natureza dos seres e objetos que vêem efetua-los” [nota 23] . No caso da EP a combinação entre os tópicos de uma pessoa poderá, diferenciando-a, caracteriza-la.

E, inversamente, “as singularidades formam uma ordem dos lugares, isto é, cada pessoa, em seus comportamentos e atitudes, como que determina a “ordem dos lugares” nas relações tópicas, seus pesos, sua importância.

Em outras palavras “a determinação recíproca dos elementos simbólicos [dos tópicos estruturais] prolonga-se, deste modo na determinação completa dos pontos singulares que constituem um espaço correspondente a esses elementos” [nota 24] . Deleuze diria que os tópicos “encarnam-se” nesta pessoa assim como esta pessoa “atualiza” estes lugares, esta combinação tópica na estrutura.
Deleuze dirá que as “singularidades correspondem com os elementos simbólicos e suas relações mas não se assemelham a eles. Diríamos, antes, que elas “simbolizam” com eles” [nota 25], a pessoa é como que “simbolizada” por essa relação tópica.

O 4º critério é o diferenciador[différenciant]e a “diferençação” que aponta a distinção entre o virtual e o atual. As estruturas não são atuais em si mesmas, mas o são naquilo em que elas se encarnam. A EP só será EP quando for EP de tal pessoa.

Já como “virtuais” as estruturas, não são por isso “irreais, uma vez que o virtual mesmo não sendo atual é real e é ideal, ainda que não por isso seja abstrato…O virtual tem uma realidade que lhe é própria, mas que não se confunde com nenhuma realidade atual, com nenhuma realidade presente ou passada; ela tem uma idealidade que lhe é própria mas que não se confunde com nenhuma imagem possível, com nenhuma idéia abstrata. Da estrutura diremos: real sem ser atual, ideal sem ser abstrata” [nota 26]

A EP como virtualidade é como a estrutura de uma “pessoa em geral” [se isto não fosse impossível – a “pessoa em geral”] que possibilita determinar uma virtualidade de coexistência de elementos simbólicos – os tópicos – que preexiste às pessoas em que se atualizarão, se encarnarão. “Da estrutura como virtualidade, devemos dizer que ela é ainda indiferenciada, embora seja inteira e completamente diferenciada. Das estruturas que se encarnam nesta ou naquela forma atual (presente ou passada) deveremos dizer que elas são diferenciadas, e que atualizar-se, para elas, é precisamente diferenciar-se…..Convém observarmos que o processo de atualização sempre implica uma temporalidade interna, variável segundo aquilo que se atualiza… o tempo é sempre um tempo de atualização, segundo o qual se efetuam, em ritmos diversos os elementos de coexistência virtual ….o tempo vai do virtual ao atual, isto é, da estrutura às suas atualizações, e não de uma forma atual para outra forma” [nota 27].

Parafraseando Deleuze, a EP é, em si mesma, esse sistema de tópicos e de relações diferenciais, mas ela também permite a diferenciação da pessoa na qual ela se atualiza. “Ela é diferencial em si mesma e diferenciadora em seu efeito” [nota 28]

.

O quinto critério é o que diz que toda estrutura é uma série, que “só se põe a mexer, só se anima”, só “funciona” em série. Cada organização tópica, cada momento estrutural se refere a um outro momento estrutural que se definirá por uma outra combinação entre os tópicos.

Quando, por exemplo, um partilhante relata que bateu o carro porque estava “fora de si” (Tópico “Comportamento e Função”), tomado por uma emoção incontrolável (Tópico “Emoções”), após os comentários depreciativos feitos por sua mulher (Tópicos “Interação de EP” e “O que acha de si”) por não ter conseguido a promoção profissional que esperava (Tópico “Busca”), atualizando um arranjo estrutural tantas vezes (um “padrão”) vivido-relatado em sua história de vida. Por um lado a EP deste partilhante poderia ser caracterizada pelo peso do tópico “Interação de EP”, mas, ao fazer isto – dar este peso – se estará pressupondo a existência da série, uma vez que haverá situações vividas em que o arranjo tópico não estará influenciado por uma interação com uma pessoa (ou, em outra linguagem, uma “EP”) como a do exemplo, ou poderá estar influenciado de modo positivo.

Neste caso há uma outra “escolha de elementos simbólicos de base e das relações diferenciais em que eles entram…mas ainda pela constituição de uma segunda série, ao menos, que mantém relações complexas com a primeira…e se a estrutura revela um campo de problemas, é no sentido em que a natureza do problema revela sua objetividade própria nesta constituição serial” [nota 29] Uma estrutura só se põe a mexer, só se anima, só passa a “funcionar”, a criar diferenças, quando se dá a observar, quando se constitui em uma série. A condição para a observação sincrônica da EP é a existência da perspectiva diacrônica.

O sexto critério é o da “casa vazia”. Para Deleuze a estrutura envolve um elemento ou um objeto paradoxal, que não cessa de circular pela série e que constitui o ponto de convergência dos “momentos estruturais” divergentes. Esse “elemento” está sempre deslocado com respeito a si mesmo, sendo a sua propriedade não estar onde se vai busca-lo e encontra-lo onde não está, por isso ele “falta a seu lugar”. Ele dirá que não há estruturalismo sem este “grau zero” que, estando em toda parte, produz o sentido em cada série e não deixa de desfaze-la. Esse “objeto” não é assinalável, isto é, não é fixável em um lugar identificável em um gênero ou espécie.

Eis porque Deleuze comenta que a questão de “em que se reconhece o estruturalismo” conduz à posição de algo que não é reconhecível nem identificável. É portanto um paradoxo, pois, como seria possível reconhecer um elemento sem identidade?

É certo que o estruturalismo não poderá responder à pergunta sobre a sua própria natureza em termos de identidade. Para Deleuze é isso que revelaria a dimensão inconsciente dos problemas colocados , o horizonte transcendental aberto e problemático.

Enviar para a “dimensão inconsciente” seria fundamentar precisamente em algo que por definição é incaracterizável, indeterminado. Como sarcasticamente pergunta Umberto Eco, seria enviar para “…um manancial indeterminado que permite todas as configurações possíveis, até mesmo as que se contradizem entre si?” [nota 30] e que ele mesmo responde com ironia, ao dizer “quando para o pesquisador surge uma definição estrutural em cujos termos um fenômeno novo não pode ser incluído, se não conseguir ele renunciar à idéia de que a estrutura que individuara era a definitiva, só lhe resta renegar o fenômeno aberrante” [nota ] [nota pg 300]. Uma concepção do “estruturalismo que se erija em visão filosófica” levaria à “explosão da própria idéia de estrutura” [nota 31].

Aqui, a leitura de Deleuze sobre o estruturalismo parece fazer água, não sobreviver. E se a observação for mais atenta, é precisamente onde o estruturalismo vai buscar seu viés ontológico, o “grau zero”. Perde sua força por querer ser mais do que é. Por mais admirável que seja seu esforço retórico, a “casa vazia” só será o que é: o lugar do vazio, questão ontológica, não constituinte de uma idéia de estrutura que se sustente.

O sétimo critério diz do “sujeito estrutural”. O estruturalismo não é um pensamento que suprime o sujeito, como tantas vezes foi dito, mas é um pensamento que o reduz e o redistribui, que questiona a sua identidade, que o dissipa e o faz passar de lugar em lugar, sempre nômade, feito de individuações impessoais, ou de singularidades pré-individuais.

O estruturalismo é inseparável das obras que cria e mais que isso, é uma prática que está em relação com o que interpreta. Daqui, para Deleuze, o potencial criativo, inovador e polemico do estruturalismo.

Na questão sobre a gênese Deleuze cunha o termo “gênesis estática” para nomear o processo de geração sem dinamismo , que não vai de um termo atual a outro termo atual no tempo, mas, do virtual à sua atualização, isto é “da estrutura à sua encarnação”. A estrutura é virtual [ideal, potencial, simbólica] em si mesma mas se atualiza [se efetua, se encarna, se concretiza] em relações empíricas , espaço-temporais. Nesta passagem de sua pura virtualidade [em que é diferenciada – différentiée] para seu “ser” atual [processo em que a estrutura se diferencia – différenciée] é o momento propriamente produtivo, gerador, criador da estrutura [EP]. E assim se dissolve a contradição aparente entre a estrutura e seu aspecto genético, desde que se entenda por gênese a atualização do virtual, a encarnação das relações ideais, a efetuação empírica do incorporal.

O virtual não é o “possível”. O virtual não é irreal, não se opondo ao real mas se opõe ao atual. A estrutura é a realidade do virtual. O processo que corresponde ao virtual é o da atualização e não o da realização: o possível se realiza mas o virtual se atualiza. Atualizar-se é sinônimo de diferenciar [différencier] integrar, resolver. Ao atualizar-se se faz por diferenciação, por divergência.

A atualização é sempre uma criação de linhas divergentes que correspondem, sem semelhança, à multiplicidade virtual. Em relação ao fenômeno, a estrutura comporta acontecimentos ideais que se cruzam com os acontecimentos reais e que de certa forma [esses acontecimentos ideais] determinam o fenômeno [através da linguagem].

Na história do pensamento houve um momento [de 1945 a 1970, aproximadamente, na França] em que tudo parecia convergir para uma estrutura. O mundo era olhado como uma estrutura. Estrutura e estruturalismo. Estruturalismo ou estruturalismos. Não havia um programa único. O que havia em comum era a presença da idéia de estrutura.

Como nas reações pendulares, de critério que serviria para qualquer coisa, passou-se a desprezar-se qualquer modo de uso da noção de estrutura.

Um outro modo de estruturalismo

Humberto Eco na Introdução de seu “Estrutura Ausente” [nota 32] afirma que se fosse indagado se seu livro é “estruturalista” ou “antiestruturalista” aceitaria “de bom grado ambos os rótulos”. E é esta afirmação aparentemente contraditória que permite observar de que modo a FC pode ser – e não ser – estruturalista.

Ele seria ”antiestruturalista” para toda tentativa de se tomar “estrutura” como filosofia ou como ontologia, como um momento “intermediário” de uma cadeia que teria no fim uma estrutura mais elementar, oniexplicativa, garantidora, una. As que tomem estrutura como instrumento para se chegar a universais, seja ao “ser-do-ente”, aos “mecanismos universais da mente”, ao “espírito humano”, ao “inconsciente”, a uma “realidade última”. A um “pensamento único”, ao qual se reportaria o “pensamento diferente”, ou ainda a um ideal positivista de uma explicação total, de uma lógica objetiva de um pensamento universal.

E ele seria estruturalista quando a estrutura for vista como um método [nota 33], como instrumento hipotético que permite “experimentar os fenômenos para conduzí-los a correlações mais vastas” [nota 34] . Sempre ciente de que se trata de uma “operação de laboratório”, uma construção da inteligência investigativa. Sabedor de tratar-se de uma “ficção útil”, uma imobilização temporária de aspectos da experiência, “modo de falar homogêneo de fenômenos diferentes” [nota 35].

A clínica é o lugar do singular. Este é o principio ético basilar. Aqui trata-se, por observação apurada, dos modos de viver da pessoa. Modos que são só seus, numa espécie de organização pessoal absolutamente distinta de qualquer outra. Esse seu modo foi sendo traçado através de suas inter-relações com o(s) mundo(s), consigo, com o(s) outro(s) desde o nascimento até a atualidade.

O desafio do clínico é o de se aproximar dessa singularidade [nota 36]. A aproximação se faz através das linguagens [nota 37] , num complexo processo de constituição do outro para si [nota 38] . Ainda que o constituído seja fugidio e impermanente.

São enormes as dificuldades para isso. E não é por outra razão que a medicina e a psicologia [nota 39] partem de um rol de patologias, tipologias ou critérios nosológicos, em busca de formas de aproximação ou caracterização desta pessoa, deste “paciente”. A partir da detecção, também através das linguagens, de comportamentos vinculados a esses padrões classificatórios (os sintomas) caracterizam o “caso”. A pessoa passa a ser vista como uma combinação que precisa ser encaixada em algum padrão ou combinação de padrões. O modo de conhecimento se dará por analogia a outros casos, assemelhados, agrupados em protocolos, reduzidos no limite a prototipos.

Essa dificuldade, entretanto, pode ser minorada e, a aproximação com a singularidade desta pessoa pode ser facilitada justamente pela utilização de uma estrutura, de um método estruturalista. E que tenha a natureza de um instrumento operatório, de um recurso provisório, hipotético.

O que se obtém é uma espécie de retrato dinâmico dos muitos modos em que a pessoa se constitui. Trata-se de um saber por homologia em que se reúne uma multiplicidade de fenômenos com características comuns. Uma espécie bem precisa de operação, que, ao simplificar, não empobrece obrigatoriamente as realidades, os fenômenos narrados e captados. Processo fadado à incompletude, continuamente carente de atualizações.

A EP é um modelo, um “artifício de montagem” [nota 40] que permite ao clinico nomear de modo homogêneo coisas diferentes. O partilhante narra sua história, atualiza suas vivencias, através de suas linguagens próprias. O filósofo clínico separa-as a partir das categorias [nota 41] (a “coleta categorial”), aprimora essa observação (a “divisão”) e busca especificar o que não lhe parece claro (o “enraizamento”). Com esse material atualiza, “monta”, constrói, “preenche”,”encarna” a EP dessa pessoa. Das múltiplas vivências narradas, de tudo o que ouviu, transporta, transfere para formas que são aparentadas, que são formadas a partir de um pensamento aproximado, parecido, semelhante, homólogo. Esse transporte é de experiências que já vêm articuladas, já são captadas em relações pré-estabelecidas que se conformam em relações tópicas, com pesos ou importâncias específicas.

A idéia de estrutura que informa a EP é a de “um modelo como sistema de diferenças..[que se caracteriza pela] transponibilidade de fenômeno para fenômeno e de ordens de fenômenos para ordens de fenômenos diferentes” [nota 42] .O uso da estrutura é um recurso de simplificação para a multiplicidade dos fenômenos de modo a preservar as suas diferenças, os seus traços fundamentais. Um modo de lidar com o “continuum” da vida, da seqüência infinita de vivencias, fluxo interminável – muitas vezes quase sobrepostas – captáveis parcialmente através dos inumeráveis modos das linguagens possíveis.

Por sua natureza de virtualidade – como diz Deleuze – a estrutura comporta a multiplicidade que não se deixa levar a nenhuma identidade, seja quanto ao sujeito-objeto da EP – o partilhante, seja ao sujeito construtor da EP – o terapeuta. O outro do terapeuta, quando visto através da estrutura, de certa forma pré existe aos termos que atualizam essa estrutura. Como virtual a estrutura será atualizada, efetuada por um sujeito real, variável. Deleuze também chama a atenção para o “outro-a-priori”, mas aí já se estará próximo a ontologizar a estrutura algo q está fora da intenção deste artigo e certamente fora da possibilidade de se realizar.

O estruturalismo da filosofia clínica não é ontológico, é metodológico, caminho em direção a. E, para existir e ser legítimo, não precisa da ontologia. Ontologia e clínica são campos com poucas proximidades. Não tem sentido, para a clínica, a discussão de uma “estrutura em geral” ou de uma estrutura a priori. Em clínica a idéia de estrutura não se sustenta como “princípio hipostatizado” [nota 43] ,mas só como “instrumento”, como diz Umberto Eco [nota 44].

Na clínica o uso da EP produz um saber que não busca por si solução, mas sim aprendizados. Ela é só uma instancia que permite problematizar de modo organizado, sem propor ou representar algo que tenha a característica de um reconhecimento definitivo. Não parte de um saber já sabido, mas de indagações que possibilitem novos modos de ver as vivências e experiências humanas, novos modos de aprendizagens. Modos de ver a vida no vivido. O uso da EP permite a observação a partir da produção de diferenças e não de oposições. Ela propõe sentidos temporários aos fenômenos. Que, afinal, também o são.

Os sentidos não serão principio nem origem, serão resultado que não têm intenção de permanência. Não se descobre, não se restaura, não se refaz sentidos. Os sentidos são sempre novos. O desafio será produzi-los mediante outras formas. Sem ir às alturas (metafísicas) ou às profundezas (ontológicas). Nas fronteiras. Sem referencia a qualquer totalidade original.

A filosofia clínica não é e não faz propriamente filosofia. Ela é um método ou um caminho clínico, baseado na tradição da filosofia ( e não da medicina e, por filiação histórica das áreas “psi”). Não faz metafísica, ontologia, fenomenologia ou hermenêutica. Não é uma clínica provinda de protocolos estatísticos, “indistinta”. Não sendo isoladamente clínica a-crítica ou filosofia, institui-se como filosofia clínica, como um modo próprio em que a separação de seus termos (filosofia e clínica) desfaz a possibilidade de seu entendimento. Mas não será por isso que se absterá de lidar com teorias, com linguagens diferentes. E nessa lida, por diferenças, se dá a perceber, faz afirmações.

E, certamente, tem modos pressupostos de ver o mundo, mas não se institui como modo de ver o mundo. E é no estrito respeito ético para com a singularidade das demandas de seu partilhante que ela, como método clínico, se exerce. E em seu exercício é este modo muito próprio de incorporar os saberes provindos dos estruturalismos na EP que lhe dá possibilidade.

A estrutura, como método [caminho para], é parte constitutiva da filosofia clínica – sem ela não há FC. E é este o seu modo próprio de ser “estruturalista”.

NOTAS

nota 1 – Packter, Caderno A, pg 16

nota 2 – Lepargneur, pg 4]

nota 3 – Pouillon

nota 4 – Pouillon, pg 7

nota 5 – Eco, pg 252

nota 6 – Entre outras vantagens evita-se o escorregadio caminho das discussões sobre identidade, tão presentes e insatisfatórias nas discussões das teorias psicológicas

nota 7 – este é o ponto de observação nomeado como “Matemática Simbólica”

nota 8 – o gene do que é auto

nota 9 – como no tópico “Matemática Simbólica”

nota 10 – como no tópico “Autogenia”

nota 11 – “A Atividade Estruturalista”

nota 12 – escreve em 1962

nota 13 – Barthes, pg 19

nota 14 – Dosse

nota 15 – citação Dosse pg

nota 16 – citação Dosse pg

nota 17 – Dosse pg

nota 18 – Dosse pg

nota 19 – Deleuze, pg

nota 20 – Deleuze, pg 222

nota 21 – o momento de “preenchimento”, em q se realiza a “homologização” não é ainda estrutura, só se constituindo como tal, quando já estabelecida

nota 22 – Deleuze, pg 225

nota 23 – Deleuze, pg 229

nota 24 – Deleuze, pg228

nota 25 – Deleuze, pg 229

nota 26 – Deleuze,pg 231

nota 27 – Deleuze,pg232

nota 28 – Deleuze, pg 233

nota 29 – Deleuze, pg236

nota 30 – Deleuze, pg 300

nota 31 – Deleuze, pg 301

nota 32 – Eco, pg XXI

nota 33 – “…esta palavra “método” é formada do grego ‘meta” – que significa “além”, “para lá” – e de “odos” – “o caminho”. Método é o caminho que leva a algo, o caminho pelo qual estudamos um assunto”, conf Heidegger, pg 128

nota 34 – Eco, pg 362

nota 35 – Eco, pg 294

nota 36 – ele também uma singularidade

nota 37 – tomar-se-á aqui, “linguagem” como qualquer forma de comunicação, de modos de ação, postos “em comum” entre um outro

nota 38 – aqui se tomará só a constituição do partilhante para o

terapeuta, ou “no” terapeuta

nota 39 – tomadas aqui de modo genérico, cometendo a injustiça de estar colocando num mesmo balaio coisas muito diferentes

nota 40 – Badiou, pg

nota 41 – as categorias, na Filosofia Clínica, são: assunto, relação, circunstancia, tempo e lugar

nota 42 – Eco, pg 258

nota 43 “abstração falsamente considerada como real”

nota 44 – Eco, pg 300

BIBLIOGRAFIA

Obras Citadas

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Todorov, Tzvetan – “Poética Estructuralista” – Editorial Losada, Madri, Espanha, 1ª Edição, 2004

Alguns lances sobre a linguagem na prática da filosofia clínica

Abro a porta, ele me estende a mão, me olha, diz “tudo bem?”, entra, dirige-se à mesma das 3 poltronas e senta. Me pergunta de novo: “tudo bem?” e começa a falar. E a fala flui. São sons que saem daquela boca, sob a forma de palavras, de frases. E há tons diferentes e há volumes e ritmos diferentes.
Seus olhos parecem me ver, parecem também expressar algo. Ele tem uma postura física ereta, com o corpo quase imóvel. Faz pequenos gestos com as mãos e altera o tom da voz, como a dar ênfase, aqui e ali, ao que diz. Predominam as palavras, as frases. Ouço.
Como eu posso compreender os sentidos que ele procura me comunicar? Ao falar ele parece querer tornar comum – a mim e a ele – o que só era vivido por ele.
Usa palavras, forma frases com elas. Me observa, talvez procurando saber pelas minhas menores reações, se as palavras que escolheu indicam em mim aquilo que queria expressar.
Aquilo? O vivido, o sentido. O sentido do vivido.
As palavras transportam o sentido? Mas como? Como uma determinada palavra se impregna de um sentido? Mas como uma coisa material – um ruído, um som, um gesto, um desenho – pode carregar o afeto de algo vivido? E ser apropriado por outro (por mim)?
As palavras e as frases que ele usa parecem fazer parte de um repertório comum a ele e a mim.
As palavras – cada uma delas – estão numa espécie de estoque pessoal de palavras (um modo de memória) , que está como que vinculado aos estoques de muitas outras pessoas, formando uma comunidade interligada de estoques, uma comunidade lingüística. Ele, eu e os outros, ao longo de nossas histórias pessoais nos apropriamos (há quem chame a isto de aprendizado…) paulatinamente delas (palavras), num processo intrigante.
Os momentos iniciais (em geral na infância, entre o 1º. e o 2º. ano de vida) dessa apropriação de uma forma determinada (de um som na fala, de sinais corpóreos e outros) são vividos em relação com alguém que “indica” um sentido. Esse “alguém” vincula uma forma (sonora, gestos, expressões, etc) a algo que é percebido pelos sentidos do “outro”. E repete e pede que repita.
A repetição de uma forma similar, como a palavra, por exemplo, em momento posterior, permite a re-apresentação de algo percebido pelos sentidos, naqueles momentos originários. A palavra, agora, tem sentido, se vincula a algo, a algum afeto vivido. E o sentido, como na origem, busca se fazer comum, comunicar.
As palavras que este partilhante utiliza, em sua maioria, são sons que re-conheço, isto é, que fazem parte de meu estoque de palavras (como parte da comunidade lingüística, da qual ele também faz parte).
Na nossa con-vivência, aos sentidos que as palavras tinham em mim foram sendo agregados outros sentidos que se produziram – e se produzem – no nosso contato pessoal. Em mim e nele. Nele ao seu modo em mim ao meu. O sentido é algo vivo, plástico.
A mim, como filósofo clínico, cabe apreender os sentidos veiculados através dessa linguagem que vai sendo realizada nesta relação. No início, não há in-timidade, não há o contato com o que vem da timidez (do latim “timidu”, do que está ligado às aflições no enfrentamento da vida, aos temores existenciais).
Forma-se uma linguagem própria, nossa. Quando usa a palavra “amor”, por exemplo, fala do modo como ele vive ou viveu as suas relações, físicas, sensoriais, sexuais. E só. Para as relações que envolvem afeto usa outras palavras. Ele e eu, com ele.
Quando ele fala em “dia chuvoso”, sei a emoção que ele procura embutir nessa expressão exatamente. Tive a oportunidade de ouvi-lo expressar amplamente, por diversas vezes, importantes emoções similares vividas em “dias de chuva”.
Ou ainda, com outro partilhante, como o súbito enrijecimento físico, com o corpo ereto, tem o sentido de “fim da consulta”. Mas “corpo ereto, fim da consulta?”. Para nós é óbvio, o sentido é claro, límpido, afinal quantas vezes isso aconteceu entre nós? Inúmeras. E corpo ereto subitamente, só aconteceu para dizer isso: “tá na hora”.
As palavras podem ser vistas como fenômenos do mundo para indicar a presença sensível dos objetos que designam. Elas teriam um sentido isolado, sem necessitar de outras palavras para as explicar. Seriam palavras-objeto, cada uma podendo ser vista como uma afirmação. Mas esse sentido da palavra não foi dado, por assim dizer, por um poder independente de nós. E por isso de nada adiantaria uma espécie investigação científica sobre o significada da palavra. Uma palavra tem o sentido que lhe foi dado por alguém.
Esta pessoa à minha frente, tem seu modo singular de produzir sentido às palavras que usa. Esse modo foi e é composto por suas relações sociais, por suas formas de compreensão dos mundos que a cercam e pelos usos lingüísticos a que foi exposta e que, de diversas maneiras, incorporou como seus. Como eu, pelas minhas.
Ela escolhe, por assim dizer, palavras (e gestos, expressões, tons de voz) que podem veicular os sentidos que pretende expressar.
Ao fazer essa escolha ela coloca na palavra – que em si é inerte – sentido, significado, algo vivo. É, portanto, pelo uso que a palavra adquire vida, comunica, possibilita que algo se torne comum a quem fala e a quem ouve. As palavras, restritas à sua materialidade, são apenas sons, desenhos gráficos – rigorosamente, nem palavras seriam.
As palavras, as frases, se entrelaçam no discurso, na comunicação, no falar um com o outro, formando o sentido. O sentido das palavras se faz pelo seu uso. Para cada um. Cada qual com seu estoque particular em que uma palavra pode guardar muitos sentidos.
O partilhante na clínica através de suas expressões faz (ou pode fazer) referências que me possibilitam, como observador, vislumbrar o que está em seu espírito. Eu posso, como clínico, estar num lugar em que o que importa na linguagem não é mais a sua capacidade de nomear coisas, mas, a de me possibilitar por palavras, frases, gestos, tons de voz, entrar em contato com aquilo que ele me traz de si.
A partir de seu uso eu posso descobrir o significado, por exemplo, de uma vassoura. O significado de vassoura não está vinculado vivencialmente com o sentido do dicionário, lexicográfico. A vassoura significa na medida em que tem algo a ver com minha vida, com meus interesses, como a uso (objeto ou pensamento).
Um partilhante, pintor, artista plástico, relata a importância da vassoura, em certo período, no seu processo de pintura. Durante os anos em que viveu em Berlim, pode trabalhar num enorme atelier, que lhe possibilitou produzir obras de grandes dimensões. Seu instrumento primordial para pintar eram as vassouras. Relata com vívida emoção as múltiplas e surpreendentes possibilidades plásticas que elas lhe proporcionaram. Com o uso constante as vassouras passaram a ter, o mesmo sentido, a mesma familiaridade que outros pintores têm com os pincéis, quando trabalham em menores dimensões. As vassouras passaram a ter um sentido muito distinto do que até então tinham tido para ele, e nem por isso deixaram de ser chamadas de vassouras. Quando durante as consultas pensava ou dizia “vassoura” era a este seu familiar instrumento de expressão plástica que a palavra se ligava.
Outro, desenhista e ilustrador, tem como um de seus personagens principais uma bruxa. Foram muitas as consultas em que o tema principal foi a sua vassoura voadora. Ela passou a ser o veículo pelo qual ele se permitia imaginariamente sair de sua angustiante situação atual para uma outra, a princípio mágica, em que ele encontrava grande satisfação. Nesse período, algumas vezes logo no início da consulta, me pedia permissão para “pegar a vassoura” e se transportar para aquele mundo. Nesse processo, a seu modo, podia, trazendo muitos elementos vividos nesse “outro mundo”, refazer os sentidos de suas difíceis vivências presentes no mundo cotidiano. Desde então, para ele – e para mim, com ele – “pegar a vassoura” passou a ter um sentido bastante preciso.
Ainda outra, recém casada, me conta:” finalmente! Tirei a vassoura de trás da porta!”, referindo-se, com isso, aos relatos nas consultas anteriores, das situações aflitivas que a hospedagem de sua sogra, lá do interior de Mato Grosso, vinha lhe trazendo. E que a vassoura, lá, “com toda certeza, ajudou a espantar”. Naqueles dias, quando ela pegava a vassoura para colocar atrás da porta, não era o instrumento de varrer sujeira que ela tinha em mãos: mas o de varrer sogra pra fora…
É essa relação com o seu uso que provê, em última instância, o significado para as coisas. A possibilidade de dar sentido às coisas pelas palavras, estabelecer significados lingüísticos, depende de uma capacidade, do sujeito que fala, de transitar pela língua, uma capacidade de usar/produzir signos que sejam compreensíveis ao(s) outro(s).
No uso da nossa língua do dia a dia seguimos as regras da gramática, que mesmo não determinando o nosso comportamento, nos dá os critérios para o seu uso. É pelo hábito, por processos de ação e reação no interior de uma comunidade lingüística que a aprendizagem de uma regra se realiza. Esse aprendizado das regras se dá no interior de quadros e situações muito diferentes.
O que é azul para uma pessoa? O que ela vê realmente quando diz ver uma coisa azul? Eu posso ver num mural uma cartolina colorida em que está escrito “a cor desta cartolina é azul” e ao olhar para uma mancha fazer a correspondência de que ela tem a mesma cor, portanto, posso dizer que esta mancha pode ser chamada de azul. Mas azul não é deduzida da impressão colorida que recebo de minha percepção. Ela obedece, portanto, uma regra, que em grande parte das vezes nem sabemos qual é.
As regras são, ao mesmo tempo, necessárias e convencionais. E, por natureza, públicas. É impossível crer e seguir uma regra a título privado, porque para ser estabelecida e ter um valor, tem que poder ser avaliada e ser adotada pelos outros. Uma linguagem privada, isto é, uma linguagem que necessariamente não é falada e compreendida a não ser por uma pessoa, é um non-sense – porque linguagem para ser linguagem pressupõe critérios de aplicação comuns.
Todas estas observações, importantíssimas na prática da filosofia clínica (tomadas de Ludwig Wittgenstein), dão um potente argumento contra o solipsismo – em que, a única realidade do mundo é a de um “eu” subjetivo.
Com esta concepção todo um modo de conhecer se estabelece. Não é mais através de uma interioridade escondida ou de um mundo íntimo de idéias e de sensações. Desfaz-se a certeza cartesiana, onde o sujeito está perfeitamente consciente de suas sensações e de seus pensamentos (penso logo existo). No lugar do “eu” abstrato, metafísico, surge uma pessoa de carne e osso, que já faz parte de uma comunidade, que em sua natureza é linguística.
Em clínica utilizamos – ele e eu – as regras gramaticais da língua que praticamos no nosso dia a dia e, ao mesmo tempo, estabelecemos outras, que são só nossas. Nascidas nesta nossa relação. Uma língua nossa, uma linguagem. Para um “público” restrito – ele e eu – mas não “privada”, de um “eu”, solipsista. Uma linguagem que é familiar, talvez, às vezes, só a ele e a mim.
Na situação clínica, este partilhante à minha frente vive dimensões de vida que são anteriores a qualquer compreensão que ele ou eu possamos ter, ali, na consulta. Wittgenstein para ilustrar esse fenômeno usa um desenho que dependendo de onde você olha (da “visada” do observador), ora pode ser um pato, ora uma lebre. Se, de um mesmo objeto – o desenho – pode-se ver 2 coisas diferentes, então a experiência de ver o desenho/objrto não se constrói só na nossa percepção, como quer boa parte de nossa tradição.
Não há um ver, simplesmente. Esta experiência coloca o “ver” entre a “visão” e o pensamento. Um ver “como”, que, portanto, já de antemão é conceitual. Neste sentido, uma questão filosófica. O que se vê não é “qualquer coisa”. É uma “coisa” (o pato) ou outra “coisa“ (a lebre). “Ver”, portanto, muda de sentido, é um outro tipo de experiência, que advertindo um aspecto, leva o observador a modificar a “visão” de um objeto, que, ele mesmo – objeto, não se modifica, é o mesmo.
Assim, ali de onde uma frase surge já há um mundo em movimento, que de algum modo já compreende usos possíveis da linguagem.O partilhante tem uma espécie de estoque de formas de linguagem, memórias de usos convividos (de uma palavra, p.ex), impregnadas de sentido(s). Esta pré-compreensão, anterior à construção da frase, nasce do que se pode nomear como o “próprio a si”, ou o “próprio de si”, singular, peculiar a ele. É desse lugar – enigmático à sabedoria humana, ainda hoje -que brota o sentido, se estabelece o significado que poderá ser com-partilhado.
Ao significar, escolher um signo para transportar o sentido, talvez já se produza algum nível de ruptura do pleno sentido original. Plenitude (desse “sentido original”) que deixa vagando no mar de uma subjetividade desconhecida, pedaços de si, como um náufrago, e que coloca os outros pedaços no barco da linguagem, seja como um passageiro, seja como um clandestino. Algo talvez escape: o sentido não cabe no significado. O sentido é individual; o significado é compartilhado. Mas os resíduos, eles mesmos, não constituem uma “subjetividade” de outra natureza. Não há porque supor que eles não se apresentaram, não se deixaram surgir, por efeito de uma força de caráter inibidor (como pressupõe boa parte das psicanálises). O caráter do que vem anunciado é fragmentado, parcial. Ele indica a aquele que ouve. Os signos, muitas vezes, trazem mais do que aparentam trazer.
Há que saber ouvir, deixar que os signos de seu estoque pessoal se impregnem desses sentidos, disso que vem pelas palavras, como passageiros ou como clandestinos. E neste ato, na escuta, seja de algum modo qualificada (a palavra) como vindo de um “estoque particular”, produzido e disponível nesta e para esta relação.
E talvez este seja o aspecto ético mais importante na clínica existencial no modo proposto pela filosofia clínica. Procurar ouvir o que vem de lá em seu(s) modo(s) próprio(s).
Para Wittgenstein a ética é aquilo que não podemos falar. Está no domínio do indizível, do insensato, inteiramente distinto do domínio da lógica e ciência – onde as proposições, através das palavras, já têm o seu sentido. A ética se refere aos valores originários, da existência e, mais amplamente, aos problemas da vida. O clínico, às vezes, se vê lançado contra as fronteiras da linguagem convivida, e nesse salto a ética é o que lhe resta. Apreender o que vem do outro a partir de si.
A arte, às vezes pretende ser uma tentativa de dizer o indizível. Em determinadas experiências estéticas a vivência pessoal de um espectador pode encontrar um ponto de acordo com o mundo que ele apreende em uma obra, como uma totalidade, tal como se apreende a expressão de um rosto ou a de um gesto. Estas são coisas que não se explicam, mas que se vive, se percebe. E que muitas vezes são ao mesmo tempo “comuns” ou públicas.
Linguagem e clínica. Agora, sim, já está um pouco mais qualificado o que é para mim, um filosofo clínico essa tal “disposição para a escuta”, essa condição para caminhar junto com esta pessoa à minha frente. Caminho que em grego é “odos” e para onde ele leva é “meta”. A filosofia clínica possibilita criar um método singular, para esta pessoa. Isso: singular, só dela. A partir de sua história, suas circunstâncias, seus modos de se relacionar, de viver, com sua estrutura própria de pensamento, seus modos de agir.
Esse pode ser o lugar da clínica. Aqui estamos ela e eu. Esse modo é irredutível a um modelo, a um tipo, ou mesmo a uma linguagem última. Dar conta dele, ou aproximar-se dele, é o meu desafio, a tarefa clínica.

A partir e em direção ao singular

Convido o leitor a sentar na poltrona do clínico.

Frente a si estará sentada uma pessoa que vem partilhar uma parte de sua existência. Como apreender o que lhe é próprio, para que a clínica se faça para ela?  Como partir de sua singularidade? Isto é possível? A minha hipótese é que a Filosofia Clínica é um método que permite partir do singular e ir em direção ao singular.
 
Nos Seminários de Zolikon (nota 1) Heidegger nota que a  palavra método é composta pelas palavras gregas “meta” que significa “além, para lá” e, a palavra  “odos” que tem o sentido de “caminho”. Em suas palavras: “método é o caminho que leva a algo…não se pode estabelecer de antemão, de que maneira o assunto determina a espécie de caminho que a ele conduz… que permite alcançá-lo”[nota 2].
 
O “assunto” traz um aspecto ético importantíssimo. Na FC a pessoa que vem à clínica é que  deve dizer  o que pretende. O assunto  imediato, trazido muitas vezes como uma queixa inicial,  funcionará temporariamente  como uma bússola,  orientando os primeiros movimentos do percurso. Aos poucos poderá – ou não – ser substituído por outros assuntos, mais constantes, assuntos que pode se tornar – ou não – único, e que se nomeará como “último”. Pode se caracterizar como um telos, presente como uma meta, ou uma ideia orientadora, explícita, implícita, clara ou obscura, próxima ou à distância. E assim poderá influenciar os acontecimentos, a cada vez,  num modo com  intensidade variada ,  que pode aproximar do que se dá aqui e agora,  o que é projetado na distancia do espaço ou do tempo. A cura seria o pretendido em sua variância (pretender: pré/antes; tender/inclinar) pelo partilhante.  A clínica está a serviço das aptidões dessa pessoa,  inclinando-se aos seus “para-que”. “O caráter do ser-apto é o de ter possibilidades e fornecer possibilidades”(nota 3).
 
Cada pessoa tem o seu mundo, produz o seu mundo. Assumo aqui a hipótese de Heidegger:  “o homem é formador de mundo” [nota 4]. O que lhe é próprio, a sua singularidade é seu modo de engendrar e formar o seu mundo.  Mundo seu, que é composto por um si: si-mesmo ou si-próprio.  Mas si-mesmo não é si-proprio: “mesmo” se emprega “no contexto de uma comparação e tem como contrários: outro, distinto, diverso…” [nota: 5] E  “próprio” é o seu mundo, as suas propriedades,  o que lhe é singular.
 
Um clínico que trata das questões existenciais, também compartilha a mesma natureza humana de quem se dispõe a cuidar. Também é formador de mundo, também tem a sua singularidade (si-próprio), também constitui a si e aos outros. No seu trabalho assimila os horizontes do outro aos seus horizontes, porém, sem fusão. A clínica é um modo muito característico de viver-com, de inclinar-se a esse outro, mantendo contato, mas, sem se confundir com ele. “Acredito que o contato…e tudo aquilo que pertence ao vínculo [interseção] participa de um saber inerente à espécie humana….é aquilo que une o próprio (o singular) do analista ao próprio do analisando” [nota  6]. Une sem tornar uno: aproxima. Como clínico eu preciso constituir uma alteridade e manter contato sem me con-fundir.
 
Como me aproximar desse mundo, desse outro, de seus caracteres, seu mix, seu tempero, seu temperamento? Como chegar ao que lhe é próprio, ao que lhe é singular?
 
Singular é algo que é aquilo que é de um determinado modo: a essência deste algo é o que lhe é próprio,aquilo que o define. “Jamais podemos tomar em consideração diretamente o fenômeno do mundo” [nota 7]. O mundo, o outro,  não se dão imediatamente como fenômeno.
 
A  FC  traz essa possibilidade de aproximação ao outro, ao mundo do outro, em seu método,  através da Estrutura de Pensamento, a EP [nota 8]. Ela oferece ao clínico esse recurso precioso para apreender o mundo desse outro, para se aproximar do que lhe é específico sem  misturar-se a ele. A EP é uma estrutura plástica, próxima ao que seria um modelo formal, que é pré – um prejuízo – mas sempre em (re) constituição, em re-aproximação. Cria-se com ela a possibilidade de uma certa permanência à natureza  fugidia do que é próprio a esse outro, a essa pessoa partilhante.
 
Isto é muito importante porque o homem não é apreensível  como um objeto completo. A plenitude de determinações é própria da ciência, porém, inadequada para a filosofia e com maior razão, para a clínica. O mundo humano não é lugar de completudes, de certezas. E não é por outra razão que, a despeito de suas pretensões de verdades definitivas,  são tão precários os resultados dos métodos clínicos científicos no trato com as questões existenciais.
 
Do ponto de vista do clinico, a EP é esse trabalho realizado de assimilação dos modos singulares da pessoa, em constante reelaboração,  sempre provisória,  por sua natureza humana transitória.  A EP é uma representação do outro para o clínico, tornando possível criar e manter uma alteridade, que permite constituir e observar o que  é singular nessa pessoa e ensaiar modos de intervenção, através da linguagem. E assim, exercer uma clínica a partir do singular. O “com” que se dá na clínica, é um elemento facilitador de exposição e de abertura de si, sem ser um gerador de fusão e de indistinção. Em seu modo de intervenção o clínico exerce uma ação com intenção em direção a alterações nos modos de viver da pessoa. Ele dá uma “dica”,  oriunda de um cuidadoso planejamento. E não é mais do que isso, porque sabe as limitações de seu saber, que a assimilação do que é singular é resultado de um fazer permanente e inacabado, partindo do frágil encontro com o outro.
 
Do ponto de vista do partilhante, na clínica,  cria-se um espaço existencial de exercício diferente para seu pensamento, para suas vivências íntimas. Lá, como formador de seu mundo, pode encontrar  para si modos de viver melhor. A clínica é para a pessoa um lugar inusual de acolhimento de seus próprios horizontes,  seus sofrimentos,  suas expectativas,  suas alegrias, suas vergonhas, seu tédio, sua angustia,  seus abismos, suas esperanças, suas frustrações, seus medos, suas fobias, seus sonhos, suas memórias, de seus assuntos, de seu mundo. E este caminho, só seu,  só se perfaz no que se poderia chamar de um pensamento clínico singular para si, singular a seu caso.
 
O pensamento clínico se refaz nesta relação singular que permanentemente se reposiciona, se reinventa;  não se totaliza num plural, desfazendo qualquer  unidade teórica ou conceitual. É preciso pensá-lo a partir da energia radical de sua singularidade, afastando o pensar técnico,  suspender mesmo as  teorizações universalizantes.  Aquilo que é criado  a partir desta relação singular dá  sentido  ao que é uma construção compartilhada. Deste compartilhamento parte uma dica/uma indicação que serve só a esta existência, em seu incessante formar mundo. Jung, um terapeuta experimentadíssimo não disse à toa que “cada relação clínica tem a sua própria teoria” [nota 9]. O que é realizado a partir de sua experiência, nesta relação clínica é criação de mundo para si, partilhante e, experiência para o clínico. Experiência que ele faz a partir de um movimento para fora – “ex” – em que contorna o mundo que se lhe apresenta – “peri” – e se volta ao que lhe é próprio – “encia”.
 
Ao clínico o que lhe incumbe é não falar para si e para o outro em nome da realidade ou do “em geral”. Não há uma realidade que se poderia colocar à disposição do partilhante, como uma espécie de referente ao qual as coisas poderiam estar ligadas, ou  a ele submetidas.Criar mundo, observar mundo está longe da noção de realidade. O real é uma ficção muito precária, porque quem a usa muitas vezes nem percebe que ela – realidade – é ficção. Os mandatários da realidade, entretanto, são poderosos: usam com inteligência e intransigência um modo de alteridade rígido, pelo qual esses outros criados a partir de si, devem obedecer aos seus mandatos em nome do geral, do comum, do que não admite os modos singulares de viver diferentes. No dia a dia do atendimento, o clinico precisa ser rígido na sua disposição metodológica de não recorrer ao “real”, ou ao geral, ou a qualquer  totalizador que se oponha ou dificulte as invenções de mundo, de singularidades.  Se o homem é formador de mundo, o singular é vigência e está sempre por ser feito, por ser retraçado. Pode surgir desta postura clínica  atenta ao singular,uma profunda transformação, vinda  desse convívio confiado. O singular, entretanto,  é descontínuo, precisa ser reinventado a cada vez,  vez por vez.
 
Formar mundo é labor próprio, criação e vivência em terreno singular. Clinicar é se curvar a esses mundos sempre em formação,  à sua  alteridade, ao que lhe é totalmente outro. E por isto não pode haver intencionalidade na escuta clínica. E por isso a importância aos modos dessa colheita pela escuta, em que a  atenção para o que é dito precisa estar flutuante, não dirigida. Admitir o q se oculta, as vigências que não se compreendem de imediato: o que é importante volta por meio dos infinitos recursos das linguagens. Um bom começo para o clínico é ir até o fim sem  admitir os “em-si”, em si mesmo,  podendo sustentar uma escuta ao incondicionado.
 
A clinica filosófica, respeitado o método,  é invenção, é um gesto. Não obedece a nada fora de sua própria circunscrição. Se dá neste viver-com, nesta vigência,  re-inventa  a cada passo.  Um gesto passivo: acolhimento ao outro em sua singularidade.  Ético em sua eticidade.
 
por Cláudio Fernandes


 
Notas
[1] – Heidegger, Martim; Seminários de Zolikon, ed Medard Boss; Ed Vozes, 2001, Petropolis, RJ, Brasil. Os seminários realizados por Heidegger, na cidade suíça de Zolikon, na casa do psiquiatra e psicanalista Medard Boss de 1959 até 1970, para um público, entre 50 a 70 participantes,  predominantemente de psiquiatras.
[2] – Heidegger, M; Sem Zolikon, pg 128
[3] –  Heidegger, M; Os Conceitos Fundamentais da Metafísica ; Editora Forense Universitária, 2006, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; pg 269
[4] – Heidegger, M; Conceitos Fundamentais, pg 12
[5] – Ricoeur, Paul; Si Mismo Como Outro;  Siglo XXI Editores, 2011, Cidad Del Mexico, Mexico; pg XIII; Ricoeur faz uma interessate distinção entre “idem”, como igual, idêntico, o mesmo, e “ipse”, que não implica nenhuma afirmação sobre um pretendido núcleo não cambiante da personalidade, como modalidades próprias de identidade
[6] – Zigoutis, Radmila; Vínculo Inédito; Ed Escuta,   , São Paulo, SP, Brasil; pg 37 e 38
[7] – Heidegger, M; Conceitos Fundamentais , pg 341
[8] – deixo de especificar o que é a EP, por me dirigir, predominantemente a um público de filósofos clínicos, que tem o domínio dessa noção central do método da FC
[9] – Junj, Carl Gustav; Memórias, Sonhos, Reflexões; Ed……Brasil; pg

O que é isso que se expressa?

Essa  pergunta  surgiu a partir do tema “expressividade” do 5º. Colóquio Nacional de Filosofia Clínica, realizado em Porto Alegre, maio de 2016. Apesar de  um pouco deslocado  do que certamente seria mais apropriado a  ser discutido – os modos de expressividade – pensei que  poderia ser proveitoso conversar um pouco  sobre “isso” que se expressa.

A noção de expressividade no ambiente da FC, é um tópico da EP- Estrutura de Pensamento –  e também um tópico do Quadro de Submodos, vale dizer, algo que faz parte da constituição e do modo de agir de uma pessoa.
Expressividade de um lado tem um aspecto mental, de outro se liga a  um âmbito material, corpóreo.
Na palavra expressividade o prefixo  “ex” indica um movimento para fora – neste caso do corpo material –  e, “pressividade”, que seria a atividade de pressionar, de fazer pressão. Pressionar, portanto, para fora. E pressionar é por definição “transmitir estímulos”. Talvez mais propriamente, empurrar estímulos; pressão é a força que faz com que os estímulos sejam movidos, transportados, transferidos de um lugar a outro. Os estímulos têm sua origem no próprio corpo material, no organismo ou fora dele. No mundo material são os impulsos nervosos, fenômenos ao mesmo tempo químicos e elétricos. Em outros jogos de linguagem – na medicina chinesa, por exemplo – os impulsos nervosos são nomeados como energia.
E será esse campo entre o mental e o corpóreo que me possibilitará trazer algumas ideias que venho desenvolvendo e que talvez tenham algum interesse para quem lida com o pensamento ou com a prática clínica.
 
Começo pela pergunta: O que é “isso”, a palavra “isso”?
Um pronome. “Pro” – o que vai em direção a; “nome”, linguagem.
 
“Isso” é uma palavra que indica – que dá a dica – sem dizer o que é.  Um pronome demonstrativo, que neste caso, diz, sem mostrar . Quando eu falo “isso”,  já estou na linguagem. Digo mas não mostro,  não estou mostrando um objeto sem nome , mas dando um lugar a ele no que eu falo. Para dar uma dica sobre “isso” eu  preciso antes falar a palavra  “isso” para, então,  poder começar a mostrar o que é que eu quero dizer com “isso”. É como se eu desse um grande privilégio à linguagem: ela passa a ser o lugar a partir do qual algo se mostra e passa a existir.
 
Com o uso do pronome “isso”, eu me refiro ao acontecimento da linguagem, sem entrar no mundo  dos significados.  Quem me lê ou me ouve não sabe o que é isso a que eu estou me referindo – a linguagem, de certo modo,  ainda não aconteceu, não se deu como acontecimento, significando. Será só no interior desse acontecimento que algo será significado e, ao mesmo tempo se dirá o que “isso” é.  Se entrará, então,  na dimensão do “ser”.  Nesse gesto, nesse ato de fala,  o signo passa a significar (passa a ser propriamente signo), aquilo que está indicado diz, passa a dizer. No interior desse acontecimento da linguagem, ao falar eu digo o que “isso” é.
 
Algo foi incorporado, apropriado, num acontecimento de linguagem como uma verdade íntima por mim, a partir de um contato com o mundo, mundo ao qual saindo de mim , acorri, percorri  e que deixei voltando a mim. Experiência realizada: “ex”, para fora; “peri”, o contornar o mundo; “encia”, a volta a si.
 
Verdade íntima apropriada,  que não se refere agora mais aos sentidos  nem ao intelecto, mas que se dá numa instância própria. Um saber próprio, que sabe sabendo, que toma a linguagem naquilo de onde a linguagem surge. A “surgência” da linguagem [nota 1]. A fonte da expressão. Isso.
Mas se “isso” quer dizer essa verdade íntima, o que é “isso” que  contém essa verdade íntima. O íntimo, no seu limite, só se pode dizer a si, numa espécie de flexão de si a si. “Eu” seria o lugar dessa verdade intima?  Mas, o que é  “eu”?
 
De novo um pronome. Desta vez um pronome pessoal.
 
“Eu” designa a pessoa que enuncia. Quando eu digo “eu” é ao mesmo tempo eu que digo “eu”. Eu sou sempre no mesmo tempo de “eu”. “Eu” é um fenômeno de linguagem, de vivência , de percepção instantânea. “Eu” é sempre presente para si. E para si,  um observador eterno; sou sempre eu que vejo, penso, percebo, sinto etc.  Um “centro de experiências”[nota 2], sempre em atividade. Mas “ eu”  não pode ser apreendido nem visto. “Eu” , assim, não pertenceria ao mundo, seria  “um limite do mundo”como observou Wittgenstein.
 
O “eu” não é uma coisa no mundo, não é uma substancia:  não se pode mostrar. Não é um ente zoo-psico-biológico. E ao mesmo tempo eu sempre existo. Não há “eu” sem eu.  “Eu” se funda, se re-inaugura na fala, em cada fala. Existe através da fala que a profere.  Algo fala. Algo que fala é alguém. Alguém fala, um eu.
 
Quem é esse alguém – eu – que fala?  Se eu existo, eu sou um ser vivo. Vivo  num corpo. Eu, como alguém num corpo, talvez seja a minha primeira característica. Como diz Ricoeur um corpo é um “critério de localização num único esquema espaço-temporal” [nota 3]. A partir de um corpo contingencia-se num lugar e num momento qualquer  alguém, um “eu”. Um “eu-corpo”.
 
Esse “eu-corpo”  trafega entre outros “eus-corpos”, trama percepções e sensações para si,  e  através dos impulsos, busca respostas fisiológicas tendo seu próprio organismo como universo. Esses fenômenos elétrico-quimicos preenchem e percorrem os nervos num fluxo energético contínuo. A cessação desse fluxo é o fim desse alguém, desse “eu-corpo”, desse organismo.  Cessa o organismo, cessa a possibilidade de ex-pressão do “eu”. O tempo de existência do “eu” corresponde ao do corpo.
 
Essa imbricação constitutiva nessa noção de  “eu-corpo” possibilita que o “eu”  se represente no reino das coisas, vale dizer, no mundo: é no corpo, no organismo  que o “eu” existe.  E é no transacionar através do organismo  com o mundo que, aquilo que representa o “eu”, se modifica, mais ainda, se constitui. Como “eu”, q não é um ente, não é uma coisa, e que é mental, se modifica no transacionar com o mundo, como organismo?
 
Difícil responder a essa questão mantendo o rigor de pensamento que é próprio da filosofia. Nunca é demais lembrar, que, neste âmbito, o critério é sempre a verdade, isto é , aquilo que é evidente por si.
 
A ciência encontrou alguns modos, talvez menos rigorosos, porém mais práticos. Seu critério principal é o da verificação. Com isso criou uma série de modos de medição, que quando não são possíveis, são substituídos por outros modos de aproximação, como os cálculos probabilísticos. Com isso foi possível criar uma série de protocolos que foram e são úteis, inclusive nos cuidados dos corpos humanos. Mas a relação e a caracterização entre o corpo e a mente ou dito de outro modo, entre o organismo e o espírito, continua sendo um mistério.
 
Se é possível observar como a energia vital – os fenômenos eletro-químicos – circula pelo organismo, nada se sabe em como ela se transforma em ideia, em pensamento, em sentimento, em representação. Como uma energia se transforma numa representação de si, nesse alguém, esse “eu-corpo”.
 
Para  quem  lida no mundo da clínica existencial, que se  inclina para cuidar de pessoas com dificuldades e sofrimentos no viver, essa questão é fundamental. Não se trabalha com uma matéria, não há propriamente um objeto para lidar, ainda que a pessoa venha também como um corpo.  Esse corpo que traz em sua constituição essa parte eu, e que vive uma série de influências corpóreas  a partir dessa parte eu – as somatizações, ou reações psicossomáticas .    É em sua inteireza de ”corpo-eu” que a pessoa  transaciona com aspectos do mundo, através da linguagem.  Esta pessoa que vem à clínica tem como sua natureza essa de ser um organismo capaz de linguagem.  O clínico – também um corpo capaz de linguagem – testemunha diariamente  esse mistério.
 
O  “eu-corpo” existe.  Há algo nele que se ex-pressa. Põe para fora um “isso” que está nele. Nesse “eu-corpo”, há isso que o caracteriza. Isso, esse caráter íntimo do “eu-corpo”,  isso que lhe é próprio – singular, só dele. Esse próprio construído a partir de sua relação consigo, com os outros,  num movimento de natureza reflexiva, em que sai de si para regressar a si. Resultado momentâneo de infinitas ex-peri-ências, que sai de si, é tocado, matizado pelo mundo, para voltar a si transformado. Como essas experiências são compostas de suas relações com o mundo, compreende-se a natureza singular, desse “isso”, próprio a si .
 
Outro pronome. Agora reflexivo.
 
Esse si, próprio, não se dá ao pensamento, não é representável. Si próprio não é si mesmo. Ao buscar pensar em si já se cai numa cisão, numa divisão: esse que olha precisa de um afastamento, criar uma alteridade de si, que modifica sua condição inicial de si. Para ser mesmo – si mesmo –  tem q ser os 2 ao mesmo tempo, um e outro que se identificam, dando a condição de mesmidade. Não há mesmidade onde se supõe unidade. O “si” , ainda que uno, não é algo simples. Contém a relação q une e a relação q separa. Não tende a formar identidade. Forma propriedade.
 
O si, o fato de si, o si em sua facticidade não é original. É produzido, é artifício. O si produz a si na experiência de si. O outro de si é si em que o seu outro é este si e, talvez por esse movimento incessante de mútua constituição, sempre inconclusa e precária, sempre em construção, contingenciado e contingenciador, criador de si e do mundo. O seu aí está sempre em ser, sendo. Não é uma situação de fato, imóvel, como em Husserl e Sartre [nota 4].
 
Agamben traz o conceito heideggeriano de  facticidade para argumentar que o fato de si é produzido, é forjado pela  e-moção. Tome-se  o sentido que a palavra emoção  traz : “e”, para fora, como “ex”; e “moção”, deslocamento. E se compreenderá, como  se desenvolve “isso”, o si.  O si, o fato de si, é o que foi produzido pela e-moção, pelo seu deslocamento para fora. Não há um si original. O si é esse “isso”, em constante produção do início ao fim da vida pelas suas próprias e-moções. Daí porque o si, sendo artifício, é sempre si-próprio.
 
A expressividade acontece quando a linguagem traz ao que é próprio. Ou leva o próprio ao que é dito. É como quando se fala, se gesticula, se dança com uma verdade própria. Isso que se sabe que existe, está presente e que é difícil de nomear. A expressividade é essa ação de linguagem q faz a experiência  do “isso”, que faz com que esteja impregnado  à palavra, ao gesto, à pincelada, à ginga, à voz. Mas ele mesmo, “isso”, não vai, “permanece intransmitido”, como diz Agamben, “sem nome”, pronome.
 
O homem, o animal falante, é o infundado, q se funda indo ao fundo em seu sem fundo e, como in-fundado, repete sem cessar sua ausência de fundamento, abandona-se a si.  E é só assim, desse modo negativo, fundado em si . O “si” é o mistério das origens q a humanidade transmite como fundamento próprio. E que é veiculado na expressividade.
por Cláudio Fernandes


[nota1 : “surgência”, essa bela palavra criada pelo colega Arthur Tufolo]
[nota 2: como sintetizado recentemente por Paula Perroni, colega psicanalista]
[nota 3 Paul Ricoeur “Si Mismo Como Otro” pg 9]
[nota 4:Giorgio Agamben “A Potência do Pensamento” pg 260 e seguintes]