Como a Filosofia Clínica (também) é estruturalista

A filosofia clínica (FC) tem um modo próprio de ser estruturalista.

Esta afirmação se justifica pela possibilidade de focalizar e apurar os modos de ver o uso da noção de estrutura na chamada “estrutura de pensamento” (EP), central na FC.

A EP é definida como “o jeito da pessoa” , como “o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente”, uma representação do que é o “eu” da pessoa. A EP só existe através do que a pessoa é [nota 1] . Como filósofo clínico tenho diante de mim esta pessoa e, é através dela, da linguagem que vamos construindo juntos que posso ter acesso à sua EP. Construí-la.

O conhecimento de uma EP é sempre um “trabalho realizado”, síntese organizada de observações feitas por um clinico, a partir de sua relação com a pessoa que vem partilhar as suas vivências – o “partilhante”. A EP só está constituída quando estiver estabelecida como uma totalidade. E, como qualquer totalidade, a EP é composta de elementos – os “tópicos”- que se relacionam e se articulam mutuamente. Cada EP é um arranjo único desses tópicos inter-relacionados e de suas possibilidades. Mas só é EP quando está constituída como uma totalidade.

Ainda que sempre tomada como totalidade, uma EP tem momentos estruturais que podem ser muito diferentes entre si. São relações ou arranjos tópicos diferentes que na comparação podem até dar a impressão de se tratar de outra estrutura. Estas diferenças, entretanto, fazem parte das características desta EP: são apenas variações de seus modos próprios, e que, assim a definem e a distinguem.

A um tempo a EP pode ser tomada como uma totalidade unitária, como um conjunto e, de outro como uma série de totalidades momentâneas, circunstanciadas. Em outros termos, sincronicamente (numa espécie de congelamento do tempo) ou diacronicamente (“posta” no tempo, em série). Não teria sentido utilizar a noção de estrutura se ela fosse só estável, imóvel, indiferenciada. Não teria sentido, num caminho terapêutico, sem a possibilidade de se comparar, isto é, produzir e captar diferenças. Portanto, na perspectiva ou no momento de quem observa, a EP pode ser tomada como uma unidade, numa espécie de consolidação, ou como uma série de totalidades formadas por combinações tópicas diferentes.

Em qualquer de suas acepções a palavra “estrutura” indica uma totalidade composta de elementos constitutivos inter-relacionados e interdependentes: “uma estrutura é um conjunto de elementos entre os quais existem relações, de forma que toda modificação de um elemento ou de uma relação acarreta a modificação dos outros elementos e relações” [nota 2] .

Provinda da palavra latina “strutura”, “antes de mais nada, define como o edifício está construído, depois, por extensão o modo como as partes de um corpo qualquer – substancia mineral, corpo vivo, discurso, pouco importa – são dispostas entre si. A estrutura é, portanto, aquilo que nos revela a analise interna de uma totalidade: elementos, relações entre os elementos, o arranjo, o sistema dessas relações” [nota 3]

A noção de “estrutura” pressupõe a idéia de totalidade e da possibilidade de analise das partes de uma totalidade, o que, nas palavras de Pouillon “permite definir o que constitui a singularidade de um conjunto e, ao mesmo tempo, fornece o meio de não nos circunscrevermos a ele” [nota 4] .

Em outras palavras, “estrutura” “é um termo que define ao mesmo tempo um conjunto, as partes desse conjunto e as relações dessas partes entre si” [nota 5]

Apenas com estas definições já se pode entrever a utilidade da noção de estrutura num método clínico, uma vez que permite observar a pessoa como uma totalidade – ou unidade distinta de outras – e, como um conjunto de elementos em sua composição intrínseca [nota 6] .

A EP na FC traz, portanto, essa dupla possibilidade de permitir a observação dos seus movimentos como uma unidade e, a das variações, arranjos e inter-relações dos elementos-tópicos que a constituem. E, mais importante do ponto de vista clínico, traz a possibilidade de relacionar estes dois pontos de observação, num terceiro, mais amplo e certamente mais complexo.

Tomar a EP como unidade traz a possibilidade de observar os seus movimentos, por onde se movimenta, como se movimenta, quais os efeitos de seus movimentos [nota 7] . Por outro lado, a visada a partir das inter-relações tópicas, permite ver seus modos próprios de viver, seus condicionamentos, suas facilidades e dificuldades.

Observar a partir dessas duas perspectivas, permite observar como os efeitos dos movimentos realizados se dão na outra, simultaneamente. Ao se partir da EP como unidade pode-se observar que um determinado movimento estabelece um outro arranjo nas relações tópicas, alterando seus pesos relativos, fazendo e desfazendo “choques”. Na outra perspectiva, como uma mudança nas inter-relações tópicas, altera o seu conjunto, de modo a se poder perceber como a EP passa a se movimentar de modo diferente como unidade constituída.

Os tópicos mais complexos da EP são precisamente os que procuram dar conta das inter-relações tópicas – a “Autogenia” [nota 8] – e dos seus movimentos como unidade – a “Matemática Simbólica”.

Na língua francesa o adjetivo “estrutural” tem duas palavras para o descrever : “structurel” que estaria mais próximo das análises da estrutura como unidade [nota 9] e “structural” que tomaria a estrutura mais como uma sintaxe, como a analise da disposição e relação de seus tópicos [nota 10] .

Os estruturalismos

Roland Barthes, inicia um texto que se tornou clássico [nota 11] perguntando “que é o estruturalismo?” para responder que “não é uma escola nem mesmo um movimento…já que os seus autores não se sentem ligados entre si por qualquer solidariedade de doutrina ou de combate …nem chega a ser um léxico: “estrutura” é um termo muito antigo e hoje em dia [nota 12] muito usado …e o uso da palavra não distingue ninguém” [nota 13] . Desde aquela época – a “de ouro” do estruturalismo.

E François Dosse em seu extraordinário “História do Estruturalismo” [nota 14] anota que “o estruturalismo nasce [justamente] nos psicólogos para opor-se à psicologia funcional do começo do século [XX] mas, o verdadeiro ponto de partida do método em sua acepção moderna…provem da evolução da lingüística. Se Saussure emprega apenas em 3 vezes o termo “estrutura” – ele usava “sistema” – no Curso de Lingüística Geral é sobretudo a Escola de Praga que vai difundir o uso dos termos estrutura e estruturalismo” [nota 15] .

Levi-Strauss trouxe para os estudos das “humanidades” o caráter e a respeitabilidade científica que a lingüística passara a ter. E fez isto através da noção de estrutura. Para dar conta em seu trabalho como antropólogo da multiplicidade das praticas matrimoniais, realiza uma operação de redução lógica, definindo um numero limitado de possibilidades, que ele definirá como “as estruturas elementares do parentesco”. O modelo, ele mesmo precisa, veio da lingüística estrutural: “tal como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação sob a condição de se integrarem em sistemas” [nota 16]. Se toma de Saussure as noções de significante e significado coloca o significante – que era som para aquele – como o lugar da estrutura, e o significado – que era conceito – como o lugar do sentido.

Dosse diz que a lingüística se torna para o estruturalismo a “ciência-piloto” , enquanto a antropologia e a psicanálise serão as 2 “ciências-faróis” [nota 17] . A partir do momento em que se consiga integrar todos os fatos sociais atomizados numa totalidade, a antropologia poderá ser vista como um sistema global de interpretação que “explica simultaneamente os aspectos físico, fisiológico, psíquico e sociológico de todas as condutas e, no centro dessa totalidade o corpo humano…no cerne corporal o inconsciente” [nota 18] .O acesso ao inconsciente só pode se dar pela mediação da linguagem. Antropologia, lingüística e psicanálise imbricadas na produção do estruturalismo como um “movimento” importante na historia do pensamento ocidental, francês, no meado do século 20.

Desse momento inicial o estruturalismo se expandiu a muitos domínios. Em algum momento ou foram “estruturalistas”, ou, no mínimo, estiveram presentes e foram influentes nesse debate : Merleau-Ponty, Piaget, Foucault, Althusser, Barthes, Derrida, Greimas, Jakobson, Deleuze, Lacan, Bourdieu, Vernant, Kristeva, Todorov, Dumezil.

Não são poucos, por consequência, os textos sobre o “estruturalismo”. E em cada um se descobre que muitas concepções diferentes – quando não divergentes – são assim nomeadas. Não é por outro motivo a sugestão de Lepargneur, que seria melhor nomeá-lo como “estruturalismos”.

Mas, como é preciso prosseguir e para isso, fazer escolhas, tome-se um texto que, nesta altura, logo pelo seu título quase que se justifica por si mesmo: “Em que se pode reconhecer o estruturalismo?” [nota 19] de Giles Deleuze, escrito no calor da hora com a sua conhecida perspicácia.

Um estruturalismo

Escrito em 1967 mas só publicado em 1972 Deleuze se propõe a “somente extrair certos critérios formais de reconhecimento [do que se caracterize como “estruturalismo”], os mais simples” [nota 20].

O primeiro critério que estabelece para que algo possa ser reconhecido como estruturalismo é que a estrutura, em sua natureza é simbólica, isto é, não é real nem imaginária. Como simbólica não é uma forma sensível, nem uma figura da imaginação, nem uma essência inteligível. Não pode ser confundida com elas. Está numa espécie de “ordem” ou “reino” em que não pode ser reduzida a aquelas duas e é, a seu ver, mais profunda que elas: o real e o imaginário e suas respectivas relações seriam sempre engendradas depois, pelo próprio funcionamento da estrutura. A estrutura teria essa característica comum com a linguagem, de estar no reino simbólico. Como ela, institui um “real”, configura um “imaginário”.

A idéia dessa “ordem simbólica” que institui a realidade das relações humanas vem da leitura de Saussure feita por Levi-Strauss, pela qual o significante lingüístico tomado isoladamente não possui qualquer ligação interna com o significado. O significante só ganha significação por estar integrado num sistema significante , que se caracteriza por “oposições diferenciais”. A “ordem simbólica” permite tomar o significante independentemente do significado. E é por isso que tentar definir o simbólico se torna um problema: seria tentar buscar atribuir um significado a aquilo que por definição é significante não significado.

A natureza simbólica da estrutura é o que cria a possibilidade de toma-la como método. Como a linguagem, poderá ser concebida como um conjunto significante, uma hipótese, uma ficção.

O segundo critério explicita que a estrutura tem um sentido de posição. Os elementos que constituem uma estrutura não têm uma designação extrínseca (não tem relações de referencia com objetos estranhos a ela) nem uma significação intrínseca (um significado por si mesmo, uma semântica própria) [nota 21].

Um tópico da EP não é nomeado por algo – diga-se – “existente” que

estaria lá, na realidade, no mundo concreto ou mesmo na imaginação. Eles são “lugares” de um espaço propriamente estrutural, isto é, “inextenso, pré-extensivo, puro statium constituído por aproximações como ordem de vizinhança” [nota 22]. Um tópico estrutural, ele mesmo, só se relaciona com outros tópicos, não tem sentido fora do universo estrutural, de seu “reino”.

Como elemento da estrutura, um tópico, como por exemplo “Termos Agendados no Intelecto” (Tópico 6 da EP), só “existe” como parte da EP, como uma posição de observação, sem conteúdo e sem referente, mas fazendo parte dela, constituindo-a, em sua relação com os outros tópicos. Na EP enquanto estrutura potencial, isto é, quando ainda não atualizada, não efetivada, não há relação do tópico “termos agendados no intelecto” com qualquer “termo”, qualquer “agendamento” ou qualquer “intelecto”, estando apenas como uma posição na estrutura, como um lugar de observação, local do qual se observa.

O importante é que os lugares no espaço estrutural são anteriores em relação às coisas e seres reais que os ocupam , assim como aos papéis e aos acontecimentos, sempre um pouco imaginários que aparecem necessariamente quando são ocupados.

O terceiro critério é o diferencial [différentiel] e o singular. Onde há estrutura há multiplicidade e há singularidades: “Os elementos simbólicos [os tópicos] e suas relações determinam a natureza dos seres e objetos que vêem efetua-los” [nota 23] . No caso da EP a combinação entre os tópicos de uma pessoa poderá, diferenciando-a, caracteriza-la.

E, inversamente, “as singularidades formam uma ordem dos lugares, isto é, cada pessoa, em seus comportamentos e atitudes, como que determina a “ordem dos lugares” nas relações tópicas, seus pesos, sua importância.

Em outras palavras “a determinação recíproca dos elementos simbólicos [dos tópicos estruturais] prolonga-se, deste modo na determinação completa dos pontos singulares que constituem um espaço correspondente a esses elementos” [nota 24] . Deleuze diria que os tópicos “encarnam-se” nesta pessoa assim como esta pessoa “atualiza” estes lugares, esta combinação tópica na estrutura.
Deleuze dirá que as “singularidades correspondem com os elementos simbólicos e suas relações mas não se assemelham a eles. Diríamos, antes, que elas “simbolizam” com eles” [nota 25], a pessoa é como que “simbolizada” por essa relação tópica.

O 4º critério é o diferenciador[différenciant]e a “diferençação” que aponta a distinção entre o virtual e o atual. As estruturas não são atuais em si mesmas, mas o são naquilo em que elas se encarnam. A EP só será EP quando for EP de tal pessoa.

Já como “virtuais” as estruturas, não são por isso “irreais, uma vez que o virtual mesmo não sendo atual é real e é ideal, ainda que não por isso seja abstrato…O virtual tem uma realidade que lhe é própria, mas que não se confunde com nenhuma realidade atual, com nenhuma realidade presente ou passada; ela tem uma idealidade que lhe é própria mas que não se confunde com nenhuma imagem possível, com nenhuma idéia abstrata. Da estrutura diremos: real sem ser atual, ideal sem ser abstrata” [nota 26]

A EP como virtualidade é como a estrutura de uma “pessoa em geral” [se isto não fosse impossível – a “pessoa em geral”] que possibilita determinar uma virtualidade de coexistência de elementos simbólicos – os tópicos – que preexiste às pessoas em que se atualizarão, se encarnarão. “Da estrutura como virtualidade, devemos dizer que ela é ainda indiferenciada, embora seja inteira e completamente diferenciada. Das estruturas que se encarnam nesta ou naquela forma atual (presente ou passada) deveremos dizer que elas são diferenciadas, e que atualizar-se, para elas, é precisamente diferenciar-se…..Convém observarmos que o processo de atualização sempre implica uma temporalidade interna, variável segundo aquilo que se atualiza… o tempo é sempre um tempo de atualização, segundo o qual se efetuam, em ritmos diversos os elementos de coexistência virtual ….o tempo vai do virtual ao atual, isto é, da estrutura às suas atualizações, e não de uma forma atual para outra forma” [nota 27].

Parafraseando Deleuze, a EP é, em si mesma, esse sistema de tópicos e de relações diferenciais, mas ela também permite a diferenciação da pessoa na qual ela se atualiza. “Ela é diferencial em si mesma e diferenciadora em seu efeito” [nota 28]

.

O quinto critério é o que diz que toda estrutura é uma série, que “só se põe a mexer, só se anima”, só “funciona” em série. Cada organização tópica, cada momento estrutural se refere a um outro momento estrutural que se definirá por uma outra combinação entre os tópicos.

Quando, por exemplo, um partilhante relata que bateu o carro porque estava “fora de si” (Tópico “Comportamento e Função”), tomado por uma emoção incontrolável (Tópico “Emoções”), após os comentários depreciativos feitos por sua mulher (Tópicos “Interação de EP” e “O que acha de si”) por não ter conseguido a promoção profissional que esperava (Tópico “Busca”), atualizando um arranjo estrutural tantas vezes (um “padrão”) vivido-relatado em sua história de vida. Por um lado a EP deste partilhante poderia ser caracterizada pelo peso do tópico “Interação de EP”, mas, ao fazer isto – dar este peso – se estará pressupondo a existência da série, uma vez que haverá situações vividas em que o arranjo tópico não estará influenciado por uma interação com uma pessoa (ou, em outra linguagem, uma “EP”) como a do exemplo, ou poderá estar influenciado de modo positivo.

Neste caso há uma outra “escolha de elementos simbólicos de base e das relações diferenciais em que eles entram…mas ainda pela constituição de uma segunda série, ao menos, que mantém relações complexas com a primeira…e se a estrutura revela um campo de problemas, é no sentido em que a natureza do problema revela sua objetividade própria nesta constituição serial” [nota 29] Uma estrutura só se põe a mexer, só se anima, só passa a “funcionar”, a criar diferenças, quando se dá a observar, quando se constitui em uma série. A condição para a observação sincrônica da EP é a existência da perspectiva diacrônica.

O sexto critério é o da “casa vazia”. Para Deleuze a estrutura envolve um elemento ou um objeto paradoxal, que não cessa de circular pela série e que constitui o ponto de convergência dos “momentos estruturais” divergentes. Esse “elemento” está sempre deslocado com respeito a si mesmo, sendo a sua propriedade não estar onde se vai busca-lo e encontra-lo onde não está, por isso ele “falta a seu lugar”. Ele dirá que não há estruturalismo sem este “grau zero” que, estando em toda parte, produz o sentido em cada série e não deixa de desfaze-la. Esse “objeto” não é assinalável, isto é, não é fixável em um lugar identificável em um gênero ou espécie.

Eis porque Deleuze comenta que a questão de “em que se reconhece o estruturalismo” conduz à posição de algo que não é reconhecível nem identificável. É portanto um paradoxo, pois, como seria possível reconhecer um elemento sem identidade?

É certo que o estruturalismo não poderá responder à pergunta sobre a sua própria natureza em termos de identidade. Para Deleuze é isso que revelaria a dimensão inconsciente dos problemas colocados , o horizonte transcendental aberto e problemático.

Enviar para a “dimensão inconsciente” seria fundamentar precisamente em algo que por definição é incaracterizável, indeterminado. Como sarcasticamente pergunta Umberto Eco, seria enviar para “…um manancial indeterminado que permite todas as configurações possíveis, até mesmo as que se contradizem entre si?” [nota 30] e que ele mesmo responde com ironia, ao dizer “quando para o pesquisador surge uma definição estrutural em cujos termos um fenômeno novo não pode ser incluído, se não conseguir ele renunciar à idéia de que a estrutura que individuara era a definitiva, só lhe resta renegar o fenômeno aberrante” [nota ] [nota pg 300]. Uma concepção do “estruturalismo que se erija em visão filosófica” levaria à “explosão da própria idéia de estrutura” [nota 31].

Aqui, a leitura de Deleuze sobre o estruturalismo parece fazer água, não sobreviver. E se a observação for mais atenta, é precisamente onde o estruturalismo vai buscar seu viés ontológico, o “grau zero”. Perde sua força por querer ser mais do que é. Por mais admirável que seja seu esforço retórico, a “casa vazia” só será o que é: o lugar do vazio, questão ontológica, não constituinte de uma idéia de estrutura que se sustente.

O sétimo critério diz do “sujeito estrutural”. O estruturalismo não é um pensamento que suprime o sujeito, como tantas vezes foi dito, mas é um pensamento que o reduz e o redistribui, que questiona a sua identidade, que o dissipa e o faz passar de lugar em lugar, sempre nômade, feito de individuações impessoais, ou de singularidades pré-individuais.

O estruturalismo é inseparável das obras que cria e mais que isso, é uma prática que está em relação com o que interpreta. Daqui, para Deleuze, o potencial criativo, inovador e polemico do estruturalismo.

Na questão sobre a gênese Deleuze cunha o termo “gênesis estática” para nomear o processo de geração sem dinamismo , que não vai de um termo atual a outro termo atual no tempo, mas, do virtual à sua atualização, isto é “da estrutura à sua encarnação”. A estrutura é virtual [ideal, potencial, simbólica] em si mesma mas se atualiza [se efetua, se encarna, se concretiza] em relações empíricas , espaço-temporais. Nesta passagem de sua pura virtualidade [em que é diferenciada – différentiée] para seu “ser” atual [processo em que a estrutura se diferencia – différenciée] é o momento propriamente produtivo, gerador, criador da estrutura [EP]. E assim se dissolve a contradição aparente entre a estrutura e seu aspecto genético, desde que se entenda por gênese a atualização do virtual, a encarnação das relações ideais, a efetuação empírica do incorporal.

O virtual não é o “possível”. O virtual não é irreal, não se opondo ao real mas se opõe ao atual. A estrutura é a realidade do virtual. O processo que corresponde ao virtual é o da atualização e não o da realização: o possível se realiza mas o virtual se atualiza. Atualizar-se é sinônimo de diferenciar [différencier] integrar, resolver. Ao atualizar-se se faz por diferenciação, por divergência.

A atualização é sempre uma criação de linhas divergentes que correspondem, sem semelhança, à multiplicidade virtual. Em relação ao fenômeno, a estrutura comporta acontecimentos ideais que se cruzam com os acontecimentos reais e que de certa forma [esses acontecimentos ideais] determinam o fenômeno [através da linguagem].

Na história do pensamento houve um momento [de 1945 a 1970, aproximadamente, na França] em que tudo parecia convergir para uma estrutura. O mundo era olhado como uma estrutura. Estrutura e estruturalismo. Estruturalismo ou estruturalismos. Não havia um programa único. O que havia em comum era a presença da idéia de estrutura.

Como nas reações pendulares, de critério que serviria para qualquer coisa, passou-se a desprezar-se qualquer modo de uso da noção de estrutura.

Um outro modo de estruturalismo

Humberto Eco na Introdução de seu “Estrutura Ausente” [nota 32] afirma que se fosse indagado se seu livro é “estruturalista” ou “antiestruturalista” aceitaria “de bom grado ambos os rótulos”. E é esta afirmação aparentemente contraditória que permite observar de que modo a FC pode ser – e não ser – estruturalista.

Ele seria ”antiestruturalista” para toda tentativa de se tomar “estrutura” como filosofia ou como ontologia, como um momento “intermediário” de uma cadeia que teria no fim uma estrutura mais elementar, oniexplicativa, garantidora, una. As que tomem estrutura como instrumento para se chegar a universais, seja ao “ser-do-ente”, aos “mecanismos universais da mente”, ao “espírito humano”, ao “inconsciente”, a uma “realidade última”. A um “pensamento único”, ao qual se reportaria o “pensamento diferente”, ou ainda a um ideal positivista de uma explicação total, de uma lógica objetiva de um pensamento universal.

E ele seria estruturalista quando a estrutura for vista como um método [nota 33], como instrumento hipotético que permite “experimentar os fenômenos para conduzí-los a correlações mais vastas” [nota 34] . Sempre ciente de que se trata de uma “operação de laboratório”, uma construção da inteligência investigativa. Sabedor de tratar-se de uma “ficção útil”, uma imobilização temporária de aspectos da experiência, “modo de falar homogêneo de fenômenos diferentes” [nota 35].

A clínica é o lugar do singular. Este é o principio ético basilar. Aqui trata-se, por observação apurada, dos modos de viver da pessoa. Modos que são só seus, numa espécie de organização pessoal absolutamente distinta de qualquer outra. Esse seu modo foi sendo traçado através de suas inter-relações com o(s) mundo(s), consigo, com o(s) outro(s) desde o nascimento até a atualidade.

O desafio do clínico é o de se aproximar dessa singularidade [nota 36]. A aproximação se faz através das linguagens [nota 37] , num complexo processo de constituição do outro para si [nota 38] . Ainda que o constituído seja fugidio e impermanente.

São enormes as dificuldades para isso. E não é por outra razão que a medicina e a psicologia [nota 39] partem de um rol de patologias, tipologias ou critérios nosológicos, em busca de formas de aproximação ou caracterização desta pessoa, deste “paciente”. A partir da detecção, também através das linguagens, de comportamentos vinculados a esses padrões classificatórios (os sintomas) caracterizam o “caso”. A pessoa passa a ser vista como uma combinação que precisa ser encaixada em algum padrão ou combinação de padrões. O modo de conhecimento se dará por analogia a outros casos, assemelhados, agrupados em protocolos, reduzidos no limite a prototipos.

Essa dificuldade, entretanto, pode ser minorada e, a aproximação com a singularidade desta pessoa pode ser facilitada justamente pela utilização de uma estrutura, de um método estruturalista. E que tenha a natureza de um instrumento operatório, de um recurso provisório, hipotético.

O que se obtém é uma espécie de retrato dinâmico dos muitos modos em que a pessoa se constitui. Trata-se de um saber por homologia em que se reúne uma multiplicidade de fenômenos com características comuns. Uma espécie bem precisa de operação, que, ao simplificar, não empobrece obrigatoriamente as realidades, os fenômenos narrados e captados. Processo fadado à incompletude, continuamente carente de atualizações.

A EP é um modelo, um “artifício de montagem” [nota 40] que permite ao clinico nomear de modo homogêneo coisas diferentes. O partilhante narra sua história, atualiza suas vivencias, através de suas linguagens próprias. O filósofo clínico separa-as a partir das categorias [nota 41] (a “coleta categorial”), aprimora essa observação (a “divisão”) e busca especificar o que não lhe parece claro (o “enraizamento”). Com esse material atualiza, “monta”, constrói, “preenche”,”encarna” a EP dessa pessoa. Das múltiplas vivências narradas, de tudo o que ouviu, transporta, transfere para formas que são aparentadas, que são formadas a partir de um pensamento aproximado, parecido, semelhante, homólogo. Esse transporte é de experiências que já vêm articuladas, já são captadas em relações pré-estabelecidas que se conformam em relações tópicas, com pesos ou importâncias específicas.

A idéia de estrutura que informa a EP é a de “um modelo como sistema de diferenças..[que se caracteriza pela] transponibilidade de fenômeno para fenômeno e de ordens de fenômenos para ordens de fenômenos diferentes” [nota 42] .O uso da estrutura é um recurso de simplificação para a multiplicidade dos fenômenos de modo a preservar as suas diferenças, os seus traços fundamentais. Um modo de lidar com o “continuum” da vida, da seqüência infinita de vivencias, fluxo interminável – muitas vezes quase sobrepostas – captáveis parcialmente através dos inumeráveis modos das linguagens possíveis.

Por sua natureza de virtualidade – como diz Deleuze – a estrutura comporta a multiplicidade que não se deixa levar a nenhuma identidade, seja quanto ao sujeito-objeto da EP – o partilhante, seja ao sujeito construtor da EP – o terapeuta. O outro do terapeuta, quando visto através da estrutura, de certa forma pré existe aos termos que atualizam essa estrutura. Como virtual a estrutura será atualizada, efetuada por um sujeito real, variável. Deleuze também chama a atenção para o “outro-a-priori”, mas aí já se estará próximo a ontologizar a estrutura algo q está fora da intenção deste artigo e certamente fora da possibilidade de se realizar.

O estruturalismo da filosofia clínica não é ontológico, é metodológico, caminho em direção a. E, para existir e ser legítimo, não precisa da ontologia. Ontologia e clínica são campos com poucas proximidades. Não tem sentido, para a clínica, a discussão de uma “estrutura em geral” ou de uma estrutura a priori. Em clínica a idéia de estrutura não se sustenta como “princípio hipostatizado” [nota 43] ,mas só como “instrumento”, como diz Umberto Eco [nota 44].

Na clínica o uso da EP produz um saber que não busca por si solução, mas sim aprendizados. Ela é só uma instancia que permite problematizar de modo organizado, sem propor ou representar algo que tenha a característica de um reconhecimento definitivo. Não parte de um saber já sabido, mas de indagações que possibilitem novos modos de ver as vivências e experiências humanas, novos modos de aprendizagens. Modos de ver a vida no vivido. O uso da EP permite a observação a partir da produção de diferenças e não de oposições. Ela propõe sentidos temporários aos fenômenos. Que, afinal, também o são.

Os sentidos não serão principio nem origem, serão resultado que não têm intenção de permanência. Não se descobre, não se restaura, não se refaz sentidos. Os sentidos são sempre novos. O desafio será produzi-los mediante outras formas. Sem ir às alturas (metafísicas) ou às profundezas (ontológicas). Nas fronteiras. Sem referencia a qualquer totalidade original.

A filosofia clínica não é e não faz propriamente filosofia. Ela é um método ou um caminho clínico, baseado na tradição da filosofia ( e não da medicina e, por filiação histórica das áreas “psi”). Não faz metafísica, ontologia, fenomenologia ou hermenêutica. Não é uma clínica provinda de protocolos estatísticos, “indistinta”. Não sendo isoladamente clínica a-crítica ou filosofia, institui-se como filosofia clínica, como um modo próprio em que a separação de seus termos (filosofia e clínica) desfaz a possibilidade de seu entendimento. Mas não será por isso que se absterá de lidar com teorias, com linguagens diferentes. E nessa lida, por diferenças, se dá a perceber, faz afirmações.

E, certamente, tem modos pressupostos de ver o mundo, mas não se institui como modo de ver o mundo. E é no estrito respeito ético para com a singularidade das demandas de seu partilhante que ela, como método clínico, se exerce. E em seu exercício é este modo muito próprio de incorporar os saberes provindos dos estruturalismos na EP que lhe dá possibilidade.

A estrutura, como método [caminho para], é parte constitutiva da filosofia clínica – sem ela não há FC. E é este o seu modo próprio de ser “estruturalista”.

NOTAS

nota 1 – Packter, Caderno A, pg 16

nota 2 – Lepargneur, pg 4]

nota 3 – Pouillon

nota 4 – Pouillon, pg 7

nota 5 – Eco, pg 252

nota 6 – Entre outras vantagens evita-se o escorregadio caminho das discussões sobre identidade, tão presentes e insatisfatórias nas discussões das teorias psicológicas

nota 7 – este é o ponto de observação nomeado como “Matemática Simbólica”

nota 8 – o gene do que é auto

nota 9 – como no tópico “Matemática Simbólica”

nota 10 – como no tópico “Autogenia”

nota 11 – “A Atividade Estruturalista”

nota 12 – escreve em 1962

nota 13 – Barthes, pg 19

nota 14 – Dosse

nota 15 – citação Dosse pg

nota 16 – citação Dosse pg

nota 17 – Dosse pg

nota 18 – Dosse pg

nota 19 – Deleuze, pg

nota 20 – Deleuze, pg 222

nota 21 – o momento de “preenchimento”, em q se realiza a “homologização” não é ainda estrutura, só se constituindo como tal, quando já estabelecida

nota 22 – Deleuze, pg 225

nota 23 – Deleuze, pg 229

nota 24 – Deleuze, pg228

nota 25 – Deleuze, pg 229

nota 26 – Deleuze,pg 231

nota 27 – Deleuze,pg232

nota 28 – Deleuze, pg 233

nota 29 – Deleuze, pg236

nota 30 – Deleuze, pg 300

nota 31 – Deleuze, pg 301

nota 32 – Eco, pg XXI

nota 33 – “…esta palavra “método” é formada do grego ‘meta” – que significa “além”, “para lá” – e de “odos” – “o caminho”. Método é o caminho que leva a algo, o caminho pelo qual estudamos um assunto”, conf Heidegger, pg 128

nota 34 – Eco, pg 362

nota 35 – Eco, pg 294

nota 36 – ele também uma singularidade

nota 37 – tomar-se-á aqui, “linguagem” como qualquer forma de comunicação, de modos de ação, postos “em comum” entre um outro

nota 38 – aqui se tomará só a constituição do partilhante para o

terapeuta, ou “no” terapeuta

nota 39 – tomadas aqui de modo genérico, cometendo a injustiça de estar colocando num mesmo balaio coisas muito diferentes

nota 40 – Badiou, pg

nota 41 – as categorias, na Filosofia Clínica, são: assunto, relação, circunstancia, tempo e lugar

nota 42 – Eco, pg 258

nota 43 “abstração falsamente considerada como real”

nota 44 – Eco, pg 300

BIBLIOGRAFIA

Obras Citadas

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Obras Consultadas

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