Filosofia Clínica e Literatura

Uma das fontes de conhecimento daquilo que se convencionou chamar “condição humana” é a literatura. E a Filosofia, sendo também uma literatura, está, desde seu início, buscando “dizer” a condição humana de seu jeito próprio. Mas não existe “a” Filosofia. Ela, a Filosofia, é vária. Enquanto conceito, podemos dizer que “a” Filosofia é aquela que, buscando uma leitura e tendo um olhar totalizante do mundo, vai fundo, às raízes das questões que se lhe colocam e entende tudo como um processo constante de desconstrução/construção de saberes, de modos de ser e estar no mundo”, utilizando-se, para isso, de método próprio. Mas assim como são várias as filosofias, várias são as literaturas, as leituras, os olhares, os modos de ser e estar no mundo.
E a Filosofia Clínica-FC não foge desses caminhos, pois também ela tem se tornado uma literatura, uma leitura, um olhar, um modo de ser e estar no mundo, na medida em que se constrói, não se dá por acabada. Se assim fosse, não seria Filosofia, não seria Clínica. Tudo é um processo.
Mas, justamente por ser Filosofia, justamente por ser Clínica, é que a FC sabe-se parte de um conjunto onde, nesse caso, a Literatura, ou melhor, as Literaturas, têm muito a dizer da “condição humana” e, por isso, a aproximação é vital, pois pode nos levar a repensar, a entender e levar a entender que o “devir”* acaba por tornar-se a própria “condição humana”, i. é, o humano, individual e coletivamente falando, é uma constante construção, processo. “Navegar é preciso, viver não é preciso”, como já diziam os antigos navegadores nos idos tempos das “invasões e conquistas” de “novos mundos”, frase que celebrizou-se na voz e na literatura de Fernando Pessoa**.
E já que falamos de FC e Literatura, aqui fazemos uso de um texto, parte da literatura de Gilles Deleuze***, de sua obra Crítica e Clínica****, “A literatura e a vida”, onde ele discorre sobre a literatura enquanto devir, enquanto permanente vir-a-ser, porque o escritor e sua literatura, por mais capazes que sejam, nunca terão dito tudo, nunca serão o que pretendem, sempre estarão e serão inacabados, assim como a vida.
No referido texto, fazendo uma abordagem das doenças, das neuroses do existir, Deleuze aponta o escritor e sua literatura como aquele que “interrompe o processo da doença”: “Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha, forçosamente, uma saúde de ferro (…). Do que viu e ouviu o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros, e no interior dele?”
Embora em FC não façamos uso de termos como doença, cura – o que não significa que não devamos abordá-los e desconstruí-los no contexto maior das historicidades diante das quais nos colocamos como Filósofos Clínicos, pensamos que essa concepção do escritor e da literatura apresentada por Deleuze se aproxima muito da FC. Enquanto concepção e prática filosófica, essa abordagem terapêutica existencial, constrói-se como aquela que ouve a narrativa, “ouve o texto” do partilhante e, fazendo uso da literatura filosófica, bem como de outras literaturas, mas, principalmente com sensibilidade, com cuidado, com conhecimento, com método próprio, irá contribuir para que o indivíduo, o grupo, a organização, “reescrevam seus próprios textos”, i. é, reelaborem seus modos de sentir, de pensar, de posicionar-se, de ser e de estar no mundo.
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*Devir: verbo intransitivo :1vir a ser; tornar-se, transformar-se, devenir; substantivo masculino Rubrica: filosofia. 2 fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e transforma todas as realidades existentes; devenir, vir a ser. – Dicionário eletônico Houais 2009.3
**Escritor e poeta português, 1888-1935.
***Filósofo francês, 1925-1955
****Editora 34, 2011, p. 11-17
Paulo Roberto Grandisolli
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/UCMG; GSS-FSP/USP] filósofo clínico, professor, administrador serv saúde, consultor

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