Filosofia em Clarice Lispector

Qual ou quais seriam as possibilidades para a identificação de uma mundivisão filosófica na obra literária de Clarice Lispector?
Poderíamos falar de uma filosofia lispectoreana?
Quais seriam os indícios dessa filosofia em seus escritos?
Pensei tomar essas três interrogativas como pontos de partida para perspectivar essa possibilidade.
 
Muito se escreve sobre a obra desta escritora, em termos de análise literária, resenhas, crítica literária e estudos biográficos. Todavia, parece haver poucas publicações objetivando a identificação da tematização especificamente filosófica presente em seus textos.
 
Considero a probabilidade de que seja viável uma Filosofia da Literatura neste sentido. Não apenas sobre a obra de Clarice, mas como caminho para a construção de um pensamento filosófico originalmente brasileiro. Quero dizer: um pensamento filosófico que tome como ponto de partida e objeto de estudo a nossa produção literária; inclusive, evidentemente, a desta escritora.
 
Penso que é necessário reler a nossa literatura sem a postura de dependência e submissão de quem faz apenas uma transcrição do que já foi afirmado por filósofos de outros países, como se quiséssemos legitimar nossa cultura partindo de um contexto estrangeiro; numa espécie de concordismo, muito comum nas academias, que aliás para nada servem a não ser para isto: louvar a razão estrangeira, reproduzindo o colonialismo intelectual da dependência.
 
É ponto indiscutível que a literatura, como criação artística, é expressão da vida. Neste caso, primordialmente, da nossa vida de brasileiros; em segundo lugar, expressão do universal, do mundo; enquanto tematiza a condição humana.
 
Literatura é vida. A literatura de um povo é a expressão mais autêntica de sua vida. Portanto, considero a literatura brasileira como uma fonte essencial do nosso pensamento filosófico. Seja a literatura indígena, escrita e oral, os nossos romances, nossos poemas, crônicas etc.
 
Clarice Lispector não exteriorizava preocupação em dizer que leu tais ou tais pensadores. Não gostava de falar em suas leituras ou possíveis influências de outros escritores na sua mundivisão. Isto ficou bem esclarecido em suas crônicas e na sua única entrevista concedida à TV Cultura, publicada postumamente.
 
Clarice certamente leu, releu e até reinterpretou alguns escritores chamados clássicos; mas criou seu próprio modo de ver o mundo. Fazia as suas leituras e desleituras. Lia e interpretava o mundo imediato que reencontrava todos os dias, mediante uma perspectiva interrogante.
 
Certa vez, intitulou uma de suas crônicas com a afirmação “sou uma pergunta”. Reafirmava sempre que sua tarefa no mundo era saber, nomear, querer descobrir, tentar compreender a existência. Percebia-se como escritora interrogante. Seu ofício literário a conduziu consequentemente à pergunta filosófica. O perguntar é uma atitude constante em suas narrativas. Inclusive, perguntas que a maioria dos escritores em moda jamais fariam, Clarice o faz diretamente ou através de seus personagens. Como alguém que duvida da própria linguagem naquilo que ninguém questiona. Por exemplo, através da personagem Joana, de seu livro “Perto do Coração Selvagem”, pergunta sobre pra que serve ser feliz? O que virá depois que se é feliz? Ser feliz é pra se conseguir o quê? Numa atitude intencional de claro desmantelamento do senso comum que tanto usa e repete a expressão “ser feliz”.
 
Como, de modo geral, quase todo bom e honesto escritor se encontra sempre sozinho naquilo que escreve, foi com certeza na experiência desta solidão que Clarice Lispector (CL) se tornou a Clarice que foi e continua sendo para o mundo atual.
 
Há diversos aspectos no conjunto da obra clariceana relativamente às formas literárias que usou para se comunicar. Com certeza, nem podemos falar em estilo, em se tratando das suas obras. Ela escrevia livremente, sem apego a técnicas estilísticas. De modo geral, as formas principais que usava para comunicar, ver e sentir o mundo eram a crônica, o romance e o conto.
 
Outra modalidade de texto que eu não colocaria entre tais formas literárias, por exemplo, apresenta-se em seus dois  livros intitulados Água Viva (AV) e Paixão segundo GH (PSGH). Vejo-os como monólogos de introspecção metafísica. Principalmente PSGH, verdadeiro texto de reflexão que apresenta claros elementos para uma filosofia da religião, enquanto questionamento sobre a dialeticidade transcendência-imanência ao encarar a questão da experiência mística.
 
Em AV e PSGH está bem nítida uma desestabilização da frase usual e da própria gramatologia tradicional, pelo esvaziamento dos sentidos correntes das palavras e da pontuação. Talvez, uma forma de exteriorizar a desordem existencial que habitava em si mesma e em seus personagens; e que habita em todos nós, em nossos diversos eus.
 
Como classificar tais obras? Reflexão introspectiva? Monólogos? Não sei. Uma prosa poética, talvez. Prosa poética que nomeio como poetofilosofia; uma filosofia poética; ou poese filosófica.
 
A forma de escrita mais direta, fluente e linear usada por Clarice foi a linguagem das suas crônicas.  Os contos predominam no conjunto de sua obra. Porém, suas crônicas são os textos mais acessíveis para quem pretende ter um contato inicial com a sua mundivisão. Não podemos falar em um estilo clariceano, no sentido de estilo predominante ou único. Sua escrita é muito pessoal, subjetivamente marcada pelos momentos existenciais de sua consciência intuitiva.
 
Há certo consenso entre os conhecedores da obra de Clarice, no sentido de que ela não se alia ao estilo dos escritores romancistas de sua época (1930-45); sendo uma antirrealista. Na verdade, nem precisa ser especialista em História da Literatura Brasileira para perceber isto. Sua escrita aparece como um hiato diante dos chamados romances sociais e regionalistas dessa época; sem, no entanto, perder totalmente a sintonia com a condição humana do povo brasileiro. Em seus textos considerados intimistas por muitos críticos CL se distancia do Brasil. Sua temática predominante são os encontros-desencontros e as desorganizações internas dos indivíduos em seus relacionamentos. Sua posição política é tênue em suas obras. Mas seu testemunho ficou bem claro por sua participação nos acontecimentos históricos do Brasil de seu tempo.
 
Sabemos que Clarice viveu a época da ditadura de Getúlio Vargas, a aguda crise da segunda guerra mundial e a ditadura militar a partir de 1964. Enfrentou o fenômeno da angústia produzida pelas relações sociais capitalistas, com o desenvolvimento desordenado das grandes cidades inchadas pelo êxodo rural. Evidentemente, CL não abordava explicitamente tal contexto porque não estava fazendo história. Sua obra é puramente estética. O reflexo desta contextualidade, com certeza, gerou muitos traços da angústia vivenciada em seus personagens.
 
Diferindo dos escritores que faziam certa mímese do real, Clarice efetua uma desfiguração do real operada pelo aspecto estético e/ou antiestético em que se apreende o ser social entrevisto no texto. Pois  não estava preocupada com heróis ou com o estilo do romantismo. O enraizamento do seu humanismo emerge precisamente da intratextualidade de sua obra. Dizendo melhor: surge da confluência entre ideologia e estética. O elemento social brota de algo que compõe o literário (Cf. Oscar Pilagallo, in “O engajamento da introspectiva”, Entre Livros, n. 21, ano 2).
 
Ler as obras de Clarice Lispector implica entrar em contato com uma quebra da linguagem comum e dos sentidos dos fatos mais banais da vida humana que passam a nos desconsertar e provocar ou apontar para uma perplexidade angustiante que tece a existência das coisas e das pessoas.
 
A priori a mundivisão clariceana se caracteriza inegavelmente como uma filosofia “desconcertante”.
 
Pode ser um tanto simplista ou simplificador afirmar que a filosofia fundante da percepção clariceana seja uma filosofia existencialista. Todavia não o é reconhecer esta perspectiva como elemento constituinte de sua mundivisão; plena do sentimento universal da experiência da angústia, da dor, da admiração e da perplexidade perante o fenômeno da própria vida humana. A vida entendida como sucessão de momentos de descoberta constante das contradições que a compõem, em termos de incompreensibilidade e ausência de sentido.
 
A meu ver o pensamento filosófico de CL se manifesta mais explicitamente em PSGH; um texto literário que nos apresenta a experiência da vida em seu aspecto de imanência e materialidade, apontando para uma percepção da condição humana em sua solidariedade cósmica, como bicho, reduzido a inseto, coisa, ser pensante, mas estranhando-se a si mesmo em sua imanência-transcendência. A própria Clarice se coloca como sujeito-personagem-animal, solidária à materialidade e à indiferença do mundo, experimentando a dor, o amor, o sofrimento; buscando uma mística, uma linguagem contra a própria linguagem, face à experiência da incomunicação. Inclusive, por isso mesmo, a autora não hesita em se colocar no mesmo plano ontológico dos bichos.
 
Nesta obra encontramos os principais temas da mundivisão filosófica de Clarice, tratados também no seu texto Água Viva. Não sei se poderia falar em terminologia clariceana. Porém, há diversos elementos temáticos recorrentes, sejam temas ou situações existenciais da condição humana em quase todos os seus livros; mas sobretudo nestes. Todos tratados numa perspectiva angustiante e existencialista; claro, sempre do ponto de vista pessoal da autora, sem perspectivas sociais ou políticas. E certamente por isto a classificam e rotulam como intimista. Na verdade, Clarice é uma escritora mundial, porque sua abordagem temática não é regionalizada. Ela se distanciou da temática predominante entre os escritores brasileiros de sua época. Este é um dos traços de sua singularidade.
 
Entre os elementos temáticos de sua obra há três termos básicos que se distinguem: epifania, instante e náusea. As imagens de sua linguagem despertam e provocam um mundo de associações em fluxo contínuo; fazendo explodirem estranhamento, compreensão e súbitas descobertas. Além destes, outros termos de conotação mística surgem e ressurgem, como por exemplo: beatitude, revelação, êxtase, santidade, graça, estado de graça, mas não com a mesma significação de origem. Clarice os ressignifica, dizendo que sua conotação é puramente arreligiosa; insanta.
 
Se quisermos relacionar ou tentar aproximar sua filosofia com alguma das filosofias do século XX, com certeza  encontraremos traços das antropologias filosóficas de autores como Kafka, Sartre, Unamuno, Hesse e, quem sabe, até Heidegger. Embora, ela mesma certa vez interrogada sobre a relação entre o conceito sartreano de náusea e a náusea de que falava em seus textos foi direta e categórica ao afirmar que a sua náusea era diferente da de Sartre porque ela sentia mesmo (sic)!
 
É preciso considerar que Clarice não pensa categorialmente, conceitualmente; porque está fazendo literatura; está fazendo arte. Portanto, criando um universo distinto de conceitos filosóficos ou categorias epistemológicas. Entretanto, nem por isso deixa de apresentar um pensamento filosófico, uma mundivisão, uma interpretação da vida em termos de totalidade e busca de sentido. Enquanto fez uso da linguagem escrita, procurou pensar a vida, compreender a existência das coisas e do mundo, como subjetividade pensante, mediante a atividade consciente-inconsciente; mais intuitivamente do que por raciocínios lógicos formais. Nisto ela insiste em seus textos. Efetuava uma busca intuitiva; mais instintivamente, dizia; apontando os limites da própria linguagem e do que nós denominamos consciência.
 
Em CL a questão do acento nos limites da palavra para dizer o mundo se faz mais presente do que em outros escritores. Na sua obra a palavra é condição e impossibilidade ou limite. A linguagem também apresenta-se como antilinguagem, discurso e contradiscurso, linguagem e metalinguagem, revelação e ocultamento do que somos e não somos; do nosso ser e do nosso não-ser; dos nossos “eus” e “não-eus”.
 
Diversamente do lugar comum da alternativa do ser ou não ser, em Clarice a dialética acontece justamente na vida como ser e não ser. Ser é também não ser. Querer e não querer, sentir/não sentir, saber/não saber, ver/não ver, compreender/não compreender, silenciar. O conhecimento filosófico não se dá pela via do esclarecimento conceitual, terminológico, mas acategorial, existencialmente, mediante a descoberta intuitiva e a experimentabilidade das contradições e negações, à revelia daquilo que o discurso linear e definitório de causa-efeito determina como verdadeiro e lógico no sentido da lógica formal tradicional.
 
A escrita de CL, ao nomear a vida em sua crueza, dureza e nueza, nos faz perceber a existência mediante a nomeação daquilo que a nega, contradiz e sufoca: o anti-sucesso, o anti-herói, o anti-humano, a anti-vida, a anti-estrela etc. Talvez não pelo fato de que seja apenas uma “existencialista pessimista” ou que proponha uma concepção negativa da existência humana no mundo. Não se trata disto. Mas em razão daquilo que ela simplesmente constata, mostra, indica, sente. E procura nomear, sem conseguir; ficando perplexa com o fato de que a vida se dê tal e qual ela sente, percebe e aponta, apesar de e por causa dos limites da linguagem. Ela escreve como quem sente, mais do que como quem sabe intelectualmente. Escreve como “sentinte”, “omnissentinte”. Elabora um pensar-sentindo. No seu texto “Água Viva” há uma nomeação exatamente assim: pensar-sentir; para referir-se a uma forma de pensamento livre, além de necessidades demasiado limitadas. Insiste na compreensão em que o seu corpo participa, dizendo que só pode compreender algo quando o sente. Em “a hora da estrela” há uma declaração lapidar que resume bem essa sua postura cognitiva, ao dizer: “eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons transfundidos de sombras que se cruzam desiguais, estalactites,renda, música transfigurada de órgão.” Mas, como nomear a dor? Esta uma das perguntas de Clarice; insistindo em que essa palavra não diz o que sentimos – “a dor não é o nome verdadeiro disso que a gente chama de dor” (in PSGH). O imprevisível, a dor, o silêncio, não se deixam cognoscibilizar. Porque as palavras nos aprisionam, nos torturam e nos limitam. Temos de quebrá-las, reinventá-las e usá-las como objetos e não como casulo. As palavras são tudo e nada. Não nos tiram da angústia da condição humana perante a ameaça da dor e da nadificação; não nos realizam nem nos fazem felizes. No entanto, não podemos dispensá-las. Por elas dá-se o extravasamento do que está dentro do nosso corpo.
 
Na escrita de CL não há um solipsismo no sentido cartesiano e estrito do termo. Ela dialoga com as pessoas, como personagem que sente; ouve-as, descreve-as, expressando sentimentos, como quem tem compaixão pela condição dramática do ser humano no mundo. Sua postura mais comum é de perplexidade ante o êxtase e o horror; ante o ininteligível da existência.
 
Outro texto curto, mas denso, sua obra “a hora da estrela” (HE), é também fundamental para o conhecimento de sua visão sócio-filosófica, de modo mais direto e condensado; talvez, por ser sua última produção. Aí a autora expressa a sua percepção da vida em toda a sua “crueza” e tragicidade, ao dizer, no final da narrativa, que “a vida é um soco no estômago”. Algo mais kafkiano? Não conheço.
 
Relativamente à criação da personagem Macabéa, desse texto que alguns chamam romance, fica bem evidente que não é apenas uma mera ficção, uma criação imaginária. Trata-se de um exemplo corporificado e real de muitas mulheres na mais absurda condição de alienação produzida pela exclusão social. Protótipo de uma anti-heroína, dizem os analistas deste romance; que não é tão “romântico”. Protótipo da condição desumanificada, da desgentificação, da negação da vida e do que se chama dignidade. Seria a subumanidade, socialmente produzida.
 
Macabéa é a pessoa transformada em objeto; um não-eu; objetificada. E o sinal ou semiose mais visível desta condição, além da aparência física de miséria, é precisamente o silêncio abafado, a ausência do exercício pleno da linguagem. Macabéa não sabe, quase não fala, não age; é coagida, dessubjetivada, coisificada. Arquétipo de alienação, como inversão da subjetividade que foi transformada em coisa animalizada.
 
Alguns críticos literários que analisam esta obra de CL afirmam que a autora não pôde mais esconder a sua solidariedade com o drama dos nordestinos miserabilizados pelo êxodo rural e empurrados para o Sudeste do Brasil. É possível, mas não há referência explícita sobre isto. Pelo menos relativamente à questão sócio-política da produção da miséria. Até porque Clarice não quis regionalizar sua abordagem.  Principalmente em razão de que não está fazendo história, mas arte. E os critérios são outros. Mesmo assim, não se pode excluir tal propósito latente. Macabéa é o  tipo de nordestina que ela diz ter percebido certa vez na feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Pálida, encurvada, aérea. Apenas diz – “preciso falar dessa nordestina, se não sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela”.
 
A autora não tematiza diretamente as questões sociais em seus escritos. A sua narrativa padece, de certo modo, da ausência de uma consciência de classe social em seus personagens. Todos sofrem demais os dramas sociais, mas pouco ou não se percebem como sujeitos sociais. Apresentam-se como sujeitos desprovidos de consciência histórica. Sofrem; mas raramente indagam e nunca se rebelam contra estruturas ou instituições sociais; contra o mundo que os oprime. Sucumbem. Além de Macabéa, um exemplo emblemático é “Mocinha”, do conto “viagem a Petrópolis”; outra personagem nordestina, velhinha, abandonada pela suprema crueldade da família que a rejeita, jogando-a na rua e causando-lhe a morte. Do mesmo modo que fazem hoje com os cães e gatos quando não os querem mais em suas casas. Afinal, Clarice, como arguta observadora das relações pessoais dentro das famílias, talvez nem precisou inventar a personagem; pois tal fato parece muito comum nesta sociedade capitalista que se diz defensora da família. (cf. “viagem a Petrópolis”, in A Legião Estrangeira ).
 
Como artista da palavra escrita, há em Clarice o desejo de nomear e indicar a sua experiência de intuição do mundo. Entretanto, a angústia que gera a sua escrita não a plenifica nem alivia. Isto a própria escritora confessa em seus textos, quando se refere ao ato de escrever; sobretudo quando era interrogada sobre como escrevia. No desenvolvimento dos seus textos, falando do presente que gera aquilo que escreve, deixa transparecer, no entanto, que a própria escrita simplesmente a precipita no não ser, no nada. Faz um enorme esforço para a ultrapassagem da linguagem usual, em termos de pontuação, pausas, que chega a denominar “respiração da frase”. Sua sintaxe nem sempre obedece à norma gramatical. Em sua escrita se percebe que há uma certa agonia quando sente que não consegue dizer tudo aquilo que gostaria. É visível sua tensão perante a incomunicabilidade das palavras ao descrever as situações dos seres humanos e das coisas. Escrever é uma questão de libertação que, todavia, não consegue. Seu  sofrimento interior com o que acontece arranca-lhe enorme esforço para buscar palavras que a possam salvar desse sofrimento. Por isso diz que escrever é questão de salvação. Contudo, não consegue se redimir ou se libertar dessa dor. As palavras não conseguem libertá-la dessa agonia que é o viver. Essa perplexidade angustiante se repete em quase todos os seus textos. Sua concepção da existência humana é agonia. Esta palavra é uma das mais usadas em seu vocabulário de traços existencialistas. “A vida está me doendo e não sei como falar”, escreveu em PSGH.
 
Clarice fala das aleluias e agonias do viver. Sobre o ato de escrever ela repete bastante, em suas crônicas, dizendo ser um fracasso, uma maldição e ao mesmo tempo uma questão de salvação. Repetia sempre que não gostava de que a chamassem escritora e intelectual. “Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto”.(DM – 152-53).E fala sobre si dizendo – “sou uma pessoa que pretendeu por em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável” (idem, ibidem). Isto é repetido à exaustão, em seus textos. Afirmava ser uma pessoa que sente e procura a palavra que o exprima. Não tanto pela pura intelectualidade lógica no sentido comum, mas pela sensibilidade inteligente, dizia. Escrever para a escritora significa reunir as contradições do existir, como dor: a dor de escrever livros; a dor de ser. “Ser às vezes sangra”. Ao mesmo tempo que é divinizador do humano, escrever também é maldição, é defrontar-se com o fracasso. Mas o fracasso, a deseroização, a despersonalização, exprimem a condição de possibilidade para ser; que é também não ser. “Ser é não ser. O fracasso, a desistência, a despersonalização, são momentos de revelação da condição humana. O que não sou eu, eu sou. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano” (PSGH). Entenda-se, filosoficamente: aqui esta linguagem tem um caráter de princípio ontológico; não simplesmente lógico. Trata-se da posição dialética encontrada em filósofos como Hegel, Sartre, e em pensadores-poetas como Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Lorca, Machado de Assis. Clarice nos legou uma dialética da existência com a marca de sua singularidade estética, como escritora.
 
A posição filosófica de Clarice, expressa em termos de teoria do conhecimento, é o intuicionismo. Já que ela privilegia expressivamente, não a razão do discurso da lógica formal, mas a intuição, pela unidade entre forma e conteúdo; desejo, instinto, compreensão súbita. Sua posição cognitiva é de quem procura perenemente renomear as sensações, as emoções, as percepções. Eternamente voltada para o seu mundo imediato, escutando, sentindo sons, odores, cores; procurando dar significado a essas sensações; procurando sentir aquilo que dizia amar: as pedras, o mar, os bichos, as flores.  Faz-me lembrar um dos conceitos de filosofia de Fichte: o conhecimento que não brota simplesmente de raciocínios, mas de uma consciência imediata, uma intuição sensível.
 
Clarice nos apresenta uma percepção sensível e estética da existência em seus aspectos de dor, agonia, beleza e revelação súbita do inesperado ou imprevisibilidade. O espanto é uma forte característica da visão clariceana.
 
Acredito também que alguns elementos da posição bergsoniana perpassam a teoria do conhecimento lispectoreana. Aliás, Bergson encontra-se como referência explícita em um de seus textos. Sua concepção de temporalidade e transcendência apresenta claramente o traço da fluidez, característica da teoria de Henri Bergson. A vida é unidade. O tempo é indivisível. O tempo privilegiado em suas narrativas é o tempo psicológico; melhor, o tempo subjetivo; transcendência é a lembrança do passado ou do presente ou do futuro. Para Clarice o tempo é atualidade; uma atualidade que não tem esperança; não tem futuro; pois o futuro será exatamente uma nova atualidade. O tempo clariceano é o tempo do hoje. Não há um tempo cronológico. O agora é o instante. Esse termo “instante” é exageradamente repetido pela autora, em “Água Viva”. É sua concepção de temporalidade. O dia de amanhã será um hoje; e a eternidade é o estado das coisas no presente momento. O tempo presente, o instante, é como um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. Portanto, a categoria tempo, enquanto é narrada e transposta para a subjetividade dos seus personagens e sua, torna-se humanizada, compreendida de um ponto de vista humanizante. Ao mesmo tempo, é como que “destemporalizada”, no sentido de que o tempo histórico desaparece. O tempo cronológico é como que “substituído/ destruído” ou unificado com o tempo metafísico.
 
Assim se expressa a escritora em sua prosa poética, que afirmo ser uma verdadeira poetofilosofia.
 
Clarice vivenciava uma espécie de “sensismo”. Sentir é um termo chave em sua apreensão do mundo; chegando quase à obsessão pela busca de uma espécie de princípio metafísico, que seria o divino, algo inomeável que denominava “it”; ou “o Deus”. Ou seja: tinha, em última análise, um itinerário místico; sem ser religiosa; como se buscasse algo supraconsciente, supraindividual que fundasse as percepções e sensações de sua egoidade; que não era apenas a consciência, mas o inconsciente e intuitivo que nunca soube clarificar pela linguagem da gramática usual. Daí porque buscava outra forma, uma antilinguagem; para expressar aquilo que dizia poder captar na entrelinha das palavras, que não era palavra. Eis uma das principais razões da sua angústia ao escrever. Invertia desde as funções verbais até os elementos sintáticos sujeito-objeto tradicionalmente integrantes da frase, bem como a pontuação da gramática normativa. Falava, por exemplo, em “perdoar Deus”. Em PSGH fala de “antipecado”; a “insanta”, referindo-se a si mesma, como a um gênero de santidade que não é a dos santos; e do divino como sendo o real; remetendo-nos à tese de Espinosa, que concebia Deus como o universo. “Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem.(…) Falar com o Deus é o que de mais mudo existe. Falar com as coisas, é mudo.(…) O inferno para mim é o meumáximo. O divino para mim é  o real.” Para Clarice o inferno é o horror do sofrimento, está no amor, na dor da carne; no humano que se revela não humano. Transcendência é imanência. A liberdade é o inferno. “Somos livres, e este é o inferno”; declaração em estilo sartreano. Essas e outras intuições da autora podemos verificar, principalmente nos três últimos capítulos desta obra; a meu ver, seu texto mais densamente filosófico.
 
Toda a tentativa de uso das palavras que constituem a linguagem sempre a levavam ao sentimento do absurdo e do silêncio que as palavras não conseguem romper. Buscava, na escrita, uma libertação que, no entanto, não acontecia. Penso que esta é, em parte, a condição dos escritores em geral: enfrentar a vida tentando expressá-la em palavras, num esforço de “suspensão” da evanescência do tempo, pela criação estética.
 
Afinal, a escrita clariceana situa-se como uma prosa poética, por duvidar da total apreensão das coisas, atitudes e modos de ser pela categoria exclusiva do entendimento intelectual. Sua prosa atinge o nível da apreensão estética para além da conceitualidade.
 
Segundo Benedito Nunes, em seu texto de interpretação da linguagem de Clarice (“o drama da linguagem, IV”) a autora atinge o desordenamento poético, o silêncio, a suspensão das convenções vulgares da linguagem, superando a relação vulgar de ser ou não ser revelados na angústia da vida, enquanto vai tomando consciência de sua nadificação progressiva. Sua linguagem atinge uma espécie de insignificância, um horizonte de ultrapassagem dos signos e relações de causalidade, rumo à apreensão estética do ser das coisas e da própria linguagem, ao mergulhar em outras nuances da existência, como a memória, a alegria, a sensualidade, o humor, a tragédia, a dramaticidade. Enfim, como prosa poética. Porém, sua maior expressividade está no paradoxo que ela mesma diz atingir: o silêncio. A não linguagem. E quem lê Clarice também se defronta inevitavelmente em face desse silêncio, após tudo que ela tentou descrever, interrogar e perscrutar. Este é o ápice de sua escrita: não conseguir expressar pela linguagem aquilo que acontece, aquilo que sente, percebe e deseja. Apesar de haver se preparado desde a infância para ter o domínio da palavra, confessa a escritora, em sua desolação. Os acontecimentos a colocam, subitamente, diante de situações inomináveis da condição humana, que é toda perpassada por uma dor, a dor vivida por seus personagens; a dor de viver, a dor de existir. Sua concepção da vida não quer ser pessimista nem otimista, mas um esforço de apresentação da existência naquilo que acontece na vida das pessoas. “Ser é além do humano. Ser homem não dá certo, ser homem tem sido um constrangimento. O desconhecido nos aguarda, mas sinto que este desconhecido é uma totalização e será a verdadeira humanização pela qual ansiamos. Estou falando da morte? não, da vida. Não é um estado de felicidade, é um estado de contato. (…) Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto” (cf. penúltima parte de PSGH).
 
Mas, penso, é precisamente por estas razões, que surge a arte. A produção artística tenta dizer o não dito; aquilo que o discurso não pode, não quer ou não permite dizer. Todas as formas artísticas, inclusive a literatura, tentam expressar aquilo que as ideologias ocultam: os espaços das entrelinhas; que sempre existirão. Este também foi e continua sendo o paradoxo analisado por tantos filósofos da linguagem; desde o Círculo de Viena até Martin Heidegger e outros pensadores contemporâneos.
 
Porém, em meio a tudo isto, Clarice conseguiu trazer para dentro da linguagem escrita aquilo que nenhum outro escritor havia conseguido: o próprio silêncio. Isto é único em toda a literatura brasileira; quem sabe, na literatura mundial. Mais original ainda porque isto está grafado com linhas, traços, pontos, intervalos, entrelinhas; que ora começam, ora interrompem, ora deixam inconclusas suas narrativas (- – -. . .- – – -). Suas obras são cheias de um grande silêncio. Para mim o silêncio da vida, o silêncio do tempo. Silêncio do ser humano em sua absoluta solidão consigo, num mundo totalmente indiferente; sem respostas. Em “a descoberta do mundo” pontuou: “Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.”
 
Clarice não compôs poemas, mas atingiu o limiar do silêncio e do espanto poético, por seu desapontamento face à cotidianidade da vida e naquilo que ela nos apresenta de mais ininteligível: o sofrimento. Pensava registrando a expressividade de seu corpo sentinte. Este é um traço singular de sua composição literária, que a distingue entre outros escritores brasileiros. Lembra-me Cecília Meireles em um de seus poemas de rara beleza e conteúdo fenomenológico, quando escreveu – “o que sou é o que vejo/vejo e sou meu olhar/e meu corpo é minha alma/ e o que sinto é o que penso” (in Canções).
 
Paulo Freire, um pensador brasileiro que apresenta forte conteúdo da Fenomenologia Existencialista, em seu pensamento, também afirmava que a mente não pensa desligada do corpo; pois o corpo é corpo consciente, tomando consciência; e a consciência, dizia, não é uma região espacializada e isolada do corpo. Pensamos com tudo aquilo que sentimos. Do contrário, não é autêntico o nosso pensar, se negamos ou omitimos as nossas emoções. Clarice escrevia em desapontamento, mas demonstrando em verdade aquilo sobre que escrevia. Dissolvia o tempo cronológico, mas não dispensava a memória. Sempre recorria à memória poética lembrando que aquilo que tentava descrever (a vida) é mais importante do que a linguagem, o como descreve. “Viver não é visível; nem relatável” (PSGH).
 
Pensar-sentindo, um pensamento sentinte; eis o que é um pensamento poético. Assim se vela e desvela o pensamento filosófico clariceano.
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por Marcelo Bezerra Oliveira
Poetofilosofia, pag. 128-144, Ed. do Autor.

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