O que é isso que se expressa?

Essa  pergunta  surgiu a partir do tema “expressividade” do 5º. Colóquio Nacional de Filosofia Clínica, realizado em Porto Alegre, maio de 2016. Apesar de  um pouco deslocado  do que certamente seria mais apropriado a  ser discutido – os modos de expressividade – pensei que  poderia ser proveitoso conversar um pouco  sobre “isso” que se expressa.

A noção de expressividade no ambiente da FC, é um tópico da EP- Estrutura de Pensamento –  e também um tópico do Quadro de Submodos, vale dizer, algo que faz parte da constituição e do modo de agir de uma pessoa.
Expressividade de um lado tem um aspecto mental, de outro se liga a  um âmbito material, corpóreo.
Na palavra expressividade o prefixo  “ex” indica um movimento para fora – neste caso do corpo material –  e, “pressividade”, que seria a atividade de pressionar, de fazer pressão. Pressionar, portanto, para fora. E pressionar é por definição “transmitir estímulos”. Talvez mais propriamente, empurrar estímulos; pressão é a força que faz com que os estímulos sejam movidos, transportados, transferidos de um lugar a outro. Os estímulos têm sua origem no próprio corpo material, no organismo ou fora dele. No mundo material são os impulsos nervosos, fenômenos ao mesmo tempo químicos e elétricos. Em outros jogos de linguagem – na medicina chinesa, por exemplo – os impulsos nervosos são nomeados como energia.
E será esse campo entre o mental e o corpóreo que me possibilitará trazer algumas ideias que venho desenvolvendo e que talvez tenham algum interesse para quem lida com o pensamento ou com a prática clínica.
 
Começo pela pergunta: O que é “isso”, a palavra “isso”?
Um pronome. “Pro” – o que vai em direção a; “nome”, linguagem.
 
“Isso” é uma palavra que indica – que dá a dica – sem dizer o que é.  Um pronome demonstrativo, que neste caso, diz, sem mostrar . Quando eu falo “isso”,  já estou na linguagem. Digo mas não mostro,  não estou mostrando um objeto sem nome , mas dando um lugar a ele no que eu falo. Para dar uma dica sobre “isso” eu  preciso antes falar a palavra  “isso” para, então,  poder começar a mostrar o que é que eu quero dizer com “isso”. É como se eu desse um grande privilégio à linguagem: ela passa a ser o lugar a partir do qual algo se mostra e passa a existir.
 
Com o uso do pronome “isso”, eu me refiro ao acontecimento da linguagem, sem entrar no mundo  dos significados.  Quem me lê ou me ouve não sabe o que é isso a que eu estou me referindo – a linguagem, de certo modo,  ainda não aconteceu, não se deu como acontecimento, significando. Será só no interior desse acontecimento que algo será significado e, ao mesmo tempo se dirá o que “isso” é.  Se entrará, então,  na dimensão do “ser”.  Nesse gesto, nesse ato de fala,  o signo passa a significar (passa a ser propriamente signo), aquilo que está indicado diz, passa a dizer. No interior desse acontecimento da linguagem, ao falar eu digo o que “isso” é.
 
Algo foi incorporado, apropriado, num acontecimento de linguagem como uma verdade íntima por mim, a partir de um contato com o mundo, mundo ao qual saindo de mim , acorri, percorri  e que deixei voltando a mim. Experiência realizada: “ex”, para fora; “peri”, o contornar o mundo; “encia”, a volta a si.
 
Verdade íntima apropriada,  que não se refere agora mais aos sentidos  nem ao intelecto, mas que se dá numa instância própria. Um saber próprio, que sabe sabendo, que toma a linguagem naquilo de onde a linguagem surge. A “surgência” da linguagem [nota 1]. A fonte da expressão. Isso.
Mas se “isso” quer dizer essa verdade íntima, o que é “isso” que  contém essa verdade íntima. O íntimo, no seu limite, só se pode dizer a si, numa espécie de flexão de si a si. “Eu” seria o lugar dessa verdade intima?  Mas, o que é  “eu”?
 
De novo um pronome. Desta vez um pronome pessoal.
 
“Eu” designa a pessoa que enuncia. Quando eu digo “eu” é ao mesmo tempo eu que digo “eu”. Eu sou sempre no mesmo tempo de “eu”. “Eu” é um fenômeno de linguagem, de vivência , de percepção instantânea. “Eu” é sempre presente para si. E para si,  um observador eterno; sou sempre eu que vejo, penso, percebo, sinto etc.  Um “centro de experiências”[nota 2], sempre em atividade. Mas “ eu”  não pode ser apreendido nem visto. “Eu” , assim, não pertenceria ao mundo, seria  “um limite do mundo”como observou Wittgenstein.
 
O “eu” não é uma coisa no mundo, não é uma substancia:  não se pode mostrar. Não é um ente zoo-psico-biológico. E ao mesmo tempo eu sempre existo. Não há “eu” sem eu.  “Eu” se funda, se re-inaugura na fala, em cada fala. Existe através da fala que a profere.  Algo fala. Algo que fala é alguém. Alguém fala, um eu.
 
Quem é esse alguém – eu – que fala?  Se eu existo, eu sou um ser vivo. Vivo  num corpo. Eu, como alguém num corpo, talvez seja a minha primeira característica. Como diz Ricoeur um corpo é um “critério de localização num único esquema espaço-temporal” [nota 3]. A partir de um corpo contingencia-se num lugar e num momento qualquer  alguém, um “eu”. Um “eu-corpo”.
 
Esse “eu-corpo”  trafega entre outros “eus-corpos”, trama percepções e sensações para si,  e  através dos impulsos, busca respostas fisiológicas tendo seu próprio organismo como universo. Esses fenômenos elétrico-quimicos preenchem e percorrem os nervos num fluxo energético contínuo. A cessação desse fluxo é o fim desse alguém, desse “eu-corpo”, desse organismo.  Cessa o organismo, cessa a possibilidade de ex-pressão do “eu”. O tempo de existência do “eu” corresponde ao do corpo.
 
Essa imbricação constitutiva nessa noção de  “eu-corpo” possibilita que o “eu”  se represente no reino das coisas, vale dizer, no mundo: é no corpo, no organismo  que o “eu” existe.  E é no transacionar através do organismo  com o mundo que, aquilo que representa o “eu”, se modifica, mais ainda, se constitui. Como “eu”, q não é um ente, não é uma coisa, e que é mental, se modifica no transacionar com o mundo, como organismo?
 
Difícil responder a essa questão mantendo o rigor de pensamento que é próprio da filosofia. Nunca é demais lembrar, que, neste âmbito, o critério é sempre a verdade, isto é , aquilo que é evidente por si.
 
A ciência encontrou alguns modos, talvez menos rigorosos, porém mais práticos. Seu critério principal é o da verificação. Com isso criou uma série de modos de medição, que quando não são possíveis, são substituídos por outros modos de aproximação, como os cálculos probabilísticos. Com isso foi possível criar uma série de protocolos que foram e são úteis, inclusive nos cuidados dos corpos humanos. Mas a relação e a caracterização entre o corpo e a mente ou dito de outro modo, entre o organismo e o espírito, continua sendo um mistério.
 
Se é possível observar como a energia vital – os fenômenos eletro-químicos – circula pelo organismo, nada se sabe em como ela se transforma em ideia, em pensamento, em sentimento, em representação. Como uma energia se transforma numa representação de si, nesse alguém, esse “eu-corpo”.
 
Para  quem  lida no mundo da clínica existencial, que se  inclina para cuidar de pessoas com dificuldades e sofrimentos no viver, essa questão é fundamental. Não se trabalha com uma matéria, não há propriamente um objeto para lidar, ainda que a pessoa venha também como um corpo.  Esse corpo que traz em sua constituição essa parte eu, e que vive uma série de influências corpóreas  a partir dessa parte eu – as somatizações, ou reações psicossomáticas .    É em sua inteireza de ”corpo-eu” que a pessoa  transaciona com aspectos do mundo, através da linguagem.  Esta pessoa que vem à clínica tem como sua natureza essa de ser um organismo capaz de linguagem.  O clínico – também um corpo capaz de linguagem – testemunha diariamente  esse mistério.
 
O  “eu-corpo” existe.  Há algo nele que se ex-pressa. Põe para fora um “isso” que está nele. Nesse “eu-corpo”, há isso que o caracteriza. Isso, esse caráter íntimo do “eu-corpo”,  isso que lhe é próprio – singular, só dele. Esse próprio construído a partir de sua relação consigo, com os outros,  num movimento de natureza reflexiva, em que sai de si para regressar a si. Resultado momentâneo de infinitas ex-peri-ências, que sai de si, é tocado, matizado pelo mundo, para voltar a si transformado. Como essas experiências são compostas de suas relações com o mundo, compreende-se a natureza singular, desse “isso”, próprio a si .
 
Outro pronome. Agora reflexivo.
 
Esse si, próprio, não se dá ao pensamento, não é representável. Si próprio não é si mesmo. Ao buscar pensar em si já se cai numa cisão, numa divisão: esse que olha precisa de um afastamento, criar uma alteridade de si, que modifica sua condição inicial de si. Para ser mesmo – si mesmo –  tem q ser os 2 ao mesmo tempo, um e outro que se identificam, dando a condição de mesmidade. Não há mesmidade onde se supõe unidade. O “si” , ainda que uno, não é algo simples. Contém a relação q une e a relação q separa. Não tende a formar identidade. Forma propriedade.
 
O si, o fato de si, o si em sua facticidade não é original. É produzido, é artifício. O si produz a si na experiência de si. O outro de si é si em que o seu outro é este si e, talvez por esse movimento incessante de mútua constituição, sempre inconclusa e precária, sempre em construção, contingenciado e contingenciador, criador de si e do mundo. O seu aí está sempre em ser, sendo. Não é uma situação de fato, imóvel, como em Husserl e Sartre [nota 4].
 
Agamben traz o conceito heideggeriano de  facticidade para argumentar que o fato de si é produzido, é forjado pela  e-moção. Tome-se  o sentido que a palavra emoção  traz : “e”, para fora, como “ex”; e “moção”, deslocamento. E se compreenderá, como  se desenvolve “isso”, o si.  O si, o fato de si, é o que foi produzido pela e-moção, pelo seu deslocamento para fora. Não há um si original. O si é esse “isso”, em constante produção do início ao fim da vida pelas suas próprias e-moções. Daí porque o si, sendo artifício, é sempre si-próprio.
 
A expressividade acontece quando a linguagem traz ao que é próprio. Ou leva o próprio ao que é dito. É como quando se fala, se gesticula, se dança com uma verdade própria. Isso que se sabe que existe, está presente e que é difícil de nomear. A expressividade é essa ação de linguagem q faz a experiência  do “isso”, que faz com que esteja impregnado  à palavra, ao gesto, à pincelada, à ginga, à voz. Mas ele mesmo, “isso”, não vai, “permanece intransmitido”, como diz Agamben, “sem nome”, pronome.
 
O homem, o animal falante, é o infundado, q se funda indo ao fundo em seu sem fundo e, como in-fundado, repete sem cessar sua ausência de fundamento, abandona-se a si.  E é só assim, desse modo negativo, fundado em si . O “si” é o mistério das origens q a humanidade transmite como fundamento próprio. E que é veiculado na expressividade.
por Cláudio Fernandes


[nota1 : “surgência”, essa bela palavra criada pelo colega Arthur Tufolo]
[nota 2: como sintetizado recentemente por Paula Perroni, colega psicanalista]
[nota 3 Paul Ricoeur “Si Mismo Como Otro” pg 9]
[nota 4:Giorgio Agamben “A Potência do Pensamento” pg 260 e seguintes]
 

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